29/08/2012

Nesta manhã de quarta-feira, 29 de Agosto de 2012



DA IDADE DAS CONCHAS

Leiria, manhã de quarta-feira, 29 de Agosto de 2012

I

Às vezes a vida permite-se voltar a ser muito cedo.
Uma fatia de pão alvo e um vento de livros compaginam a hora.
Um animal de cabeça amarela assombra a galeria-café da Rita:
vestido preto justo e breve, redondeza traseira a mais firme,
belos olhos pretos cintilantes carbónicos magoados de alegria,

mamitas florais abalconando a dianteira de sardinheiras vivas,
rubra boca de gelado desdém para com a fealdade alheia,
passadas de nívea espuma ao tempo corredor matador,
euforia sucinta de meu lápis.
Já a moça passou, olho para a garrafa de cerveja, assim lhe digo:

ó cerveja da manhã, ilustra-me a página devedora
de poético reconhecer, qu’inda são tão cedo o dia & a (v)ida & a ida.
Sob um céu de azul-azulejo lavado a água de sabão
te invoco, de ti implorando a paz gástrica e algum verso
bonito,

não me deixes sozinho com os meus amados mortos,
lessons in the family ecoam-me repercutidas cisternas orais
quando a aurora se amenina fina no ecrã da janela,
à que saúdo com manso vigor ao piano da nossa Língua.
Se isto não for loucura, não vale a disciplina, não vale o martírio-

-lírio-gladíolo-gardénia.
Cresço para a morte qual animal sensato, as árvores
da minha vida emolduram a tela fluvial da solidão
desbaratada, são hoje três as pombas que vieram à mão
do pão, deu-me a D.ª Lena mãe da Rita três fatias

de alvo pão barrado a versos do cedo que voltou a
ser.

II

Sou o rapaz dos corvos.
A manhã babuja um azeite, o de existir.
Inauguro caledónias versilibristas porque posso.

A manhã é o meu temp(l)o.
Se voltar a menino, voltarei amiúde a miúdo,
os olhos molhados de musgo do Dezembro.

Escuta, querida: há festa na aldeia,
o padre repimpão repimpa o carão encarnado
atestado de carne de cabra e vinho de espicho,

os gaiteiros rufam estrépitos pagãos,
compro-te fritos de açúcar, ofereces-me uma ginja,
quando o Outono vier nos achará nus

à luz portuguesa, pão e fruta sobre a mesa.
Turvos corvos nigérrimos em os meus ombros.
Escombros de escoradas vidas idas

apertam o lápis na minha mão,
é rude não fruir da tristeza o licor pensativo,
tenho a idade das conchas

mas desempreguei-me do mar,
à tarde tentarei de novo não envelhecer tanto,
não enegrecer de vez antes da hora do chá.

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Canzoada Assaltante