28/01/2016

Rosário Breve n.º 441 - in O RIBATEJO de 28 de Janeiro de 2016 - www.oribatejo.pt

De volta


1. Há anos que o meu nascimento deixou de ser a notícia mais importante da vida que me coube. Envelhecer é devir subtitular, adjudicando aos Elementos o protagonismo capitular de que eles não abdicam – o vento nos canaviais, o rio construtor do mar pela terra, o céu ao alcance da mão que precisamente nos falta, a majestade do arvoredo fixador de dunas.
Uma das evidências mais bastamente contribuintes para esta minha afinal serenidade aconteceu-me há uns poucos anos, talvez vinte e uns trocos. Nascera-me havia pouco a minha Primeira. Fui visitado pelo seguinte axioma: “A minha morte já começou – lá onde estive e aonde não voltarei.” Como um ósculo do Demo, o sal dessa verdade fulminante mordeu-me o ápice da língua. E da Língua também.
Conservei tal sal, que é da terra como são do campo os lírios. E assim foi que cheguei a este Café. É noite já, a terça-feira instalou na província a sua barraca fugidia como os panoramas de janela de comboio.
2. De ampla, larga, longa camisa roxa (roxa, longa, larga & ampla como a túnica do Senhor dos Passos), um cavalheiro de cerca de meio-século-+-IVA tasquinha tremoços ao escanteiro do balcão-inox. É de pança rotunda como uma jibóia de geleia. Apresenta aquele ar de córnea abulia próprio de quem votou no coiso que se segue. Usa cachucho-pechisbeque a sul da unhaca mínima esquerda. Estrangulando-lhe o cachaço rubicundo, uma medalhinha fosforesce de catolicismo folclórico para inglês (protestante) ver. Os sapatos lamentáveis desmentem dele a abastança feirante: de napa mordida a ourelo falso, conhecem mais lama pecuária do que passadeiras vermelhas. E o porta-chaves cifrado a gritante BMW só dá ignição a um Opel Corsa de 1987 de estribos mais derreados do que asas de anjo desempregado. Nisto tudo, todavia, sei que é bom homem – que é muito bom homem, aliás. Veio da França, onde estava tão bem, ao mote de acudir a um irmão manhoso que, havendo sido bufo da PIDE-DGS, não chegou aos dez-de-junho do coiso que está de saída. O irmão sofria de remela capciosa, que é a cegueira em forma de resina-de-figo. Chegado de França, este senhor-dos-passos pagou tudo por ele: o desquite, o abate do cão, a lepra das dívidas da lerpa, a remoção do chocolate intestinal a que as cuecas dão sudário terminal. O tal irmão depois morreu-lhe – mas este não voltou à Gália. Deixou-se ficar para ser personagem de crónica.
3. Perto dele, mas também sozinha como uma lembrança viúva, mora uma faneca bípede que se calhar votou Belém sem Maria. Empunha um frasquito de anis cintado a filete azul e fuma palitos níveos que tresandam a mentol de casa-de-alterne. De repente, boceja: e é então que me é dada a epifania de suas estalactites aguçadas por aquele azul-cárie que resulta da amargura do açúcar-amarelo soluto em bagaço matinal. Ao fundo do cavername bucal, a úvula estremece-lhe como um pendurichocalho sineiro de capela pobre – e a boca do estômago fervilha de ácidos furiosos próprios só de quem não comeu hoje um freguês sequer. Obliqua-lhe o tiracolo uma faixa azul-celeste à maneira cerimonial da Sãozinha-de-Alenquer. A saia é travada a fundo como os Austin-Morris de fins de bebedeira. E o olhar é-lhe glauco como a borboleta ao quinto dia de nascida. Vale que não incomoda seja quem for. Está ali como um vaso. E aqui fica (d)escrita para V.ª ilustração.
4. Verdade: deixei de nascer desde que a minha Segunda, há década & meia mais uns pós, logrou romper da estapafúrdia corrida de girinos cabeçudos rumo ao sol-óvulo do seu destino. Entretenho-me por estas cercanias de nenhures numa espécie de êxtase grato à galeria infinita do mundo local. Às terças, recolho-me a um nicho cafeíno do pequeno-comércio e escrev(iv)o o que vejo e o que nem preciso de olhar. E dois dias depois a realidade torna-se jornal, o que nunca deixa de me parecer milagre: por ser, ao contrário do meu nascimento, sítio onde estive e aonde sempre voltarei.

