29/03/2012

Rosário Breve nº 252 - in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 29 de Março de 2012



Formação Cívica


Durante muitos anos (anos de mais, talvez) escrevivi num concelho tiranossaurizado por um figurão-figurinha mais lerdo e mais incapaz do que uma beterraba num congresso de astronautas. Confesso que me deu merecido gozo cronicar-lhe a alarvidade, causticar-lhe a persporrência, destesticular-lhe o atavio e excomungar-lhe à força toda a cristandade dos neurónios, de que aliás não extraiu nunca, nem jamais extrairá, cabal certidão. Na impossibilidade de florir esponsais com a Shania Twain, foi assim que curti o ganso. A experiência ficou-me, o lápis não me murchou e a azia tem remanescido minha fiel e portátil companheira, cada vez que dou de trombas com algum novo e alternativo e lídimo espécime do p(h)oder local.
(Interlúdio: juro pela vossa saúde que não era minha intenção tornar tão depressa a moitaflorir esta minha/vossa coluna. Mas:)
a páginas 3 deste jornal (edição de 22 de Março transacto) dei com as tais minhas trombas numa citação projéctil-blogueira do triste edil de Santarém. Esta aqui: “­A direcção do PS local tornou-se flatulenta politicamente. O seu prazer é o ruído.
Li, reli e tornei a pasmar. Fui à net e confirmei: aquilo foi dito/escrito e posto em rede. Eu já nem me indigno com a indignidade. Falta-me a idade para isso. Eu já nem digo que o menino é malcriado. Limito-me a vituperá-lo baixando de nível para conseguir estar ao nível dele, fazendo eu do coração tripas: rasteira e escatologicamente, o que me surge dizer da tal citação é que não vale um peido. Que a personagem é bufa como uma opereta vadia. Que antes queria borrar um pé todo do que ter uma alma que mais caganita do que cogita. E que fazer de um mandato uma fossa a céu-aberto equivale tão-só à evidência de estar atarraxado ao poder como uma tampa de saneamento à cloaca.
O flato lento deste senhor não me impede, todavia, de reelevar o nível, que é o do meu leitor e o do meu jornal. Corações ao alto, portanto: dirimir/esgrimir argumentação política não deve, nem pode, ser um estoiro anal.
O paradigma do serviço público não é uma merda qualquer nem para um merdoso qualquer. A ideia que tenho de democracia em liberdade equivale à apologia das mais extremas educação, cortesia, civilidade e assertividade. A vida não é a alvíssara da bargalhota. É o rosto do outro no espelho do próprio.
O tal figurão-figurinha do tal outro concelho onde desperdicei anos que não voltam – nem esse, por mais asininamente estampilhado pela posta-restante da estupidez, seria capaz de penicar tal falta de chá.
Quanto a este, estamos cagados, perdão!, estamos falados.


28/03/2012

LIGAÇÃO À MEDUSA - 23 (fragmento 4)

Tornaram já as escolas, pintainham de bibe já
as crianças antigas que fomos no que elas
repetem tendo vindo a ser.
Elas são fábricas individuais do rumor-color,
assim pissitando, estorninhas, a primavera outonal
das escolas.
Vi algumas agora minha mente adentro, coloridas.
Cada farfalhar de bibes, outras tantas vidas.
(E se me demoro, temerário, templando-as,
vou com elas, com elas sigo – e ando-as.)

LIGAÇÃO À MEDUSA - 23 (fragmento 3)

Toca-me o outono seus digitais damascos,
vigoro na penumbra minhas estrelícias.
Sim, tu sabes, mui tenho andado por tascos
que, por baratos, são de ladrões e polícias.

Dois terços da vida, quem mos da/di/ria,
atenta a permilagem salazarista?
Eu, que nem era p’ra vir a ser artista,
artista vim de noite & dia.

Tonal, outonal e coisital, o vivo lume
abranda, insular, a insolação.
Isto é tudo obra de perfume.
Obra tudo, ora, de coração.

