30/06/2016

Rosário Breve nº 463 - in O RIBATEJO de 30 de Junho de 2016 - www.oribatejo.pt

Da arte do chá

1 Parece que a última Convenção do Bloco (dito) de Esquerda ofereceu ribalta a uma farsola triste: a da assuada de que foi alvo a delegação, aliás convidada, do Syriza. Achei mal os apupos como o caraças. Para mim, ninguém lhano, ninguém gentil, ninguém cordato, ninguém bem educado – humilha, achincalha, indispõe &/ou enxovalha a quem, chamado por alguém, à casa de alguém acede. Os meus Pais sempre me inculcaram a evidência de ser o gesto a valer a mão, não o anel a valer o dedo. Catarina: o que aos gregos fizeram (pelo menos parte dos bloquistas com assento na plateia), justapõe duas em uma palavra só – má-criação. Não tem a ver com esquerda. Não tem a ver com direita. Não tem, sequer, a ver com política. Tem a ver com um pouquito mais de chá & com um bocadito menos de erva-fumada-para-rir na idade supostamente adulta. A dita assuada apupa-vaiante do BE ao Syriza fez-me, todavia, bem. Fez-me bem ao fazer-me, como me fez, voltar ao convívio do grande Poeta latino que Horácio foi, é & há-de ser. E a Horácio porquê?
2 Porque Horácio escreveu (cf. Epístolas, Livro II, 1.156): “Græcia capta ferum victorem cepit”. Em nosso Português: “A Grécia dominada superou o seu feroz vencedor”. Mas fará sentido ser, ante malcriados, citador do imorredouro legado horaciano? Fará. Porquê?
3 Porque citar um latino a propósito de gregos causa sempre certo frisson erudito. Impressiona sempre os coríntios. Engasga sempre os zebedeus. Faz sempre tossir à bruta os fumadores de palha magrebina. E faz sempre estacar em gelo os adoradores do fogo fácil: aquele fogo que queima sem saber que um dia tudo arde. Que um dia tudo arde para pedagogia finalmente adulta de certa parte da plateia do BE.
4 Entrementes, numa certa ilha não longínqua da Convenção catarinista, o Reino (des)Unido pôs-se na alheta/de frosques/vila-diogo do projecto pan-europeu nascido do pós-II Guerra Mundial. Sem pedir licença à miúda do Bloco, o mais vulgar cidadão cockney , nostálgico talvez de bifes de vaca não-louca, procedeu à edição de si mesmo em separata do breviário franco-alemão + ex-soberanias-cachopitas-satélites como por exemplo nós-Portugal. O que os Britânicos referendaram hoje será anteontem no dia a seguir a amanhã. Só isso. Ninguém sabe o que a seguir virá. Só eu sei. Só eu sei por que não fico em casa com o que sei. Saio de casa e venho a esta derradeira página do jornal berrar o que sei. Não é da realidade-Brexit-e-agora,-UE? que falo. É de Horácio. É de Horácio & é para aquela parte malcriada do BE. Trata-se do resto da citação do Poeta nascido a 8 de Dezembro quando faltavam 65 anos para o Cristo da manjedoura. Por causa disto: ao receber tão arruaceira & tão infelizmente em sua própria casa os convidados gregos, parte dos bloquistas neófitos da-coisa-depressa-mas-da-causa-devagar merece saber o latinório todo. O qual é: Græcia capta ferum victorem cepit et artes/Intuit agresti Latio”. Ou seja: “A Grécia dominada superou o seu feroz vencedor e introduziu as artes no agreste Lácio”. Ora, quem diz Lácio, Catarina, diz (des)União Europeia. Porquê, Catarina?
5 Porque, Catarina, a boa-criação é adereço comportamental da arte do chá, arte a que os Gregos, miúda, nem sempre chamavam cicuta

