28/04/2012

Ligação à Medusa - 36 (integral)


© DA, 6 de Abril de 2012



36. AS EVIDÊNCIAS

Leiria e Pombal, quarta-feira, 19 de Outubro de 2011

Vinha pela Rua de S. Francisco a considerar a evidência de toda a gente acabar por se fundir nas consequências das escolhas que fez. Ou seja: que toda a gente acaba por acabar. Havia nisto, é claro, um torrão mínimo de amargura, como a da pedra de sal que se põe sob a língua para obstar ao tremor nervoso das pálpebras.
Na Rua da Rodoviária, era aceitável outra evidência, precisamente a de pensar tanto em evidências sem saber nem por nem para quê.
Subido à colina, o Castelo parecia um leão pacato com janelas. Mas não eram janelas, aqueles olhos que um remo(r)to arquitecto medieval abrira.
Perto do Jardim-Parque, contentava usufruir da frescura solar da manhã de Outubro. Agosto fora frio e agreste; Setembro, abrasador; e a primeira quinzena de Outubro batera recordes de temperatura com muitas décadas. A meteorologia certinha da infância tinha acabado para sempre. E isso era também a pedrita de sal sublingual.
Uma das esplanadas da Praça do Pastor Peregrino serviria para esperar. A carreira para Sicó mais próxima estava marcada para as 12h15m. Nada a fazer senão esperar – e esperar era também uma escolha, uma consequência, uma coisa em que se acaba por, não que se acaba de.
Um casal de adolescentes tardios pastava coca-colas na mesa em frente. Ela, com uma t-shirt em inglês; ele, com a nuca muito rapada. Um reformado de sapatilhas passou com um saco de plástico cujas bossas deixavam perceber a presença de uma lata de salsichas, do Borda d’Água para o ano seguinte (se o houvesse, para ele como para toda a gente), de uma embalagem de vinho branco de cozinha e de uma escova para sapatos: despojos pobres, outonais, sem esperança nem remédio.
A hora remanescente vinha e ia-se devagar, mas não sem a qualidade voraz de todas as horas de todas as vidas, sobretudo das que escaparam já à eternidade insolúvel da mocidade.
A ex-adolescente que falava inglês com as mamas abriu um portátil, digitou a senha da rede social e entrou nesse paraíso artificial deste tempo. O da nuca glabra bocejava ante uma revista de actividades ditas radicais.
Não era fácil e nada parecia difícil. Era um escoamento colectivo (outra evidência.)
A praça tinha árvores sem um rastilho de pássaros. E faltavam vinte minutos para a carreira – e isto era tudo quanto podia contar-se com. Só vinte minutos? Ou ainda vinte minutos?
Da Sé, o som éreo e aéreo e venerando, que não venéreo, dos sinos veio pautar a letargia quase aldeã da cidade de partida. Não são todas de partida, as cidades? Considerar isto em trânsito, a bordo já do autocarro, parecia possível e, até, quase útil – só que poucas das coisas possíveis são úteis, tal como poucas das úteis são possíveis.
Óculos no sítio certo da cabeça, cigarro na mão correcta (a esquerda), camisola sem nada para se ler e as praças e as ruas e a estrada e as aldeias esforçando-se por ser legíveis.

As florestas têm uma qualidade geológica: talvez porque as árvores queiram vir a ser pedra, não cinza. De modo que as cidades são talvez florestas que finalmente lograram ser pedra, antes de acabarem, como tudo e como a gente, por ser cinza.

(NB: estas linhas de ontem – entrada 36 – decidiram adquirir autonomia, pelo que passarão a integrar um caderno à parte, intitulado – talvez – AS EVIDÊNCIAS LEGENDADAS.)