24/01/2016

Para o senhor Augusto Mota, na Manhã de Domingo, 24 de Janeiro de 2016



(E esses – lacónicos, lancinantes –
instantes em que, de manhã mesmo embora,
a vida se faz tarde?
Qualquer coisa ardeu & já não arde:
é a Hora.)

***

Somos o que envelhecemos.
Hemos só o que em velhos somos.

21/01/2016

Rosário Breve n.º 440 - in O RIBATEJO de 21 de Janeiro de 2016 - www.oribatejo.pt

É engraçado mas falo a sério

Voltarei, nesta Presidenciais, a votar em Manuel de Arriaga.
É-me despiciendo o facto de o ilustre Terceirense (açoreano da Horta, n. 1840) estar fisicamente defunto desde 1917 – é no mesmo que voto na mesma.
Quero-me representado por uma figura de natural humanismo, de cívicas bondade & benevolência, de regrado carácter, de exemplar sentido de causa & serviço públicos, de alto empenho na justiça social – e, já agora, panteísta, que era como chamavam aos ecólogo-ambientalistas quando ainda era preciso meter deuses ao barulho de rerum natura.
Interessa-me, e muito, que o mais alto magistrado da Nação não seja um ganancioso predador-distribuidor de honras, ribaltas, milhões, clientelas & milhões. O Dr. Manuel de Arriaga não é, seguramente o não foi nem o será, desses. Quando eleito, foi o primeiro a ocupar o Palácio de Belém – mas (note-se isto muito bem) por sua conta. O arrendamento de 100 escudos ao mês era satisfeito pelo bolso dele. Assim como a viatura automóvel que oficializou no cargo: comprou-a ele, acabando de pagá-la a prestações quando já resignara à Presidência. Sim, um homem assim interessa-me. Voltarei (sempre) a votar nele. Não tenho feito outra coisa, aliás. Quando foi do Soares, votei Manuel de Arriaga. Quando foi do (outro) Sampaio, votei Manuel de Arriaga. Quando foi disto, votei Manuel de Arriaga. E tenho ganhado sempre, ao contrário do País.
Sabendo-o adversário tenaz do analfabetismo (o do tempo que foi dele, à volta dos 80%; e o do nosso, que andará à volta do mesmo, evidenciando-se tal conclusão de uma rápida mirada às redes ditas sociais), tenho-o por aposta certa & vencedora nestes nossos tão desdentados dias. Agrada-me, além de tudo o mais, que a sua/dele Lucrécia não seja de Bórgia mas de Brito – e não do Vaticano mas da Ilha do Pico.
Sim, a minha cruzinha plebiscitará sem pestanejo o portador do primeiro Bilhete de Identidade alguma vez emitido pelo novel Registo Civil deste País.
E a quem eventualmente me acuse de eleger um morto, um fantasma, uma assombração, um espectro, uma múmia – ouvirá de mim a defesa acusadora de o mesmo terem feito, em recentes anos, os meus contemporâneos – e por dois mandatos consecutivos.


15/01/2016

Linhas de há pouco, esta tarde

Tarde de sexta-feira, 15 de Janeiro de 2016



***

Como em bruma as casas, ao lado delas
as árvores que merecem, cuidando-as cuidadas.
Criadas, as crianças, como em bruma,
partem.
E mais não voltam.

***

Pano luminar é a jornada-hoje.
A refracção das cores arco-irisa o olhá-las.
O Tempo é fugaz, mas esta luz não foge.
A um & a outra saibamos merecevivê-las.

***

Íntima química, esta Lux-Portuguesa.
Vale afinal tanta pena,
haver aqui,
dEla,
para-Ela,
nascido.

***

Quatro mulheres portuguesas
àquela mesa da esplanada:
jogadoras sem cartas, cuja presa
é a-vida-das-outras. Mai’ nada.

***

Pela poesia,
o cidadão-pomba
julga-se rôla.
Sobretudo sendo,
a poesia,
tôla.

***

Parda
parada
casa
casada
ao vento
co’squecimento.