Rosário Breve nº 463 - in O RIBATEJO de 30 de Junho de 2016 - www.oribatejo.pt

Da arte do chá

1 Parece que a última Convenção do Bloco (dito) de Esquerda ofereceu ribalta a uma farsola triste: a da assuada de que foi alvo a delegação, aliás convidada, do Syriza. Achei mal os apupos como o caraças. Para mim, ninguém lhano, ninguém gentil, ninguém cordato, ninguém bem educado – humilha, achincalha, indispõe &/ou enxovalha a quem, chamado por alguém, à casa de alguém acede. Os meus Pais sempre me inculcaram a evidência de ser o gesto a valer a mão, não o anel a valer o dedo. Catarina: o que aos gregos fizeram (pelo menos parte dos bloquistas com assento na plateia), justapõe duas em uma palavra só – má-criação. Não tem a ver com esquerda. Não tem a ver com direita. Não tem, sequer, a ver com política. Tem a ver com um pouquito mais de chá & com um bocadito menos de erva-fumada-para-rir na idade supostamente adulta. A dita assuada apupa-vaiante do BE ao Syriza fez-me, todavia, bem. Fez-me bem ao fazer-me, como me fez, voltar ao convívio do grande Poeta latino que Horácio foi, é & há-de ser. E a Horácio porquê?
2 Porque Horácio escreveu (cf. Epístolas, Livro II, 1.156): “Græcia capta ferum victorem cepit”. Em nosso Português: “A Grécia dominada superou o seu feroz vencedor”. Mas fará sentido ser, ante malcriados, citador do imorredouro legado horaciano? Fará. Porquê?
3 Porque citar um latino a propósito de gregos causa sempre certo frisson erudito. Impressiona sempre os coríntios. Engasga sempre os zebedeus. Faz sempre tossir à bruta os fumadores de palha magrebina. E faz sempre estacar em gelo os adoradores do fogo fácil: aquele fogo que queima sem saber que um dia tudo arde. Que um dia tudo arde para pedagogia finalmente adulta de certa parte da plateia do BE.
4 Entrementes, numa certa ilha não longínqua da Convenção catarinista, o Reino (des)Unido pôs-se na alheta/de frosques/vila-diogo do projecto pan-europeu nascido do pós-II Guerra Mundial. Sem pedir licença à miúda do Bloco, o mais vulgar cidadão cockney , nostálgico talvez de bifes de vaca não-louca, procedeu à edição de si mesmo em separata do breviário franco-alemão + ex-soberanias-cachopitas-satélites como por exemplo nós-Portugal. O que os Britânicos referendaram hoje será anteontem no dia a seguir a amanhã. Só isso. Ninguém sabe o que a seguir virá. Só eu sei. Só eu sei por que não fico em casa com o que sei. Saio de casa e venho a esta derradeira página do jornal berrar o que sei. Não é da realidade-Brexit-e-agora,-UE? que falo. É de Horácio. É de Horácio & é para aquela parte malcriada do BE. Trata-se do resto da citação do Poeta nascido a 8 de Dezembro quando faltavam 65 anos para o Cristo da manjedoura. Por causa disto: ao receber tão arruaceira & tão infelizmente em sua própria casa os convidados gregos, parte dos bloquistas neófitos da-coisa-depressa-mas-da-causa-devagar merecem saber o latinório todo. O qual é: Græcia capta ferum victorem cepit et artes/Intuit agresti Latio”. Ou seja: “A Grécia dominada superou o seu feroz vencedor e introduziu as artes no agreste Lácio”. Ora, quem diz Lácio, Catarina, diz (des)União Europeia. Porquê, Catarina?
5 Porque, Catarina, a boa-criação é adereço comportamental da arte do chá, arte a que os Gregos, miúda, nem sempre chamavam cicuta