Ligação à Medusa - 35 (integral)


Berndnaut Smilde

Nimbus II

Cloud in Room
2012



35. AS HORAS

Leiria, segunda-feira, 17 de Outubro de 2011

Tenho por vezes horas substantivas como a
matéria animal dos seres que respiram.
Penso-as em forma de limbo.
Penso-me ébano-em-branco, durante elas.
Madeiro-as para revelar-me árvore.
Aprecio a voracidade infantil do mundo.

Já era para ter nascido de outra maneira.
Já era para ser-de-Florença em qualquer lado.
Um bosque em França, o rumor de um rio.
Um patriarca de gatas: tenho sido isso.
Sou da substância respiratória da luz: e
amável, amante e galante.

Toco a febra viva da mulher deitada.
A vida dela é uma coloratura sideral.
Leiria-se-me ora a vida – e sumptuoso
é o sentimento veríssimo que me enaltece
o estar ’inda vivo sempre que miro o mesmo Castelo,
à colina mor subido, que José Maria

Eça de Queiroz viu também (e) antes de nós.
Rapazes demoram o Verão-de-Outubro
ao pé da fonte de Porto Lameiro, entre
silhuetas-laranjeiras e cacos de cerâmica
fabricados por mãos hoje mortas, amanhã
não sei.

É uma gala, assistir à sombra silvestre
de qualquer das minhas filhas, nas horas.
Como elas derivam atlanticamente, Santo
Deus! Como ajuízam elas a gramática carnívora
que a elas mesmas me levou em láctea
instantânea entrega, Deus Santo!

Tenho por vezes mui substantiva pena de
não acreditar em Deus, meu Pai.
Senhoris rolas dão saúde aos beirais aldeãos.
Jornais forram gavetas-do-bacalhau.
Carpinteiros antigos como o senhor Arnaldo
Fonseca de Casais do Porto, Louriçal, ministram a seiva,

a vida das eiras: o milho, o porco, a mulher,
os filhos, as abóboras, os inocentes utensílios
que levam ao leite e ao vinho e às décadas
e a esta folha escritinta por um homem
triste e horário que os meus nome e rosto
usa.

Uma faca limpa eu usasse para (a)talhar
a puta da Morte: sabes, João.
Por Lisboa demandei as relojoarias vibráteis:
as putas comedidíssimas do Instituto
Superior Técnico, os garnizés navalhistas
da Estefânia, os adormecidos do Cemitério

dos Prazeres: sabes, Maria João.
Eu era para ter sido não apenas décadas,
mas algumas horas.
Clarões amarelos-palha de medas-mulheres
incensam de cor a salteada realidade,
acontece-me muito inscrevê-las sem sensatez

no usufruto da vida.
José Maria olhando o Castelo de Leiria,
José Maria vivo e Eça e de Queiroz.
Os seres filmando as ruas com os olhares
dos seres, das horas.
Os seres trazido-levados pelas horas,

pelo com que olham.
Eu queria apenas perfumar a nossa Língua
de coentros-sextilhas, sabes, Fernando.
Um restolho de cães-pátios, um ferro de sal,
uma torneira de brevidades, uma matricial
horda de medusas feitas da água dos olhos.

(E eu a escrever isto enquanto a vida
acontece ao lado, constipada e hirta
e relojoeira e grave como uma infantilidade:
sabe, Mãe,
sabe Deus.)

Filtros adequam a especiaria das águas
dos hortos que catolicamente resistem
aos incêndios mais fulvos e às sopas mais
das creches conventuais.
Eu digo ist’assim porquanto o posso:
e mais não digo.

*

A flor é uma frase perene.
Cada flor é uma declaração.
Ser teneb(rosa) límpido entre flores:
acho que também elas pensam.

Os vivos honram os mortos com elas.
Elas não têm culpa de cheirar a cemitério.
A gente quer saber se os mortos sonham.
As flores sonham.

As flores sonham com eles.
Os gestos dos mortos rispam a memória.
Escrevem-na inventadamente.
Estão evanescentemente na cor aluída das casas.

