23/02/2017

TENHA MAS É VERGONHA, SENHOR MINISTRO DO TEJO - Rosário Breve nº 494 - in O RIBATEJO de 23 de Fevereiro de 2017 - www.oribatejo.pt





Tenha mas é vergonha, senhor ministro do Tejo



Três cavalheiros bem apessoados, não moços já, passeiam lentos à face do rio local, lamentando deste, em coro grego, a poluição gravíssima. Dá todavia um deles não contrariado sinal de optimismo. Diz ele que “há quem se ande a mexer – e a mexer-se bem – para que esta infame lástima seja remediada”. “Oxalá!” – considero eu para comigo, que, os não conhecendo, lhes não falo.
Lá vai já o trio, sigo eu em rumo inverno/inverso. Aporto entretanto ao lado poente do quadrilátero da praça. É galeria de arcadas a que se acolhem três estabelecimentos de Café. O meu é o do meio. Acampo nele a ferrugem óssea. D’além, a Sé exala uma largueza fria de calhau grande. A noite é a realidade mais imediata, a mais terminada: & a mais terminante. A meu bel-prazer, isto é tudo descampado deserto. (Falo em concreto da praça, não em geral da vida – mas.) Mesmerizada pelo televisor, a moçoila balconista, de um acne de joalharias, nem pestaneja. Fico cá fora, claro – para fumar & para ser o arquetípico poeta de província ante o cão magro (aquel’além) que fareja a pomba que a estas desoras já não há: lá vai ele, cão de si, sem deus nem amo.
Tipo gambiarra natalícia, luzipupilam-me a mente ideias-pirilampos. Uma é aquilo do Tejo conspurcado por gananciosos pecuário-celulósicos até hoje impunes em barra tribunalícia. Outra – ter relido hoje Daniel Filipe, o ilustríssimo Daniel Filipe, o maravilhoso Daniel Filipe absolut’absurdamente desconhecido de/por este país-zé-pereira-de-arraial que nem à própria mãe reconheceria sobre passerelle de cabras. Outr’ainda – o supino prazer que senti à flagrante leitura da crónica de Fernando Paulouro Neves com data de 9/2/17 deste Jornal, aquela em que ele, como eu, quer mas é que deixem sossegado, em seu dinâmico panteão gastronómico-detectivesco, Don Manuel Pepe Vásquez Carvalho Montalbán. Mais uma: a recordação pueril de um café-beberagem-sítio tomado, em incerta manhã pluvialíssima, no Royal da santarena Rua Capelo e Ivens. Desenvolvo:
Era no Royal Café da santarena Rua Capelo e Ivens, era em Santarém. Chovia, por então, de desalmar o coração. Ia eu de moedas contadas nessa sexta-feira tipográfica. Adentrei o santuário quási exíguo, pedi café-café, de que fui servido por correctíssima matrona. Não é prado de fumadores, aquele posto. Aguentei-me. Para não sofrer tanto o desmame de nicotina, pus-me a pensar: no Tejo cancerigenado à força; ao mesmo tempo, no Daniel Filipe da Pátria, Lugar de Exílio – e isto tudo à mesma luzinha-de-gambiarra no estar fora-de-casa à mercê de uma chuva alheia. Também pensei no abandono ferroviário da Capital do Ribatejo. E no que disse outro Daniel (Matias, este), leitor facebookiano do meu Jornal: “Há cidades do interior [em situação] muito melhor do que esta aldeia grande a 70 km de Lisboa.” E, analógica lampadinha de gambiarra, pensei também, vendo o tanto que chovia à porta do Royal, no que comentou Fernando Prazeres, também ele leitor & também ele pelo Facebook/O Ribatejo: “A porcaria de dormitório que é a nossa cidade. Nada fazem. Estagnou no tempo. Chego a ter vergonha.”
Palavras fortes. Tão mais fortes quão mais justas, valha a verdade. Num estremeção, o pensamento-gambiarra vê-se-me projectado ao número seguinte do Jornal. Desta monta (ou volta; ou mote), Fernando Paulouro Neves surge obituário: morreu Tzvetan Todorov, um senhor que era búlgaro q.b. para só poder ser (re)conhecido em Paris pelos estrutur’existencialistas do costume.
Já não sei em que Café estou – se no das arcadas expostas à frialdade irremediável da queiroziana (e amara) Sé, se no Royal da terra de Bernardo Santareno, que decerto leu Daniel Filipe, que decerto aplaudiu Bernardo Santareno.
O Rio é & será, enfim, o mesmo. Só aliás haverá um rio: a montante, o do nascimento; a jusante, aquele que sabemos. Quereis ver? Vêde:
Três cavalheiros bem apessoados etc.:  Montalbán, Todorov, Daniel Filipe.
Ou três cães sem amo, que afinal conheço e a quem falo.
Nisto, mesmo a desoras, passa a pomba.