23/06/2016

Rosário Breve nº 462 - in O RIBATEJO de 23 de Junho de 2016 - www.oribatejo.pt

Querendo, leiam só o ponto 6

1 “Recapitalização”. É novo eufemismo para “reiteração de roubalheira”. Aplica-se, agora, à Caixa Geral de Depósitos. A coisa pública. Até agora, parecia coisa exclusiva dos bancos privados. Aqueles que, havendo outrora lucros, gozavam privadamente deles. Aqueles que, havendo agora prejuízos, gozam publicamente da tal “recapitalização”. Um vento de insanidade devasta sem obstáculos a banca à portuguesa. E vai tudo dar ao mesmo. E vai tudo dar aos mesmos.
2 Uma mulher desconfia de andar a ser corneada pelo marido. Vai daí, afoga o próprio filho de ambos. Não consigo descortinar a relação causa-efeito. É como se, de repente, a realidade portuguesa se tenha posto toda a imitar o Correio da Manhã.
3 Recentemente, uma senhora apontou-me o dedo indicador: “O senhor só escreve coisas pessimistas.” Foi o que o dedo me disse. E eu, que tenho por norma não chamar “idiota” a uma senhora, acabei sofrendo a desconfiança de ter começado este mesmo ponto 3 chamando “senhora” a uma idiota.
4 Sem convite, uma recordação irrompe-me redacção adentro: a daquele dia em que a minha Senhora & eu fomos a Santarém visitar o meu cunhado Zé Carlos. Dei uma volta anónima pelo burgo. Fixou-se-me à retina o lixo, o mesmo que agora é bárbara moda incendiar nos contentores. Pelas ruas, as imundícies voavam baixinho como os crocodilos. Garrafas de plástico. Sacos da mesma matéria. Cascas de melão. Fotografias rasgadas. Livros do Rodrigues dos Santos e do Paulo Coelho. Alarmes internos da Caixa Geral de Depósitos. Classificados de massagistas do tal Correio da Manhã. Esse dia já lá vai e cá não volta. Recordo todavia o regresso: deu-se por terras mais limpas, mais lavadas, menos sujeitas à incúria insensata que propicia comportamentos de intolerável vandalismo anti-cívico.
5 Devagarinho e silencioso como um gato, o Verão acabou chegando. É como se o nosso vizinho Norte de África tivesse de repente escancarado o portal do forno. Toda a gente sabe que Outono & Primavera são coisas que já não existem. A Madre-Natura já só exerce o maniqueísmo: ou invernia agreste, ou estiagem canicular. A moderação temperada esticou o pernil. Sofro pena disso. À brutalidade centígrada, prefiro o que já não podemos ter: a sombra humanista da rendilhada latada de cachos, o suavíssimo favónio beira-fluvial de ir ali com a mulher às cerejas. Mas o real não é dado a versos. Nem para eles caminha.
6 Caminho eu para sábado próximo. Será 25 de Junho. Pelas quatro da tarde dessa jornada, procederei à apresentação pública de um livro chamado Júlio Dinis – As Pupilas do Senhor Escritor. A obra tem autoria do nosso Joaquim Jorge Carvalho, que no também nosso O RIBATEJO assina semanalmente, a páginas cinco, a coluna Zona dos Perecíveis. É a tese de doutoramento deste meu máximo Amigo pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Acontecerá no esplendoroso Café Santa Cruz, paredes-meias com o vetusto templo do mesmo nome. Em boa hora, por bom motivo. E por à meia-dúzia ser mais barato, neste exacto ponto 6 dou provimento de fecho à crónica – quanto menos não fosse, para contrariar a senhoril idiota do ponto 3.




CONTRA OS CANHÕES n.º 5 - in Quinzenário TREVIM de 23 de Junho de 2016

Assunto com janela

Era um homem que tinha e mantinha um gato. O gato era velho, o homem também. Ambos respiravam, comiam e dormiam numa casa do extremo da aldeia. Pela chaminé descia a voz dos pássaros. O gato, enroscado na cama de jornais, abria um olho e recordava caçadas jovens. O homem tinha umas chinelas de pano onde guardava os pés magros. No fogão a lenha, cozia um pedaço de carne entre feijões e couve. Dividia o caldo e a carne com o gato, fazia café, que o gato não apreciava, ficava-se a ver as brasas com um cachimbo de ébano na boca. No mundo de fora, o vento levava a chuva e as folhas a passear pelas alturas.
Um dia, o homem ficou muito doente. O gato percebeu logo. Enroscou-se-lhe aos pés e esperou. O homem não melhorava. O tempo, sim. Cá fora, o sol fazia filmes com os pinheiros, a brisa embebedava as andorinhas, o cheiro da resina tomava conta da madeira perpétua das horas.
O gato levantou-se, saltou da cama e procurou uma saída. As portas e as janelas estavam fechadas. Todas elas. O gato falou, então. Emitiu aquela frase crescente que sobressalta o coração. Há um tigre em cada gato. O homem não reagiu porque estava todo ocupado a morrer. O gato cheirou a presença autoritária do fim do homem. Eram velhos, tinham tido tempo para compreender que se morre de tanto estar vivo.
Pulou para a cómoda e atirou-se pelo vidro. Na rua, entre cacos, o gato olhou a esquerda e a direita. Tinha de decidir-se por um lado.
Na cama, o homem sentiu o ar que entrava pela janela partida. Louvou intimamente a sabedoria do seu gato. Deixou-se estar, não lamentando nada, esperando apenas que a sua noite interior arranjasse maneira de fechar aquela janela, levando-o para longe de uma primavera que já não era para ele, uma primavera que, exclusivamente, era um assunto de tigres.