26/03/2012

LIGAÇÃO À MEDUSA - 23 (fragmento 2)

Sinto distintamente as migrações das minhas aves verbais, que me tocam, feirantes, de um algodão-de-açúcar. Isto tinha de ser assim – digo-me-vo-lo.
Uma senhora de amarelo-poente-laranja, as ancas de rabecão oitocentista, os pés embalados em estojo de creme macrobiótico. Um cavalheiro careca como um pêssego denuncia três décadas e meia de França-Bidonville ao tomar-se pernod.
Gatos e aranhas: sujas, as lentes dos óculos, as quais, ao contrário das minhas finanças, são progressivas.
(Austral, meridional, presa fácil do setentrião psíquico, coloro ainda os desenhos vazios a lápis-de-cor marca Viarco.)
Epifanias e renúncias: minha história.
Na montanha, ante o mar vertical da penedia, a mesma entrega que ante o mar.
Togo, Samoa, Canadá e Marrazes: instâncias e distâncias: que o verbo português aproxima em recri-cre-ação.
Brancas, as sandálias salt’alteadas desta feminil estatura: ao balcão, debicando de sub-lábio o café-creme em chávena fervida. Adeja mariposamente as estampas dos braços. É de érea morenidão, axilas firmes e bom pescoço. Forma no ar em torno uma esquadrilha de abelhas. Toco-vo-la aqui, rabequista.
(Breves e repetidos coices de pus no coração: a memória é infecciosa.)
(Leituras de Teixeira de Vasconcelos e de Tomaz de Figueiredo: Portugal outra-hora-ainda-agora.)
Descanso ora um pouco.
 

LIGAÇÃO À MEDUSA - 23 (fragmento 1)




23. EPIFANIAS E RENÚNCIAS – ou ERA UMA VEZ UM CÃO

Leiria, quarta-feira, 14 de Setembro de 2011

As sedas tornam vaporosas as mulheres ao calor sem clemência de Setembro. Delas (sedas e mulheres), a bondade física mana perfume óptico. Sou feliz vendo-as que passam trotando destinos de rumorosos rumos.
Acolhe-se o artista a uma tenda de vidros na Baixa Antiga do Burgo a que o devolveu a vida andarilha. Estou a ser feliz devagar, penso o menos possível. Ontem à noite, partilhei música e corpo. Toco hoje as estremaduras sempre renovadas do nosso idioma, que ao lado duas pessoas praticam sem metafísica nem chocolates, engenheiro Álvaro.
Uma rapariga bem brunida pelo Sol lacador, de blusa justa como uma sentença ajustada, derrama sobre os ombros mesmos uma cascata de ouro: e usa o mundo mercê de olhos castanhos onde o hidromel pensa pupilamente.
Depois, há homens: não já Francis Bacon & George Dyer, mas corpos entregadores de mercadorias que à tarde estremunham fadigas de mercado abastecedor. Este, de camisola de algodão muito rubra, surge em flama activa. Trabalha para uma cervejeira que muito aprecio. Aquele, de garruço azul à pescador-de-pérolas, toca, falando, a harmónica grisalha do bigode, a que a espuma da spébòque empresta neve.
De modo que tudo isto é maravilhoso. Sei que a maravilha está no idioma, mas não custa disfarçar que é no mundo. A camisa que veste o homem da sopa-dos-pobres é a mesma de ontem. O casal entrado agora dá substância à fascinante união dos antípodas e dos antílopes: como no-la exerceram antes, exercemos ora nós a gentil e estremecida pecuária da procriação.
Vou ao reservado e urino em plena solidão fisiológica. Ao espelho do lavatório, um gajo de quase cinquenta anos olha o menino que fui. É quarta-feira na minha vida.
 

