18/08/2012

IDEÁRIO DE COIMBRA - 31 (integral)


31. UMA MANHÃ EM TONDELA

Tondela, segunda-feira, 5 de Julho de 2010

Sofrer é o estado em lentidão do pensar, pensar é como sofrer calor a mais. Vi hoje águas e pedras, Penacova à passagem, desejei ser algo como um fauno fluvial, um pouco de sopa em uma marmita, um pedaço de pão, uma garrafa de água perfumada de limão, mas não parei à beira-água, cheguei a Tondela e vi a minha vida espelhada nas montras do pequeno-comércio. Talvez um dia vá ainda à Arrábida, talvez algum tempo me seja permitido em Sintra. Eu e os sonhos que me sonham, talvez, assaremos peixe na orla do Desconhecido, barcos fátuos gaseando o horizonte-azul-flúor, libações nos conduzirão à noite perdoada, raparigas e rapazes pintalgando de pequenos sinais vermelhos/amarelos/verdes o âmbar da praia, o mercúrio solar aquiescendo crianças, mas, destas, apenas as feitas por amor. Sofrer também é uma forma de sofisticação – mais sofisticada quão mais subtil. Estes verdes, estes azuis, este céu cujo poder resulta da absolutíssima indiferença ao pensassofrimento das pessoas para-sempre & das crianças em-breve. Azeitonas, cebolinhas, pimentos, orégãos, silveiras, amoras silvestres, olhos de água morna dulcificando o instante de uma pessoa olhada por outra. A Mãe não, a Mãe não está bem. Faltou a luz no Bar das Piscinas, uma espécie de sossego cria moscas na manhã já toda madura, poluo a minha camisa de liquefacção, suo como se pensasse – como se o pensasse fôra não sofrer, nem a Mãe nem o calor. Vi a confeitaria encerrada (as coisas encerram muito, Mãe), vi mulheres bonitas como talos tenros de jasmim, rapazes de lentes fumadas oficiando o incenso da mocidade, velhos homens de chapéu exercendo sombras antigas, pórticos de pedra que são cristalizações do Inverno, a caminho de cá vi o mar reproduzido em ondas florestais, somos os peixes silvícolas desse mar que por vezes arde. De onde surgirá o que vai matar-me? Dos pulmões, da próstata, de uma esquina sináptica, do coração, dos ossos, dos intestinos? Isto vivo, porém e enquanto. Ao entardenoitecer, também eu me volvo veludo – e a minha pele fica prata, e argênteo fosforesço na solidão essencial das ruas que levam ao quarto-casa. Recordarei em frente, escrevendo. Somos de uma pureza endógena impressionante, mas não todos, só alguns de nós. Actores do Guião Orgânico, isso sim todos nós. Gente que adoece de amor, que, por amar, ama e adoece. Frechas de puro ar atravessador de oliveiras, em colina de restolho flavo, enfermo de um ouro que as ovelhas pontuam de lanígera ortografia. Seres instantes, particípios futuros calçados de tamancas pretéritas. Lumes que as velhas acendem em lar, a horta humílima trazida a ser perfume que ferve na panela de ferro tripé. O porquinho cristão, muito róseo, muito lípido, grunhe versos saciados de lavagem. O cavalicoque alteia a campina, o pedreiro regressa de motorizada ao casal branco de arestas tira-linhas, o vinho verde jorra no balcão do bar das bombas de gasolina, 10h51m. Fora de imaginações, sou quase feliz na vizinhança de mesa deste cavalheiro de calções & chinelos rezando o breviário do jornal desportivo, daqueles dois sexagenários que tasquinham amendoins, daqueloutro distraído que unha um dente em remoção do naco de bolo alimentar, daquela grávida apreensiva em atenção vagueando outras paragens nascituras. Bonecos: uma águia-quinquilharia, um preto-cantor-de-jazz, um ET-marciano, uma vaquinha pret&branca de úberes cor-de-salmão, um jogador do Sporting imobilizado num pontapé de plástico, um viking de BD, um duende puritano, um caracol mágico, um mamilo não chupado e uma girafa com dores no pescoço.

Brasa. É como se fôssemos corpúsculos parasitários obrigados a viver no pêlo de um cão descomunal. Vaga de forno na cara, corpo suspenso de água quente que resulta do ar, da luz. Fornalha. No Ferrador, em frente ao Tribunal de Tondela. Liquescentes, os sólidos resistem como podem à acendalha de ter nascido. No televisor, essa luminária estranha chamada Jorge Gabriel. A parolice obrigatória de certa portugalidade. A redução a certo estrume “cultural” de uma Nação que exilou, adentro como afora, gigantes como Camilo Pessanha, António Nobre, Wenceslau de Moraes e, sim, Fernando Pessoa, coitado, obrigado a sentir as fodas da mãe viúva com um bigodaças que nada tinha a ver com o Joaquim crítico de ópera do S. Carlos, pai dele(s) Fernando(s). Faço horas (manhã quase feita e desfeita, 12h30m) para ir a tribunal testemunhar em desfavor de uma excrescência orgânica. Cruz solar. Ínfima fracção: cores esmaecidas, fl(u)orescidas, não matinais já e já crepusculares.


Global Ovo Estrelado: a chapa do ar às 14h26m. Tondela, vários espelhos-de-água jorrando escumoso sémen H2O. Desconheço (ou não recordo) o orago da bonita (estreita, alta) igreja de culto católico que encima a Praça Prof. Doutor Qualquer Coisa. Casas perfeitamente talhadas em água-fervente. O Solar fechou-se, já não serve. O Ferrador ainda, mas não já refeições de talher. Está diferente de há cinco anos, Tondela, época em perdi o meu tempo com (alguma, não toda) gente que não vale meia pele de prepúcio. Árvores vivas – dormentes, estivais. À noite, atirarão sombra ao alto, partícipes de estrelas. Uma velha de saia-joelho de cor azul-escura como uma freira estranha, dessas que se tornam enfermeiras de meninos negros por causa de uma falsa caridade mercurocromo. Velhos na sala de espera do tribunal, obra de 1971. Prof. Doutor Qualquer Coisa Anselmo Ferraz de Carvalho. Parecem peixes, os munícipes: babujam frases encalmadas. São elfos de finlândias em chamas. Dividem-se entre o Tartagal e a Cristiânia, equador ao meio. Outros sabem de carpintaria de barcos, outros de fuselagem, outros de heurística, outros de hialurgia – ou o caraças. 

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Canzoada Assaltante