16/02/2017

PILHÉRIA COM PILHAS AU COGNAC - Rosário Breve nº 493 - in O RIBATEJO de 16 de Fevereiro de 2017 - www.oribatejo.pt



Pilhéria com pilhas au cognac



Na semana passada, dei-vos conta de (in)certa viagem minha para breve. Esta semana, digo-vos que parte desse périplo está cumprida já. Não interessa por ora aonde fui fazer o quê. Não é por rebuço de mistério que fecho isso em copas – é porque (ainda) não vem ao caso. Ao caso, todavia, vem o ganho com que fui remunerado. Digo: os ganhos, que vário me foi o lucro pessoal na & da jornada. Mostro exemplos.
Fui e vim de expresso rodoviário. Anoto: achei-me bem servido. Horário escrupulosamente cumprido. Segurança, conforto, placidez, despacho. Um senãozito apenas: à ida, tive por vizinhança de assento um papagaio ginecológico com quase tantos aniversários quantas camadas de tinta na tromba engelhada. Quase não largou o telemóvel a viagem toda. Ao filho divorciado, para inquirir se o pobre tem ou não tem visto os filhos que co-fez com a inominável outra que o trocou por um dentista do Sabugal. À filha, professora num paul de Portalegre, a demandar se sempre vai com a mamã ao espectáculo do papa Francisco (sessão dupla em Maio numa cova-da-iria perto de si). À amiga Madalena para lhe contar tudo-tudinho do que filho & filha lhe mentiram.
Estive perto – ou antes, não andou ela longe – do estrangulamento, radical remédio a que não dei deferimento por ter alergia micótica a pescoços de galinha velha e por não estar para me chatear depois com o motorista, que era um gordo feliz & sabedor das letras todas das canções todas com que a Rádio Renascença unge o desmiolado rebanho de Deus que é o meu. Lá chegámos, enfim.  
Vieram buscar-me ao ponto combinado. Recebi logo demasias de lorde. Deram-me café & conhaque, tabaco acabadinho de amortalhar, uma fotografia emoldurada do senhor presidente da Câmara a rir-se muito por ter na mão direita um saco cheio de pilhas para o pilhão & na mão esquerda um vereador de barbas oitocentistas também muito feliz por causa das pilhas e das barbas e de estar na mão do senhor presidente da Câmara, uma caneta de tinta mais permanente do que as tretas que escrevo, um CD autografado pelo Tony Carreira com espaço em branco para eu lá fingir o meu nome com a caneta nova, deram-me mais conhaque a pretexto da filosofia maravilhosa que é a de um-dia-não-são-dias, levaram-me ao W Shopping para eu fazer um poema de fazer lacrimejar os calhaus da calçada sobre a pedinte de serviço à porta, fiz o poema e fui muito aplaudido pelos analfabetos do tipo isto-é-um-país-de-poetas, levaram-me aos ombros até um tasco maravilhoso que fez da feijoada de caracoleta uma religião do palato e cujo vinho-da-casa assentava no porão como um colchão de veludo, por estar a chover ficámos deliciosamente sitiados no dito tasco, cujo conhaque-da-casa era servido a biberão aquecido, deram-me conselhos sobre como resguardar o meu desta comédia toda da Caixa Geral de Depósitos, aproveitei para mandar umas bocas impenitentes & impertinentes sobre a mansidão acrítica do vulgo cada vez que há autárquicas, coisa que não foi bem recebida porque o vulgo às vezes percebe que é corno-manso mas não gosta que lho digam nas ventas, valendo-me a intempestiva chegada, a recolher-se da chuva, da senhora que tem uma filha professora em Portalegre ou no Sabugal ou em Fátima, na altura não fui capaz de precisar e agora também ainda não.
Trouxeram-me em carrinho-de-mão de volta à Rodoviária, descalçaram-me de botas porque o inchaço das patas me dava ânsias de morrer sem ter feito mais filhos, nem escrito mais livros, nem urinado em mais árvores, à cautela marcaram-me nova viagem para quando o pus do fígado desse sinais de conformidade com os níveis impostos pela União Europeia, semearam-me no bolso da jaqueta uma de vinte para o táxi entre a gare & a mulher, pediram-me que voltasse para a semana por ser certo que o W Shopping muda de pedinte à porta, havendo pois que fazer versos novos em celebração de tal aparato. Aquiesci, claro que aquiesci.
Se por ora mais não conto, é por me faltarem as pilhas, ao contrário dos barbudos felizes para quem isto da responsabilidade é tudo uma letra vã como a das canções da Rádio Renascença.