16/06/2016

Rosário Breve nº 461 - in O RIBATEJO de 16 de Junho de 2016 - www.oribatejo.pt



Onze milhões de Emplastros

É que nem Salazar teria sido capaz de tão alto feito: desmiolar toda uma república mercê de um desporto dito rei.
Não recuo um milímetro nem tiro uma sílaba ao título que escolhi para a crónica desta semana. Desgosta-me profundamente toda a euforia de plástico que pelo meu País, por desgraça, grassa. Outra vez as bandeiretas compradas nos chineses, caraças! Outra vez os patriotas da boca-para-fora, chiça! Ainda e sempre a impossibilidade de ligar a TV, num canal produzido cá, sem que os rebanhos de totós (quantos deles desempregados?) não irrompam pela pantalha mui parv’alegres, micóticos como a sarna, amostardados como o sinapismo cataplasmante – e de uma moral tipo impingem que já não vale a pena coçar.
Eu gosto muito de bola, juro que gosto. Até corri atrás dela que nunca me fartei, na minha remo(r)ta mocidade que não volta. Mas isto é de mais: a alienação a granel de uma gente que não é senão culpada da própria mi(s)tificação a que de tão bom grado se sujeita – e tudo sem um ai, sem um vagido, sem um isto-é-tudo-muito-lindo-mas-então-e-os-contratos-a-prazo-a-dívida-externa-o-Estado-a-socorrer-os-banqueiros-o-petróleo-no-Algarve-o-nuclear-em-Espanha-às-portas-da-fronteira-via-Tejo?
Quem há-de rinchavelhar-se desbragadamente com tudo isto há-de ser o Pepe. Todo o tuga conhece este grande lusíada. Pepe 10 – Jorge de Sena 0.
Rui Patrício 5 – Miguel Bombarda 0. Renato Sanches 4 – Passos Manuel 0. Quaresma 8 – Aristides de Sousa Mendes 0. CR7 1000 – Bernardo Santareno 0. E, de repente, a realidade: Portugal 1 – Islândia 1.
Já tive mais pena que assim fosse, seja & continue a ser. Com os anos, o futebol foi & veio dando lugar, no meu caso como na minha casa, a outras predilecções lúdicas: a gotinha de soro nos olhos a horas certas, a pastilhinha de alopurinol para prevenção da artrite gotosa, o copinho de água fria em jejum para lavar as vielas arteriais seguido do copinho de leite morno para caiar a adega, o chegar cedo ao Café da Graciete tal que a mesa predilecta de fazer as crónicas não esteja ocupada por algum meliante que escreva para outro jornal.
Não, nem sílaba nem milímetro retiro ao título. Tanto patusco também cansa. Tanto carneiro também farta. Tanta micose também exaspera. E tanta idiotia também aleija. Ainda se…
Ainda se os gajos das quinas em campo fossem, sei cá, o Damas, o Jordão, o Vítor Baptista, o Arnaldo, o Lourenço, o Lemos, o Pavão, o Coluna, o Manuel António, o Travassos e o Matateu, isso ’tá bem, isso é que era uma esquadra de ataque à maneira. E o Eusébio no banco a descansar um bocadito sem ser para sempre como agora está.
E, claro, eu como treinador, que percebo muito mais de ser emplastro do que certos 11 milhões de outros que eu bem cá sei mas não digo quem são. 

09/06/2016

PPPPortugal - republicação de crónica, agora in o quinzenário TREVIM (Lousã), edição de 9 de Junho de 2016

