19/10/2013

Rosário Breve n.º 329 - in O RIBATEJO de 17 de Outubro de 2013 - www.oribatejo.pt


De ferreiro mau, só espeto de pau

Davam as cinco da tarde na passada segunda-feira, 14 do corrente, quando os secretários de justiça notificaram, por todo o País, os escrivães de direito das secções judiciais, informando-os de que, afinal, os funcionários judiciais sempre podiam sair do trabalho às 17 horas. Mas atenção – desde que sindicalizados. Os outros, não. Os outros tinham (e tiveram) de ficar até às 18h00m. O episódio, rocambolesco, histriónico e bufo à maneira das mais velhacas e mais tragifarsantes operetas, só pode ter feito rir na campa, e à gargalhada, o velho George Orwell. Sim, o mesmo Orwell que, em O Triunfo dos Porcos (Animal Farm, no original), já tudo dissera quando estabeleceu que “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros.”
A anedota triste (mais uma) tem história e tem cronograma. A saber:

1. A 2 de Agosto último, sai a Lei n.º 68/2013. Nela se “estabelece a duração do período de trabalho dos trabalhadores em funções públicas”. Novidade: aumento da carga horária, ordem de passar a sair só às 18h00m, em vez de às 17. A entrar em vigor no dia 28 do seguinte Setembro.
2. O Sindicato dos Funcionários Judiciais interpõe providência cautelar de suspensão de eficácia a 30 de Setembro.
3. A Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ) insiste na “obrigatoriedade do cumprimento imediato da Lei 68/2013, de 29 de Agosto”.
4. 11 de Outubro : o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa (TACL) vê pertinência na providência cautelar interposta, dando-lhe razão e provimento.
5. A DGAJ ordena então o exposto no início desta crónica.

O episódio é deveras velhaco, bufo, histriónico e rocambolesco. E poderia não sê-lo, caso a DGAJ soubesse ler decisões. A decisão do TACL dá razão a TODOS os funcionários judiciais, sindicalizados OU não. E mais: a decisão do TACL até ensina aos mandadores do sistema que, para obrigar TODOS os funcionais judiciais, sindicalizados OU não, a trabalhar mais horas pelo mesmo dinheiro (ou por menos, como se tem visto de mês para mês), há que alterar uma coisa chamada LOFTJ, id est: a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, que consagra, entre outras minúcias, o Estatuto Próprio de Carreira dos Trabalhadores Judiciais, esses inimigos do Estado em geral e deste desGoverno em particular.
Querem mais uma hora de borla, querem? Não pode ser, olha a LOFTJ. Mas é claro como água turva que, se agora não se pode, depressa se vai poder – e com h depois do p: é que, a 26 de Agosto último, três dias apenas portanto da tal Lei 68/2013, saiu a Lei 62/2013, que visa a organização (ou, digo eu, requalificação, ou degradação, ou destruição) do sistema judicial. Esta marosca-de-rabo-de-fora traz no bico a alteração do tal Estatuto Próprio de Carreira dos Trabalhadores Judiciais (TODOS, p’s ’tá claro). Alterado este, vai de hora diária suplementar e nada de refilar, qu’isto já não são 25-d’abris.
Li os documentos que acima vos crono-enumerei. São orwellianos. Informam e enformam (e enfermam) a desengraçada realidade triste dos tristes dias sem graça que vivemos penando, sem culpa formada embora. A decisão do TACL, porém, é de despachada (e despachante) clareza. E de minuciosa pedagogia seria até, no caso improbabilíssimo de os desmandadores ministeriais preferirem, a escrever por linhas tortas, saber ler (a) direito.
Em casa de ferreiro, espeto de pau – quando os próprios desmandadores da tutela não sabem a quantas andam (sabendo embora para onde querem ir, os maganos), mau-Maria. Curial seria que a cúpula da Justiça soubesse na ponta da língua a tal LOFTJ, por mero mas não despiciendo exemplo, mui especial e nomeadamente no que consta dos artigos 122.º, aprovado pela Lei 3/99, de 13 de Janeiro, e 152.º, aprovado pela Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto. Por aí veriam qual é, por lei e por direito, o horário de trabalho dos Funcionários de Justiça. Mas não sabe. Ou não quer saber.
O mínimo que destas caricaturas processuais o Público (tu e eu, Leitor/a) pode concluir, não há que nem como negá-lo, é que nem o ferro é de pau, nem o ferreiro percebe de espetos.
(Nisto, ouve-se de novo o Orwell a rir-se na tumba: mas, para aliás não grande admiração geral, a gargalhada dele tem o timbre vocálico do, valha-me Deus!, Marinho Pinto.)