Não estou ’inda tão velho, que a maioria do
meu amor seja (amor)te. Pronto, sim,
é claro que ressinto e ressumo a calidez
pétrea de alguns amados, mas isto

curte-se com música e meia-colher
de açúcar nas ervilhas guisadas.
E um copo de qualquer coisa
Atlântica, na Figueira da Foz ou em Firenze.

As pessoas da arquitectura são todas músicas
da pedra.
Ou então é só porque gostam da alegria
da mulher, que cresce em seiva

sempre que lhe garantem uma maçã por
filha.
A mim, a quem já fizeram o mesmo,
isso é de uma naturalidade tremenda.

A flor é verso dito de c(ô)r.
O amor também é – e toda é dele
a terra: um pouco de adubo animal,
a vida não é mais do que uma hora
nem do que uma fl(ô)r.

*

(Maria da Graça também Queiroz:)

Ela nasceu do lado que mostra a lâmina viva do Rio.
Tinhas sardas logo de começo, o que acontece sempre que há reticências.
Ela sentia a mudança das estações como literatura viva: a elegia do Outono, a família do Inverno, o milagre da Primavera, o matrimónio do Verão, sendo ainda porém Primeiro-de-Maio-de-1971 embora.
Ela conserva as estantes verdes e os vinil-discos.
Ela conheceu a brutidade e a gentileza: e fez cartório da segunda.
Ela administra retábulos chamados filhos como se tivesse nascido para os nascer.
E nasceu.
(Também) Graça se chama – não é coincidência.

27/04/2012

Ligação à Medusa - 34 (integral)


34. O CREME COMPENSA E OUTROS RETRATOS DA MOR INOCÊNCIA

Leiria, quinta-feira, 13 de Outubro de 2011

Tem um barrigão de santorro de pagode, aquele cheio-de-sono inocente e tumefacto que vem ao meu café (o da Rosa) bocejar as primícias da tarde. Não o condeno: ardem 35°C no Verão de Outubro. Ele não consegue suster o fechamento das pálpebras, que lhe devem pesar quilos e quilos de sombra. Divirto-me na observação dele. Ao nível do ventre, a camisa racha um delta de pêlos. Relógio grosso a norte da patorra esquerda. Barba escassa e esparsa num carão vermelhusco, a que a vinhaça plasma florões rubicundos. Incompreensível flanela de calças, ao tempo que vibra calorão. Parece um menino idoso feito de banha-sabão. Cordas espessas de espesso suor parabrisam-lhe as fontes da cabeça, que parece mumificada em redundante nanismo, atida a jucunda bojura da pança. Suspeito-o empilhador de feijoadas as mais lípidas, escorridos a sebo o unhum de porco e a hematológica chouriceira. Roliço como uma ôlha de azeite: ou uma epopeia de farinheiras: ou uma rotunda de entremeadas as mais toucinhas. Cabeceia como uma pomba sem inconsciente nem arrelia. Obeso como uma brotoeja de sapatos. Gordo como um cu de solteirona. Mas também: inocente, pueril, simpático – e alheio como um soneto finlandês. Superintendem duas bolsas de pâté branco sob os olhinhos cerdos. Colosso de roda-baixa, calça napa recheada de peúgas de fibras electrochulèzeira. Coça o traseiro tão sem pudor quão com a unhaca amarela do mínimo, que espeta no ar quando semiacorda para diagonalizar a ingestão brutal de uma mini mais. A sesta dele substancia a minha alegriazita gráfica de cada dia. Gosto dele. Gosto até da mãe dele, que teve uma porca com a mesma naturalidade de o ter a ele.