PPPPortugal

Passam por Portugal políticos possuídos pela profunda predestinação peregrina prescrita pelos próprios poderes. Poucos praticaram, porém, planos políticos plenamente populares. Preferem passear pelas populações prègando promessas, pedindo palmas, pagando púcaros, pisando pó por perímetros populares, pulando “pasodobles” pimbas, pregando petas pouco polidas.
Presentemente, Portugal passa por pacóvio período. Peço paciência para poder provocar pensamento: poderá Portugal precaver-se perante poderosas panelinhas pantafaçudas? Pândegas, patuscadas, panfletos, pandeiros, passeios: por perfeita portugalidade, Portugal prefere parecer pequenino, perfeitinho, pimpolhinho. Poderia projectar (por plenário popular) palavras potentes, precisas, poéticas. Prefere, porém, pedestais. Pode parecer pouco, pois pode.
Penso poder precisar perfeitamente, ponto por ponto, patentes promulgações. Portugal precisa parar para pensar, para perceber, para proliferar prometedoramente. Posteriormente, procuraria pedalada para, presciente, poder presenciar prezáveis porvires.
Pedi-vos paciência para portugalizar, por palavras portuguesíssimas (perdão pelos “pasodobles”…), pesados pensamentos pensados por puro prazer provocatório. Pedir perdão passa, porém, por perdidas portas. Pela presente, passarei por profano. Pessoalmente, prefiro passar por próprio pé. Porquê? Porque passarei pouco possuído, pouco profundo, pouco predestinado, pouco político.

Rosário Breve nº 460 - in O RIBATEJO de 9 de Junho de 2016 - www.oribatejo.pt

Do estrangeiro quase pobre




1. Pobrezas

A gente é pobre, mas pobre não é gente. Pobre só é gente no Natal, quando faz de pobrezinho. Pobre vota, mas não conta. Pobre desconta.
Pode ser-se pobre estando rico. Mas ser pobre não enriquece. Rico pobre é o que se remedeia. Remediar-se empobrece muito mais no tal Natal.
Uma coisa é a gente ser pobre. Ser remediado é a mesma coisa. Mas estar rico não é o mesmo que ser rico. Ser rico pode ser estar pobre. Remediado é que não.
Remedeio não é remédio. Remédio é cara da coroa da doença. Doença é quando se pensa. Pensar empobrece, não remedeia nem enriquece.
Pobre vale mais quando não tem remédio. Menos quando tem remedeio. Quando tem remedeio, pobre é rico pobre.
Pobre rico é outra coisa. Vive remediado e morre pobre. Enriquecer a vida é empobrecer a morte. Mas remediá-la é matá-la porque é empobrecê-la. Como pensá-la é tudo menos remediá-la.
Pobre vota, mas não bota. Pobre perdigota. Pobre perde e gosta. Não gasta. Gosta. Remediado também gosta, mas bota. Bota rico porque vota pobre.
Que remédio.

2. Um estrangeiro quase feliz

Moro em Portugal desde que nasci, o que, naturalmente, não abona muito a meu favor. Sou mais um estrangeiro, portanto. Sim, é estrangeiro que me sinto. Manhã muito cedo, por exemplo, vou ao café do meu vizinho tomar a primeira chávena do dia. Como trabalho por conta própria, deixo-me estar. Ainda por cima, é permitido fumar. Porreiro. Então, ligam o televisor. É fatal: TVI. É fatal: o Goucha. Sou corrido por aquela portugalidade que me resulta inaceitável, intolerável, insustentável, incontornável. Cá fora, chove. Escolho outro sítio para escrever. Descobri um que, coisa rara, não tem televisão.
É o cemitério. Entro, escolho um jazigo com degraus, sossego o coração, trabalho. Ninguém me chateia. Estou ali na paz do Senhor. O vento dá nas árvores, as aves pontuam reticências pelo papel do céu, deixou de chover, uma farpa de sol fura o cartão das nuvens. Quando preciso de algum nome para uma personagem, dou uma volta pelo labirinto simples das sepulturas. O primeiro nome deste senhor aqui, o segundo daquele e os dois últimos desta tão saudosa e estremecida senhora. Como vou morar em Portugal até morrer, já ando, por assim dizer, entre eternas saudades. Pelo fim da tarde, concedo-me uma hora de faz-nenhum e descanso em paz. Dou pão aos pombos e aos pardais da praça, ouço o canto branco da fonte luminosa, vejo passar as mulheres dos outros, vou ao parque sentir os anjos que se fazem pedra quando são descobertos, desando pelas vielas húmidas, atravesso uma praça de chão de gravilha, leio os nomes das ruas, cheiro as bancadas de fruta que alegram as ruas de uma felicidade vegetal, cheiro o frango voador das churrasqueiras, aprecio o rosto cheio de dignidade dos cães, resisto à tentação de nunca mais parar, paro, tomo um doce num tasco geriátrico cujas paredes contam calendários de santos e posters do Sporting – e sou quase feliz, apesar de estrangeiro no, afinal, meu País.