09/02/2017

EM MODO DE PRÉ-VIAGEM - Rosário Breve nº 492 - in O RIBATEJO de 9 de Fevereiro de 2017 - www.oribatejo.pt



Em modo de pré-viagem



Estou em antemão de viagem, cujo montante temporal desconheço mas de cujo benefício vos farei relato aqui mesmo, a ocasião vinda. Isto quer dizer que os pardais residenciais e a pomba solitária da Praça Nova vão ter de desenrascar-se sem mim por uns tempos, quebrada a nossa rotina diária do bocadito de pão & da mãozita de arroz. Não é de extensa geografia, a jornada a que me proponho. A partir de um ou dois marcos geodésicos, traçarei panorama de um meio-século laboral, humano portanto. Mas a seu tempo esse Tempo. Para já e por enquanto, viajo de outra maneira. A outra maneira é, sumariamente embora, recordando certa viagem já muito pretérita que reservou poltrona à lareira da minha lembrança.
No Outono de 2002, fui a Bruxelas. O que me lá levava, foi feito sem pressas nem demora, sobrando-me tempo para caminhar sozinho com o lápis do costume por companheiro. Tinham-me recomendado certo incenso de certa loja na Chaussée d’Ixelles. Acatei o conselho e aviei a encomenda. Não era difícil: fui pela Rue du Prince Royal, claro, subi a calçada não agreste (estava bom tempo, o sol era fresco, adequada a minha roupa, boas as botas e bem atacadas de cordão grosso), muni-me do incenso. Decidi então, como é evidente, procurar um Café de portugueses. Fazia-me falta o binómio bica-bagaço de cuja imprescindibilidade quotidiana os estranjas, Belgas ou não, sabem nada. Encontrei o que desejava no n.º 6 da Rue Lesbroussart: o brioso Café Braga. Adentrei o estabelecimento e, ao balcão, soltei um quase estentóreo “– Atão munto boas tardes ós presentes.” Correu muito bem, como só podia. Tomei quatro chávenas lusíadas à maneirex, nada que ver com a água-de-lavar-cafeteiras a que os Belgas chamam café. Deixei-me por ali estar coisa de hora & meia a parlapiar com os circunstantes sobre benficas-sportings-e-coiso. Só havia um casalito indígena namorando em bárbara língua, o resto era tudo portuga, mormente minhotos. Um rapaz já descriado, que era de Monção (recordo isto como se estivesse sendo agora), ofereceu-me um sorriso manhoso do maior entendimento tácito. Devolvi o sorriso, mas só já na rua percebi o porquê da peculiar simpatia: o magano interpretara a fragrância da embalagem de incenso como sinal de substância para fumar às escondidas, daquele material que ou faz rir ou dá fome ou as duas coisas. Regressei ao hotel sem maior novidade e dois dias depois ao nosso incomparável, egrégio & ínclito torrão pátrio.
Antes da Bélgica, tinha ido a Cabo Verde. Faz Julho próximo vinte anos. Foi também por trabalho, que na altura me não faltava mas hoje não hei nem há. Hei-de talvez cronicar ainda algumas linhas sobre essa demora de três semanas na Cidade da Praia, não agora. Também já fui a Vigo, a Sevilha e a Madrid. Não importa, agora.
Agora, estou fazendo a mala (pequena) para a viagem de sexta-feira próxima. Sou maníaco de indispensáveis, tendo portanto aprestado já no bornal o seguinte (enquanto enumero, colmato falhas): o retrato de casamento dos meus Pais (original de 25 de Julho de 1943), os dez volumes de Portugal Século XX – Crónica em Imagens de Joaquim Vieira et alii para o Círculo de Leitores, um frasco de maçãs cozidas em calda de açúcar, um par sobresselente de atacadores das botas (para não arrastar a marcha em terra alheia), uma carta manuscrita de recomendação da minha pessoa dirigida ao senhor presidente da Misericórdia local (mas a utilizar só em caso de agonia súbita tipo falta de carcanhóis para o regresso), gravata para exibição na Assembleia Municipal (mais o bigode postiço para me não associarem aos gajos do jornal), papelucho com rol de presentes endógenos (tóxicos e inócuos) a adquirir em lojas certificadas, a camisa branca mais a outra que é castanha (mas só usar esta com camisola por ter um rasgão diagonal à altura do fígado), pão & arroz para a passarada de lá e o lápis do costume.
A ver se na lista me não esquece de apontar o incenso, que o belga já se me acabou há uma irremediável eternidade. Isso – e voltar à primeira oportunidade, que a mulher pode habituar-se ao sossego, e depois, posto e vivendo na rua, ainda me arriscar a ser abraçado pelo senhor Professor Presidente Marcelo, de lágrimas os dois qual par de Madalenas tipo andava-a-desgraçadinha-no-gamanço.