*

Uma mulher sonha com o homem que eu deveria ter sido.
A tecnologia desse meu presente alternativo não encontra nem alvará nem patente no futuro que me veio ver passar.
Ela é toda uma arquitectura de leite, se bem me lembro ou se mais bem invento.
Ela morde a própria língua, que além de portuguesa é como quando a rosa se apura rubi grená.
As mamitas dela seivam duas bagas mui morangas, cuja recordação me citrina o paladar e o verso.
A framboesa escura de seu dela delta é um vértice tónico cuja irrecusabilidade me içou, outrora, a mais rija admoestação fálica.
Recordo, soldado-da-paz, o incêndio fulvíssimo da sua cabeleira leonina, onde a própria alma era o primeiro combustível.
Quando acorda, ela interdita a secreta circunstância de nós-dois-em-um-resto-zero: e trata da cria e do marido com a amável compostura dos remorsos saciados.

*

Isto não é um auto-retrato, é um homem de cu assentado em cinzas próprias.
Sou de uma mulher que dela se tornou hino nacional, de modo que cada comum pernoita se nos torna o mais brioso juramento de bandeira.
Cinzas próprias, quando cadaverizo tanta palha e tanto amor de sardinheiras-ao-balcão.
Ela sabe que isto acontece muito-me às quintas-feiras, quando se oceaniza o entardenoitecer do sal dela à saída do trabalho.
O talco pulveriza a neve frágil do perfume dela, sempre que a grafo com este lápis mesmo.
Claro que isto é um caso sério.
As pessoas existem mesmo, derredor?
Ela diz que sim: porque não faz versos e porque os ca(u)sa.

26/04/2012

Rosário Breve n.º 256 - in O RIBATEJO de 26 de Abril de 2012 - www.oribatejo.pt



O polícia-choque

Sexta-feira pretérita, acordei sem remissão às quatro e meia da madrugada. Estava a sonhar com o polícia-choque.
Sonhar com o polícia-choque é mau por ser pesadelo.
O polícia-choque é por natureza estúpido porque às vezes a Natureza é estúpida.
O polícia-choque não tem cabeça, tem dois cus. O cu de cima usa ray-bans porque o polícia-choque gosta de pensar que é o Tom Cruise.
Aos fins-de-semana, o polícia-choque lava o carro do chefe e leva a mulher do chefe a passear às barracas de farturas porque para o polícia-choque a mulher do chefe ainda é mais chefe do que o chefe, por isso o polícia-choque tanto lava como leva.
O polícia-choque só tem estudos porque tirou o nono ano a quem o tinha.
O polícia-choque é católico por fora mas não sabe onde fica a Irlanda do Norte, se o polícia-choque soubesse onde é a Irlanda do Norte bateria nos irlandeses do Norte porque alguns são protestantes e os protestantes são para bater neles por causa de protestarem.
O polícia-choque está para o resto da humanidade como os carrinhos-de-choque estão para o resto do trânsito.
O polícia-choque só consegue casar com romenas de acampamento porque o resto das mulheres da humanidade tem mais que fazer do que casar com polícias-choque.
O polícia-choque não consegue andar sozinho na rua porque o polícia-choque é cobarde.
O polícia-choque quando vê um desempregado ouriça-se todo.
O polícia-choque corta as unhas do pé ao chefe, guarda-as numa embalagem de margarina e todas as manhãs aparece lambuzado na esquadra.
Na cantina da esquadra, o polícia-choque só bebe tinto da marca Salazar.
Quando aos fins-de-semana o polícia-choque leva a mulher do chefe às barracas de farturas, o polícia-choque vai de calções havaianos e chinelos de enfiar o dedo.
Também leva os ray-bans no cu de cima, o polícia-choque.
O polícia-choque não consegue bastonar-me porque eu sei coisas de gramática que o fazem tossir – e quando o polícia-choque tosse, o polícia-choque não consegue ser nem bastão nem bastante.
O polícia-choque pensa que a palavra bastonário quer dizer o chefe dos bastões.
Quando o polícia-choque pensa na palavra chefe o polícia-choque pensa logo em farturas.
Se as galinhas usassem capacete, as galinhas eram polícias-choque.
Eu não tenho medo de polícias-choque porque até ao nono ano ninguém aprende a ler, por isso os polícias-choque nunca aprendem a ler, por isso eu posso rir-me deles em crónica, que os polícias choque só sabem ler a palavra Farturas na testa da barraca de levar a mulher do chefe a passear e a comer fritos.
Quando eu for grande, não quero ser polícia-choque porque para isso tinha ido ali à casa-de-banho. 