13/10/2013

Rosário Breve n.º 328 - in O RIBATEJO de 10 de Outubro de 2013


Uma anedota itálica com mulher distante só p’ra disfarçar

Que o senhor Ricardo Araújo Pereira seja melhor contador de anedotas (e melhor cronista também, já agora) do que eu – não é nem de espantar nem de grande pólvora descoberta agora. Mas que um senhor Rui Machete o seja, isso já, a mim me ata dois nós: um na garganta e outro, mais a sul, nas tripas. Nunca tive especial apetência erótica por virgens, muito menos das ofendidas, como me parece quer um senhor Rui Machete (a)parecer(-se). “Inexactidão factual” não é, de facto, exacto. É só mentira. É como dizer “inverdade”. Ou, tratando-se de pessoa fisicamente cega, chamar-lhe “invisual”- porque “invisual” é o que se não vê, invisível portanto, e não quem não vê.
Destes preciosismos retóricos inventados por bezerros-de-lata chamados Assessores vive a (in)comunicação (as)social dos nossos tristes dias de tão-mau-tempo-no-canal. Eu até era para perder mais do meu e do vosso tempo com isto, mas não ceder vou à tentação. É que, pela galeria onde assentadamente dou escrivão assento a esta crónica hebdomadária, vai passando um monumento respiratório, todo carne e todo luz-de-olhos. É uma senhora. Vive e trabalha aqui perto do Café onde diariamente inscrevo o bolor do meu ócio. Permiti-me Vós que vo-la diga:
Olhar adjudicado a orçamento de veludos nacionais, tem, por pestanas, aranhas movediças. O rosto vale por maçã arrebatada, daquela golden que se faz camoesa. Ivóreos dentes afloram o carmim do lábio quase grosso. Queixo ergonómico tamanho concha-da-minha-mão. Pescoço que se alabastra em nervura tensa. Pele global de tensa elasticidade, que dá ganas de morrer tactilmente e de olhos abertos para não perder um segundo de filme. Peito que vos não digo. A sul do diafragma, todo um ventre valendo o postal de todo um estuário azul. Coxas de colunar templos gregos, dentre os que ela um deles. Rótulas de madrepérola por joelhos que a breve saia roça de comichões de chita. Artelhos de mínima protuberância: como soluços ósseos de mais espuma que osso. E pés de uma ascendência de asas ícaras: por mais de cera que de palmípede.
Já uma vez lhe franqueei a conduta salva da divisória de vidro do Café da Rita.
Pestanejou-me o óbolo do cavalheirismo.
Fui fulminadamente feliz no instante mesmo, de onde me resultou evitar a felicidade alienígena à hora a que a minha senhora esposa volta do trabalho cansada de tanto-cabrão-no-governo-e-fora-dele.
Não, não cronicarei, à falta de ser sequer meio Ricardo Araújo Pereira, sobre um senhor Rui Machete, cujo rosto, aqui há muitos anos (sei-o de cor, juro que sim) o Expresso descrevia como “suave e civilizado”.
É figura que me parece elfo já nascido com óculos, como o Harry Potter, à maneira dos gatos, ou dos ratos, mais fedorentos.