14/01/2016

Rosário Breve n.º 439 - in O RIBATEJO de 14 de Janeiro de 2016 - www.oribatejo.pt

Expedição

O pico da montanha reverbera no vidro nítido do ar-longe. De cá, mulas & homens, provisões & desejos. Mantimentos longamente acumulados na ideia. Planos que entretiveram vários invernos. Homens & animais em transe de libertação.
Na estalagem toda de madeira, esperam. Toda de madeira excepto a estrutura lareira-chaminé. A mesa longa & larga pode albergar dezasseis comedores, mas os animais comem lá fora.
A Primavera demora o tempo de que precisa. Eles, homens, também; elas, mulas, também. Há um cão: chama-se Rafael e não é moço já.
Os estalajadeiros são o casal Gottlieb: Hermann Gottlieb tem 67 anos e é gordo; Marlene Gottlieb (née Zweig) tem 62 anos e é magra. Dão-se bem, comungam o silêncio retórico de muitos anos de matrimónio construtivo.
Os homens são oito.
Gunther Schwarz é sueco, 28 anos, foi mecânico (de bicicletas).
Telemann Kaltz é alemão, 42, foi aviador (de copos, não de aviões).
Claudio Baresi é suíço do cantão italiano, tem 50 anos, foi pediatra.
Arménio Jordão, português de Sintra, 39, foi rico.
Jelavert Zubizarreta, basco e de 19 anos, estudou enfermagem.
Thomas Osgood é inglês de Yorkshire, 64, foi bibliotecário.
Oleg Mikhaylichenko é russo, 74, foi professor-primário.
E o sénior é Astor Nicopolidis, grego, 85, que não se recorda (ou pretende não recordar-se) do que fez & foi na vida activa.
(Nota do redactor: o tempo verbal que antecede todas & cada uma das oito profissões é o pretérito-perfeito. Não é mera coincidência nem estilístico descuido. É de propósito. E é de propósito porque a ser não voltam aquilo que foram. Estão, os oito, em modo & condição pré-terminal da doença-do-caranguejo. Dispõem de umas muito poucas semanas para que o cancro de vez os desembarace do fardo do nascimento. E é por isso que, supra, foi escrito: “em transe de libertação”.)
E os animais – também? Sim. Também. Chegando os dezasseis seres à montanha, as oito mulas tornar-se-ão libertas. Os homens acamparão para continuar à espera. Quando lá no sopé da majestosa elevação, não terão forças já para qualquer veleidade andina, alpínica ou himalaica. Mas também não há-de ser isso a desconfortá-los, ou a frustrá-los, ou a (di)feri-los. Já só hão-de esperar a espera mesma. Estas coisas são de nenhuma volta a dar-lhes. Estes oito só diferem por ter decidido esperar andando.
Reuniram-se em Istambul, perto do sítio onde ainda agora há poucos dias o sacana dum islamita-radical-suicida deflagrou uma dezena de turistas. Demoraram-se dois dias & duas noites na antiga capital imperial que foi Constantinopla depois de haver sido Bizâncio. Depois, vieram para esta página, perdão, para esta estalagem tão sossegadamente gerida pelos Gottlieb.
Esta noite, jantaram carne prensada, ervilhas, sopa de tomate & marzipã. Ei-los derredor-lume, uns tomando café (Gunther, Claudio, Thomas), outros havendo chá (Oleg, Jelavert) , outros xarope-de-groselha (Telemann, Astor) – e Arménio, vinho tinto aquecido. Antes de subirem para dormir, Claudio sugere que cada um escreva ao seu-alguém (se algum) uma última carta. As oito missivas terão Marlene & Hermann como fidelíssimos-depositários-da-puridade. Uns dizem que sim (Thomas, Telemann, Arménio, Gunther), um diz que não (Jelavert), Oleg & Astor respondem que vão pensar nisso.
Sabe-se agora (sete da manhã mais catorze minutos) que não será já bi-octogonal a expedição terminal-humana. Não pelas mulas, que estão robustas. É que já só sete dos homens respiram – posto que Jelavert, sofrendo de uma marrada mortífera do desespero, se cortou os pulsos antes de afogá-los no balde que faz a vez de autoclismo (é modesta, a albergaria gottliébica).
Nem por isso cancelam a expedição. Ao ar-longe-vidro, a montanha chama-os, um-a-um, pelo nome próprio, à parecença do que nesta mesma redacção acima se fez aquando das enumerações relativas. E como à consciência acontece com a rápida ingestão de ar gelado pelas esponjas pulmonares, o eco amplia os homens: (…) arzzarzzarzz, altztzztzz, ésiésiési, dãoãoão, zgudgudgud, xencoencoenco, ólidislidislidis (…)
Pacientes como budas, as mulas aproveitam para escarvar enquanto esperam, ao passo que o Rafael as azucrina fingindo que lhes morde as assaz delicadas canelas, cena que, apesar de tão divertida & tão preciosa, não constará da carta que por alguma razão Jelavert decidiu não escrever, de si, como se (ou)viu, nem eco deixando. 