22/04/2012

Ligação à Medusa - 33 (integral)




33. OS HOMENS DA MINHA VIDA

Pombal, quarta-feira, 12 de Outubro de 2011

Os homens da minha vida segregam
as vidas deles na ausência que os
faz frutificar longe do meu pátio chamado
quotidiano.
Alguns semelham cães magros vibrando
a harpa da chuva.
Outros carregam o piano perigoso
do pensamento sem quartel.
Os homens da minha vida nupciam
duras donzelas chamadas
Subsistência,
Paciência,
Abnegação,
Cervicalidade.
Mostrei a uma mulher amiga um
caderno juncado de fotografias dos
homens da minha vida.
Ela recebeu em silêncio os rostos
deles, que eram graves e formosos,
dessas formosura e gravidade
que só acontece ou nos grandes
desesperos ou nos maiores silêncios.
A minha vida também é feita
de homens cujo falar é fazer.
Eles concatenam o milagre da
respiração – e são aquela compressa
singularidade cósmica do Todo-o-
-Tempo-Total-em-Espaço.
Alguns dos homens da minha vida
são mulheres.
Cães & gatos, outros.
A minha vida também é Total.
(Às vezes, Pentotal, até.)
Ela não aliena: afasta-se muito,
mas nunca (se) alheia.
Há manhãs em que a minha vida
acorda sem passado.
Sem passado e sem homens.
Sem passado, sem homens e sem
mulheres.
É como se nascesse.
É como se nascesse em amnésia,
amnistia e anestesia, a minha vida.
É como se fosse deveras viver.
Eu tenho a mais subida consi-
deração pelos homens da minha
vida.
Eu pratico a mais sub-vida consi-
deração pelos homens da minha
subida.
Eu acordo no transe que dá trân-
sito rumos aos homens da minha
vida.
As maçãs são todas coração,
os homens da minha vida
também o são.
A quem não pareceu alguma vez
que as pêras são femininos
torsos sem cabeça, braços &
pernas?
Um arremedo de aves-céus
comove-me o suficiente para
recuperar os homens da minha
ávida vida.
É tudo tão outonal na minha
vida, pois não é?
Alguns dos homens da minha
vida despenharam-se lacteamente
em outros homens da minha
vida chamados mulheres, chama-
dos
Subsistência,
Sub-Existência,
Paciência,
Abnegação,
Cérvica-Uterinalidade.
Nasceram filhos, que agora
têm de repetir a poesia e
a canga dos impostos.
A vida dos homens da
minha vida vacila verde e
cinza, as coisas e as cores são
como as não esperamos.
Um dos homens da minha vida
vende jornais, outro escreve-os:
a rolha de cortiça balança
marés, isto acontece ao-virar-
-da-esquina-na-volta-do-
-canteiro.
Balcãs, cãs, cães & balcões: cervejeira-
mente cotejamos ser-opiniões.
É quase sempre pela tardinha,
esse diário outono da minha
vida e dos meus homens.
Esse quotidianoutono, esses
homens-me.
As mulheres que se tornaram
homens da minha vida
rimam flor-clarões-de-
-famílias com buganvílias.

21/04/2012

Ligação à Medusa - 32 (fragmento breve do dia 11 de Outubro de 2011)


PEDAGOGIA:

O perfume a tempo que passa
nos alunos que repetem, a cada filho nosso,
a criança que fomos.

Ligação à Medusa - 31 (fragmento breve do dia 10 de Outubro de 2011)


Dois pássaros que confirmem o céu da tarde
são tudo quanto peço antes que se faça tarde.