E, anedota por anedota, inverdade por mentira, semblante que só merece que eu, por senhor o tratando, o faça sempre em cursivo itálico.

03/10/2013

Rosário Breve n-º 327 - in O RIBATEJO de 3 de Outubro de 2013 - www.oribatejo.pt

Cartão-de-eleitor do papa-bivalves

De quando em vez, os bivalves tornam-se objecto de apanha proibida. A interdição sanitária visa precaver o consumidor de incómodos mui nocivos, como sejam, e são, a intoxicação diarreica e a amnésia. A estas duas mazelas de mau convívio, eu ousaria, e ouso, adir a patologia social da sintonização televisiva na TVI e a famigerada abstenção eleitoral, por fundamentarem ambas, a meu ver, a nem sempre compreendida mas crucial distinção entre o praticar o mau-olhado e o ficar mal-visto. Já da supracitada paridade diarreia/amnésia, não me inibirei, escarninhamente, de, atentos os resultados eleitorais, relevar a peregrina simetria moitaflorista de, se de facto o senhor Ricardo Gonçalves “não tem cabeça para a herança de Moita Flores”, também o senhor Moita Flores, pelos vistos e pelos votos, não ter unhas para a viola da herança de Isaltino. Sequer. Acaba por ser triste, aliás: conta mais um responsável preso do que um irresponsável em liberdade.
(Nota: com a relesia das minhas crónicas de última página e penúltimo bom-senso, mais não pretendo do que subsidiar o historiador do futuro que se não arreceie de emporcalhar as mãos na gamela da sociometria política à portuguesa de princípios de terceiro milénio. Quem deveras não tem cabeça para urdume de tão monumental desconcerto c’est moi, como Flaubert dizia que era a Madame Bovary. Ou aquela Loulou do perfume da Cacharel.)
Do maralhal cómico que bota bitaite comentador nas capoeiras de néon, vulgo estações televisivas, não houve muito exemplar que relevasse o verdadeiro vencedor das Autárquicas/2013: a Abstenção. No formoso trecho de mundo chamado Ribatejo, ela campeou lezírias e galgou valas, malogradamente revestida, como sempre e por todo o lado, das não diáfanas gazes da indiferença, da resignação, da desistência, da não-resistência e da auto-interdição comum à dos bivalves de quando em vez.
Isto que digo nem sequer é discutível, posto que inequívoca verdade de Abrantes a Ourém, de Alcanena a Vila Nova da Barquinha, de Almeirim a Torres Novas, de Alpiarça a Tomar, de Benavente ao Sardoal, do Cartaxo a Santarém, da Chamusca a Salvaterra de Magos, de Constância a Rio Maior, de Coruche a Mação e do Entroncamento à Golegã, passando por Ferreira do Zêzere. E o mesmo vale dizer dos restantes 287 municípios do território pátrio.
Tenho por definitivo que o abstencionista é bivalve. E do estragado, não desse que, fresco como um limão de sal, acorda o mar no palato em cúpida antemão de uma rajada gélida de cerveja e/ou de uma explosão glacial de verdasco gaseado. Somos deveras um País tão lerdo, que ao cabo de meio século de ditadura vamos já cumprindo, como quem enferma de um mal que desconhece ou à guisa de quem pena de um anátema que se calhar merece, quase outra meia centúria de tiranete “democracia”.
(Nota pessoal e final: posso parecer-vos indignado. Não estou. Isto já só me faz bocejar larga, aberta e profundamente, em nojosa exposição da mui cariada arcada dentária minha. Sim, este Povo leva-me ao bocejo, à quase misericórdia quase cristã. E à saudade do senhor Bulhão Pato, que sabia mais de como se faz a amêijoa do que esta minha gente há-de saber de como fazer, de si mesma, País. E que nem sabe que diarreia e amnésia, em alegada Democracia, são uma única e mesma coisa.)

Canzoada Assaltante