25/10/2012

Rosário Breve n.º 280 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt


Hospital Toyota

Aqui há tempos, um incómodo persistente no joelho direito levou-me a procurar um edifício público onde por enquanto ainda vão aceitando coxos provisórios que pagam impostos. Não se tratava, é verdade, de uma dor incapacitante, mas era das peremptórias, daquelas que, como o Toyota de antigamente, ameaçam ter vindo para ficar.
Porque todos somos paramédicos do nosso próprio corpo, não me foi difícil perceber que parte da caminhante algia era filha natural de remotas patadas recebidas, há muitas décadas, no decurso da minha breve, gloriosa e irrelevante passagem pelo futebol distrital do tempo dos pelados e dos bufetes de balcão de contraplacado com carrascão traçado de gasosa de pirolito mesmo à beirinha da cal viva dos recintos. Outra parte da maleita, quiçá mais determinante e bem mais determinista, vinha daquilo que a todos nos leva: a oxidante osteoporose da idade, cujo inexorável divertimento resume um ex-moço a um emaranhado de arames locomotores cuja maleabilidade vai dando lugar, com o tempo, ao desengonço roberto das marionetas úrico-artríticas. Uma tristeza de sapatos, enfim. Lá fui portanto ao hospício.
No vidrofone das inscrições, uma arara de trufa oxigenada quis saber o que é que eu tinha. Eu disse-lhe que vinte euros. Ela disse que sim e botou-me o nome no computador. Eram elas as oito da manhã. Quase à hora de almoço, um rapaz alto de fato-macaco azul assobiou-me que o seguisse. Segui-o. Disse-me ele: “Vá-se orientando pelas placas conforme o seu caso, ó chefe.
Uma placa dizia: QUEIXINHAS. Entrei. A seguir: HOMENSSENHORAS – CRIANÇAS ATÉ AOS 35 ANOS. Fui pela esquerda (coisa que sempre faço nas eleições com o mesmo resultado do joelho). A seguir, LETRAS – CIÊNCIAS – NOVAS OPORTUNIDADES. Comecei a desconfiar o meu bocadito. Como já li qualquer coisita de Fernando Namora, fui pelas LETRAS. A esperança de topar com a simples indicação ORTOPEDIA abandonou-me de vez à visão da bifurcação seguinte: NEOGARRETTIANOS à esquerda e SIMBÓLICO-DECADENTISTAS à direita. Aí, comecei a ladrar-me baixinho uma tosse de obscenidades relativas às progenitoras dos escritores de placas. Ainda assim, manquejei pelos imitadores de Baudelaire. Lá dentro, era pior: à esquerda, ORTOGRAFIA DE 1911; ao centro, ORTOGRAFIA DE 1945; à direita, ORTOGRAFIA NENHUMA À MODERNA. Por essa altura, já quase o joelho me não doía, ao contrário da alma. Peguei no telelé e roguei à Senhora dos Aflitos, vulgo minha mulher.
Desandei dali por portas não lidas nem contadas, até que cheguei a um corredor de lúrido néon crepuscular ao cabo do qual a minha esposa me esperava com aquele sorriso todo mãe que as mulheres afivelam à boca desde meninas. Atrás dela, todavia, três portas gritavam maiúsculas.
A do centro, PS.
A da direita, PSD/CDS.
Mas a da esquerda dizia uma coisa simplesmente maravilhosa: SAÍDA.
Estava porém impedida a duplo aloquete.
Que eu saiba, ainda está.
E eu também ainda lá estou, bambo da perna e marreco de toda a esperança, sem sequer a mínima de um pirolito ao intervalo.

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Canzoada Assaltante