19/04/2012

Rosário Breve nº 255- in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 19 de Abril de 2012



Segund’amanhontem

Esta terça-feira, fui feliz pela tarde, rebentou no café da Rosa um debate de inverosímil e verdadeira tristeza como o Governo da Nação.
À esquerda-baixa, o Raul, que é toxidrogas e que vive dos favores da Belinha das Farturas, atirou depressa que o Sócrates etcital.
O Mico, que se esfuma umas passas mas nunca se injecta, injectou que não é tanto assim, que não, que isto não é tanto assim, que o Almeida dos Santos é que a sabe toda, o riquinho. Eu, que tirei o décimo-ao-segundo pelas novos-oportunismos, quis saber quem era o Almeida Santos, mas o Mico, que mo ia dizer, foi interrompido pela Graciete dos Pneus, que é conhecida assim por causa da barriga recauchutada por aquele chinês da acupunctura que também vende frangos aos ciganos, vai a Graciete assim:
A alegada ligação Heidegger-Nietzsche-nazismo não é límpida.
Nisto, o pessoal cabisbaixou-se um bocado e disse nada aos costumes. Sol que pouco dura como a virilidade do Anacleto, ao qual, apesar de caixa farmacêutico há 32 anos, nem o Viagra resgata. Vai assim o Anacleto:
O problema é os empregos, o problema é os empregos. Olha o Pires de Lima na bicha da sopa-dos-pobres.
Eu era para querer saber quem era, ou nunca foi, ou nunca será, o Pires de Lima, mas o Vital das Bicicletas cortou cerce:
– Ninguém – ,
só que o Rómulo das Fotocópias, que pensa que sabe muito mas só copia, esborratou-se com esta:
Acho que a minha mulher me anda a pôr os cornos a cavalo da crise –,
e o Anselmo das Bifanas, que é loiro e espigado como uma inteligência rápida, desfechou que:
Olha’m’ess’admiração, a filosofia alemã nunca esteve pelos ajustes com o existencialismo cristão à la Gabriel Marcel.
A Rosa, que é cúpida mas não estúpida, ainda quis obstar a que uma Leonor Beleza ou uma Maria de Lurdes Rodrigues. Ou que a uma Rita Seabra. Ou a uma Assunção Cristas, por mais carnuda força de apetite. Os propósitos tibetanos-sufragistas da emancipação fêmeo-coisital nem sempre servem.
Parámos todos para beber um copo. Voemos – e vai então assim o Gino Loló Brígida, um que ataca octogenários à saída do baile-das-velhas do Central Lux Show:
Eu acho o Victor Gaspar mais giro porque demora muito.
Foi o descalabro.
E eu disse duas vezes:
Heidegger, ai de mim; Heidegger de mim.
Isto foi terça-feira. E como o País não apresenta sinais de remédio, amanhã é segunda.

17/04/2012

LIGAÇÃO À MEDUSA - 30 (I)

30.

Leiria, terça-feira, 4 de Outubro de 2011

(O texto seguinte saiu como crónica – Rosário Breve n.º 227 – no semanário O Ribatejo, edição de 6 de Outubro de 2011:)