01/01/2016

Rosário Breve n.º 438 - in O RIBATEJO de 7 de Janeiro de 2016

Cesário Laranja

Vou esta manhã à minha terra. É pelo funeral de uma senhora-mãe de gente da minha criação. Mais uma, menos uma. A prova-dos-nove é consabida.
Ainda lá não cheguei. Preparo em casa a expedição. Preciso de coisas mínimas, que passo a enumerar: lápis, afiadeira, caderno pequeno, Cesário Verde em edição-de-bolso; sapatos pretos, casaco melhorzito dos dois que tenho, gorro tapa-orelhas, suspensórios cor-de-ceroula; pacote de bolachas-baunilha, laranja, rebuçados de anis, garrafinha de sovaco sem ser com água; moedas para dois cafés, óculos de perder ao perto & ao longe, número de telefone da minha Senhora escrito em vários papéis espalhados pelos bolsos, medalhinha-de-São-Cristóvão para afugentar os azares de andar um dia inteiro fora de casa; cartão de sócio dos Bombeiros, fotografia de um cão que tive & a que ainda pertenço, lembrança do nome das ruas primevas, fixação do meu próprio nome para quando, no cemitério, as mulheres mais velhas me perguntarem qual dos sete da D.ª Hermínia é que eu sou afinal.
Estou agora a sair de casa. Frescote das sete da manhã. Gasto a penúltima moeda no primeiro café. Atiro-me pela beira-rio, faço a azinhaga dos plátanos, saúdo os patos, desemboco na praça da antiga moagem. Adquiro-me o bilhete, aproveito o jornal velho que dormia aos pés de um sem-abrigo caído em combate no banco-de-espera da gare, folheio a perpétua inactualidade do real, como a primeira baunilha. Embarco. Viagem espacial: vórtice-continuum feito de estrelas apeadas, berma-árvores velocíssimas, pastagens salpicadas de ovelhas como poalha de diamantes, colinas-constelações, oficinas-auto com os nomes dos donos em manchete. Pouca gente na minha nave: um rapazola de phones autistas, um cavalheiro de hepática amarelidão, um casal sem alegria de o ser e o motorista, cujos tufos de pêlo peitoral lutam para estoirar os botões da camisa. Pela énemilésima vez, o meu Cesário ajuda a regateira de verduras a içar a giga do chão.
Estou chegando: eis o Mondego do Joaquim Jorge. A Cidade, num clarão de postal, faz-me bem de imediato. Conheço isto tudo. Cada canto me é episódico. Disponho de alguém conhecido por cada rua onde me vi sozinho. As pombas são as mesmas de há cinquenta anos. Já não há fábrica de artefactos de borracha, mas a paragem do autocarro é na mesma em frente a ela. Ali é a fábrica dos bilhetes-de-identidade. Além é onde se matou o filho do fotógrafo. Mais aquém, a parede da loja de ferragens continua manchada da sombra que lhe imprimiu a passagem de uma rapariga muito branca, muito vestida de azul, em 1977. Mas eis que eis o autocarro. Agora sim, muita gente. Rostos meus: o Serafim da Preciosa, que está reformado dos serviços municipalizados; a viúva do carteiro Arnaldo, que anda amigada, dizem as melhores-línguas, com o Antunes da serração; as netitas gémeas de um que foi polícia e depois preso e depois não se sabe que seja feito dele; e o motorista ser mulher chapa-me de repente o que isto mudou.
Apeio-me na minha Rua. Estou pronto.
Fiz bem em deixar a laranja como paga do jornal ao homem. 

Canzoada Assaltante