02/06/2016

Rosário Breve nº 459 - in O RIBATEJO de 2 de Junho de 2016 - www.oribatejo.pt





Lisboa vai ela



Vem tu daí comigo, meu justo & meu fiel Leitor, ao quintal das traseiras da minha lembrança. Concede-me esse obséquio que, impagável embora, tentarei remunerar-te mercê de uma Língua limpa e, como tu, fiel e justa.
Tenho trinta anos. O senhor meu Pai morre há bocadito. Eu bato com a porta. Tenho trinta anos e estou há anos de mais na Escola. Desemprego-me do giz & da ardósia. Vou para Lisboa.
Ânimo que a Lisboa me leva: viver, se não do que escrevo, para o que puder escrever. Escolhi bem o exílio: Lisboa é a brancura perpétua, escândalo de cal que, qual mulher fácil, se oferece sem preço à veia aberta do Tejo.
Adapto-me logo: a pé, venho dos Prazeres à Alameda para (re)conhecer tudo. Franqueio as Águas-Livres, espreito de longe a podridão exposta do Casal Ventoso, tenho cuidado com a carteira quando roço os manhosos de Alcântara, da de São Paulo ao Arsenal colho a sombra já mediterrânica que encharca as casas velhas, pesponto, pedestremente sempre, a Áurea e a Augusta, descambo afinal no mesmo Rossio onde os senhores pais do Eça tiveram um quarto-andar.
É bonita, a Velha Olisipo. Às Portas de Santo Antão, que Rua de Eugénio dos Santos foi mas ingratamente deixou de ser, apetece-me pipis de frango imiscuídos em pimenta e caril. Vou-me a eles.
Enquanto tasquinho as entranhas aviárias e impregno as papilas gustativas de indianas especiarias, sei muito bem que estou existindo sem doença nem remédio na Cidade da multidão chamada Fernando Pessoa, que chamou nomes a Deus, e do douto doutor tomarense chamado José-Augusto França, que felizmente Deus ainda não chamou.
De ali, saio a ver o Passeio Público, a que têm a mania de chamar Avenida da Liberdade. Subo, subo, balão de todo. Escancara-se-me o Marquês, o tremendo anti-jesuíta da Reconstrução pós-1755. Saturo-me sem saciedade possível de todo o articulado geométrico, amplo, respiratório. A luz é tanta, mas tanta, que chega a doer nos ossos da cara. Compasso o passo ao ritmo capital da Cidade. Finjo que sou feliz, que sou liberto, que nunca deixarei de ter trinta anos nem de ser órfão, ou órgão, de Pai.
Tenho um quarto no Bairro dos Artistas, a poucas passadas do Areeiro. Vinte-seis continhos por mês e por baixo da mesa: não há papéis nem Finanças para ninguém. Trabalho ali aos Mártires da Pátria, Jardim do Torel, tão perto do Irmão Doutor José Thomaz de Souza Martins, esse tão bom médico, esse tão bom homem. Recebo sessenta e duas milenas: é curto, mas tem de dar. E dá. Foi dando.
Repara agora, meu Justo & meu Fiel: há quarta-feira europeia, os energúmenos dos cachecóis infestam o metro, há que evitá-los pelo lado certo da noite. Vou ao bar do peep-show sito ao sopé da Calçada de Santo António da Glória. O balconista chama-se Fernando e é sportinguista. A cerveja é a trezentos paus. Ainda não aconteceu a roubalheira da conversão do escudo em euro. Fernando teve qualquer coisa a ver com o Parque Mayer, ali tão perto: não sei se uma nostalgia teatral, se uma mulher. Não inquiro. Saio.
É Lisboa outra vez: se eu quiser, dou à doida pela Fontes Pereira de Melo, devasso os Campos, chego a Campolide. Mas não quero. Quero antes isto: submeto-me à paranóia descomunal da fugacidade do Tempo, tenho mas é 52 anos e dou-me de cara(s) a ti, meu Fiel, meu Justo, num jornal que é, afinal, de Santarém, primeiro e último apeadeiro até à Coimbra de que nunca deixarei de ser, por mais boa que ela vá.

Canzoada Assaltante