NATUREZA-VIVA

Ela aproxima dele a boca dela, que é de uma frescura húmida de bivalve. Beija-lhe, lentíssima, a vista direita, depois a outra, depois, mui célere, a testa, as rosas do rosto, o queixo, a garganta e o peito, em que lateja o cachorro grato do coração. Um ricto de volúpia freme os lábios dele, o beijado.
Isto passa-se manhã muito cedo, na paragem que espera o primeiro autocarro do dia. A recatada distância, sou todo de uma atenção munida de discreta dioptria periférica. Estamos ali os três, mas eles são dois só que só são um (do outro). À beira do meu primeiro meio século de idade, conformo-me com a naturalidade de tanta tão amorosa mocidade, alheia embora ao meu corpo redactor, me encantar tão sem apelo e com tanto agravo.
O corpo dela é da mesma substância do olhar com que ela olha: espécie de água colorida daquele castanho refractário próprio dos pardais e dos outonos que douram tanto a espera quanto a demanda. Ela emana um perfume hipnótico, que vos tento fazer sentir chamando-lhe éter lácteo.
O corpo dele é presidido por um rosto inimputável, de que são adjuntas a boca sem jurisprudência e as mãos pesquisadoras do ouro branco do colo dela, onde a alvura apertou o lenço da neve.
Estão eles naquela mútua adoração – e o autocarro que, felizmente, não chega. Sinto-me bem: do outro lado da rua, uma vivenda cercada de rosas viço-variega explosões quietas em fragrância; um cão deitado pensa no castelo da colina, onde outrora cadelas-infantas exerceram os alvarás do mais régio cio; e eu sinto-me bem, perto destes dois que se amam sem horário a favor da mútua (a)do(r)ação.
O autocarro chega, eles embarcam, eu não, decido ir a pé, chego tarde aonde me esperavam.
Então, perdeste o autocarro ou quê? – atira-me o Chefe.
Quê – respondo eu. E esclareço:
Estive na paragem do autocarro a ver a jovem mãe com o filho ao colo.

*

As figuras dos sonhos pedem-me vida no dia seguinte à noite dormida. Tento não esquecê-las, quando tão gentis, quando tão sozinhas me chegaram à cadaveresca imitação de adormecido.
Elas são madeira na combustão do que pens’into. Farrapos de manhã esfiapam-se porém breves: e elas dissolvem-se na finura (fineza nem sempre)  do ar novo.
Quando chego ao Café para anotar as circunvoluções cerebrais, o mais anotado são vilosidades intestinais: esta coisa do corpo se querer vivo contra tudo a favor de todos

os gatos
os cães
os retratos que na casa perduram gentis mortos
os naperons
as pagelas histórico-literárias
a taça com flocos de mel que a menina deixou
o Inverno de 1929 quando o meu Pai
a Primavera seguinte em que a minha Mãe
os periquitos
os pardais
os vizinhos
os Estados Unidos da América da Morte
a Dona Susana sozinha em casa
o Terreiro do Paço arquitectando a luz do Rio
o meu País que já só em sonho.

*

(Pedras)
Atiro pedras que são versos
à água concêntrica da atenção.
Nem tudo me corre bem,
coisas há que me param.

Far-me-á um dia o coração
o mesmo, disso estou certo,
olha o Olímpio Ferreira.
Não, nem tudo me morre bem.

*

(Beiras)
Das beiras pluviais vem o recado da passagem,
a imagem é corredora mas quieta, se uma pessoa
(se) permitir ao mundo a agência noticiosa
que consiste na árvore, no caixeiro e na rosa.

*

(Genealogia)
Duas quatro oito mãos / iguais a estas /
oito quatro duas / uma que escreve: /
as dos avós,
as desta voz.

*

Os jogadores de bilhar engendram, nas catacumbas do café, a pool da perseguição. Ouço deles o vozear, que compenetra o salão onde reinvento a sobrevivência, a-todo-o-custo-tusto.
Algumas moedas no bolso, Outubro vem vindo quente como um orgasmo de luz esbraseante.
A mulher de blusa cor-de-tangerina vem pedir duas pedras de gelo, a levar num copo de plástico. Ligeira curiosidade:

– O teu menino aleijou-se? 
– Não, é para outros efeitos.

*

Homens-mulheres descem a Costa, vão ao Campo
recolher da terra os produtos verdes.
Isto passa-se na minha infância-distância,
mais ainda os vejo, admiro ainda esses matrimónios
de botas de borracha que descem a Costa, que descem sempre
mas sempre voltam,
ao contrário da distante infância.

Canzoada Assaltante