08/03/2018

Diário da primeira semana marciana de 2018 - Rosário Breve n.º 545 in O RIBATEJO de 8 de Março de 2018 - www.oribatejo.pt






Diário da primeira semana marciana de 2018



Quinta-Feira, 1Felizmente há chover, embora alguma pontual violência dos elementos humanize de mais a possibilidade de tudo se perder num repente. Na estação-de-serviço defronte, os estandartes da promoção-desconto-litro-combustível fremem como virgenzinhas que tanto sabem ao que vão como ao que(m) lhes há-de vir. Primeiro dia de Março: zune o poder eólico, o céu é chumbo negro, corre de estanho o estranho rio, vale mais ficar em casa a quem tem uma. (Nem toda a gente tem uma.) O Inverno vigora com justiça plena. De sudoeste, uma força aérea invencível carrega gelo consigo. Os penhascos rangem como viúvas ainda disponíveis. O mar traga os afoitos inconscientes. Trump quer os professores com pistolas. A Síria está bem, obrigado. Calor no Árctico, neve em Bragança-Vila Real-Chaves-Viseu. Certo. O meu Amigo Manuel M.M. telefona-me para almoçarmos juntos um dia destes. Sinto-me gratificado pela demanda: somos amigos há quase 39 anos. Recolho-me: o briol já aperta mandíbulas em torno dos ossos cinquentenários (upa, upa).

Sexta-Feira, 2É dia de Porto-Sporting. De nada mais falam as televisões da parvónia. Não sei por que chamam “mau” ao tempo: chove ouro, para mim; para mim, é pão que chove. O grande chumbo de ontem ferra ainda o céu de hoje. A cameleira da praceta, que o sol februário fez florir precocemente, tenta não se deixar despir de todo pelo assédio ventoso: mas há já pelo chão as inumeráveis páginas-violetas de suas folhas-lilases. É verdade: a luz parece toda feita de sombra, isso é verdade – mas não é com(o) tristura que assimilo a invernácea condição do dia. Não, isso não. A terra babuja de água boa, as raízes bebem fartamente, o verdor ainda não ardido deflagra no ar qual postal de seiva instantânea. Nisto, trovoada: um fósforo imenso & mudo, primeiro; segundos depois, o fragor de móveis arrastados na casa de Deus. Fracamente a cameleira diz não ao ar movediço, de súbito reforçado por esses populosos descampados. O tempo fala. O Tempo, também. Dizem-nos coisas – nem todas más, aliás. Espero tão-só que, logo, Porto & Sporting empatem.

Sábado, 3Estreia absoluta na minha vida: cortei o cabelo a alguém. Esse alguém, nascido a 11 de Janeiro de 1959, é o meu Amigo Jorge C. Vive sozinho num apartamento quase exíguo e é dono de um pente-lâmina eléctrico. Ele mesmo escolheu no dispositivo a velocidade “pente-3” (acertos & retoques finais a “pente-zero”), sentando-se depois, de toalha-babete sob o queixo como um bambino veterano, de costas para a janela do terraço. Vacilei um pouco, a princípio: responsabilidade assustadora. Devagar, porém, lá lhe fui desbastando & devastando o crânio. No fim, a coisa não ficou mal: pareceu-nos a ambos que era atavio ex-capilar digno q.b. para voltar com dignidade à recruta militar. Como disse, eu nunca tal houvera feito. Foi poupança de seis, sete, talvez dez euros até, no barbeiro profissional. Enquanto o tonsurava, pensei em fixar o episódio por escrito – pode ser aqui mesmo.

Domingo, 4Nunca simpatizei com domingos: o vazio existencial é menos disfarçável, talvez/decerto por isso mesmo. (“Tinha dias e noites idênticos, mas o que mais lhe pesava eram os domingos.” – J.L. Borges, in O Livro de Areia). Recorro à “omnipotência” da escrita para o dar por terminado à nascença.

Segunda-Feira, 5Por instância do meio-dia, um breve dilúvio benigno sitia a Cidade. O ar, varejado a vapor frio, volve-se glauco. A grelha pluvial, harpa sem mesura, aponta-nos a insignificância física nossa. Eu, sob escarlate toldo de lona, miro & aguardo. Lixo urbano é arrastado pela torrente das sarjetas. Agarradas sempre aos inúteis chapéus-de-chuva, já pessoas levitam a alguns metros de altura. Depois, Deus (ou o Diabo por Ele) põe-se na brincadeira: a primeira nesga de sol dá primeiro no campanário da Igreja de São José, fazendo-a bronzear a prima meia-hora da tarde. Envernizados pela plúvia rija, os cedros & as laranjeiras daquel’além tão antiga mansão senhorial reverberam como olhos sadios. Entretanto, das catorze pessoas içadas aos ares pela intempérie de há pouco, só doze voltam à terra: duas aproveitaram a boleia – ou para morrer ou para migrar, o que dá no mesmo. Digo eu daqui, nas lonas, escarlate & toldado.

Terça-Feira, 6Hoje é dia natalício (1927) do gigante Gabriel García Márquez (m. 17 de Abril de 2014). A esse descomunal Colombiano devo muitas horas muito felizes, mesmo (ou sobretudo) nos anos mais tristonhos. Por contraponto, anos bons foram aqueles que me viram contemporâneo & companheiro deste moço aqui mesmo, o Paulo C., que de repente, e ao cabo de mais de 30 anos, encontro no autocarro matinal. O Paulo está fisicamente óptimo. Noto-lhe todavia certo ar fatigado. Ocupa-o & preocupa-o a vida, decerto – como a (quase) todos nós. Foi porém uma breve alegria revê-lo. Apeei-me duas paragens (ou dois parágrafos) depois. Oxalá nos revejamos algures, nem que apenas daqui a mais três décadas.

Quarta-Feira, 7Não sei: nem como vai ser para mim esse amanhã, nem como foi para o meu Leitor esse ontem – o Jornal sai às quintas, eu envio a crónica às terças. Só sei que São José badala, precisamente agora, nova meia-hora: para mim, passada; para o meu Leitor, futura. Outra brincadeira do Diabo, enfim. Ou do Compadre de São José por Ele.  

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Canzoada Assaltante