02/02/2017

FÁBULA DE INVERNO COM UM BOCADITO DE VERDADE - Rosário Breve nº 491 - in O RIBATEJO de 2 de Fevereiro de 2017 - www.oribatejo.pt





Fábula de Inverno com um bocadito de verdade



Gosto do Inverno. É quando mais franco se me volve aquele verso de Whitman: “Eu estou no meu lugar com os meus dias, aqui.” Rondei o derradeiro dia de Janeiro na condição de amador do tempo que fazia.
Era o império da morrinha. Do céu fosco, do céu sem um brilho, abóbada laminada a estanho, descendia espargindo-se a poalha atomizada. Pelas esplanadas, ninguém. Era como se tivesse caído a Bomba. O esquisito foi depois.
Entrei na tabacaria. Ninguém. Tudo ali à mão de pilhar. Luzes acesas sim senhor, registadora electrónica mostrando a última venda, jornais do dia, revistas da semana, fascículos coleccionáveis, aventais de raspadinhas esperando a moeda fricativa dos tesos de fortuna, copo de lápis, copo de esferográficas, chocolates finalmente baratos, brindes sorteáveis, canecas temáticas, jogos didácticos para crianças do meu tempo, dêvêdês de um tempo que vai deixando de ser meu, flores azuis e de plástico numa jarra feia como a minha cara de quando durmo & como a de quando estou acordado, tudo e menos alguma coisa.
Balbuciei: SôrAnacleto!”. Nada. SôraJudite!”. Túmulo. M’nineIvone!”. Espaço sideral. De imediato, sabendo-me portador de impunidade, do meu ombro direito sopra-me o Diabo encavalitado: “Gama o que quiseres, anjinho, isto hoje é tudo à fartazana.” Menos de metade de segundo depois, do ombro oposto o senhor meu Pai assim e assim só: “Filho.”
Não foi preciso mais nada. Rodei a esquina do balcão, tirei da estante do tabaco o maço da minha marca, deixei as moedas contadas entre o visor e as teclas da registadora. Saí. Saí um bocadito turvado pela sensação de ter ouvido fantasmas tuteadores & tuteladores.
Voltei para casa. Esperei pela minha Senhora. A minha Senhora voltou.
Contei-lhe o que se tinha passado. Ela ouviu tudo sem me interromper. Quando acabei, quis saber o que achava ela. Ela achou.
Achou que “Se o anterior executivo da Câmara do Cartaxo tivesse feito o mesmo que tu fizeste, escusaria agora o pobre Pedro Ribeiro de andar a tapar buracos sem poder deixar grande obra feita.”
Isto foi a minha Senhora a achar, que eu, por mim, não acho nada. Sou achado. Onde? No meu lugar com os meus dias.
Aqui.


Canzoada Assaltante