LIGAÇÃO À MEDUSA - 22 (integral)




22. P. E. NL.

Leiria, terça-feira, 13 de Setembro de 2011

Atento pela Cidade às marcas do Tempo: nos prédios, nos rostos, nas leiras que o município cobre de flores e avisos.
E no meu coração coleccionador a bateria do sangue batendo o tambor dos passos, entre compatrícios breves e eternos.
Um hotel de frontaria muito azul imita uma emanação de céu, à minha esquerda, um azul bem pintado por anónimos artistas.
Passo, repasso – e o caderno vai-se pré-dotando de sinais a cuja claridade nem a minha mais obscura melancolia pode obstar.
Evangelizo os meus versos indígenas à passagem pelas fontes bentas de alva alvenaria, na água dos séculos.
No jornal, os crimes, as opiniões, os negócios, os cravos e as ferraduras, as alimárias da desgovernação pública.
A tarde larga de Setembro a tudo envolve como uma seda quente depressa flanela, de que as nuvens pulsam ramas.
À beira-rio, mulheres atiram o corpo à condição de flores carnívoras, uma em grená, em verde outra – e perfumadas ambas da melancólica hortelã do cio.
Flicto à direita por bandas da Sé, de que vêm saindo as andorinhas octogenárias cuja última primavera é a invernia do missal.
Derivo ao sol até cercanias do jardim-parque, onde toxis, reformados e outros ociosos aclamam em silêncio a pederastia, o dominó e a mortalha lambida.
Paro. Escrevo. Não leio. 

LIGAÇÃO À MEDUSA - 21 (integral)

21. AGORA A CORES EM LEIRIA

Leiria, segunda-feira, 12 de Setembro de 2011

CORES, UM

Duas mulheres conversam atabafadamente na tarde. A tarde é uma azulejaria: uma estampa de gás: uma fragrância azul-ouro conspirando claros olhos. Estão de sandálias e amodorram-se numa gramática baixa-voz: mais quando as confidências, essas quase surdas cigarras, formigam o éter do salão de café & refrescos.
Vim do lado do rio. Soprei-me acalmações em corpo de fina blusa. Calcei passos leves, que me demoraram toda a ida que uma vinda, a(o)final, é. As sombras longo-avenidas estavam texturas dérmicas.
Um doutor velho lê a edição de ontem do Jornal de Notícias. Nevam dele películas mínimas, que uma pomba bica e engole de papo pulsando como um coração verde-chumbo. O doutor velho é todo azul-cinza, todo sapatos castanhos e meias creme. O todo-dele é o quase-nada a que a muita passagem reduz toda-a-gente. Muitos anos, muitos jornais: e tão pouca notícia, que aliás tento nestes cadernos calígrafos,
agora a cores em Leiria.

CORES, DOIS

Uma revoada de aves já outonais
concretiza o pleno da atenção que te tenho.
É no mesmo país, eu sei, mas a que país
pertence um céu destes, tal campânula
de seda estampada a ouro-velho, a carmim
e a veludo-pomes quando a Lua iça
do chão o olhar dos não-levantáveis?

A atenção que te tenho, soerguida e sopesada
a facturação das televendas (colchões ortopédicos
para velhinhos de lar terminal, dízimo-cristos
de dólar-evangelização brasileira), retida
e retenente e rutilante atenção que te tenho,
fazendo das minhas mãos duas conchas
que a maré de ti-corpo dá à praia
dos dias quando se faz noite (a)manhã.

Um trote de cavalheiros sobre verniz antigo
de assoalhados coimbras-clubes, onde
até as putas de ofício eram amais discretas
que a tristeza-capilé das casadas
com casados-ginjinha, sabes, acordeão-
-jazzband-contrabaixo, o rumor vinagroso
dos jaquinzinhos fritos, os verões escuros
das pessoas que praticam o insensato
catolicismo da poesia.

Aves tonais
etc.

CORES, TRÊS

Homem de camisa verde-garrafa e homem de camisa azul-brancomangas. O de verde, bigode. O de mangas brancas, escanhoado como uma bola de bilhar. Casamento infeliz, nem sempre é redundância, mas é acerto no caso do azul-branco. O garrafa é desquitado. Mercam coisas, ambos. O branco, seguros. O verde, laranjas. Conversam na tarde, falam de azulejos.

CORES, QUATRO

O pássaro passa em dele a linha mesma,
escuro que a branco sobre azul produz em luz.
Um prédio vigia a demora da passagem,
duas-bandeiras marcam a pensão três-estrelas.

A Cidade de Leiria acontece toda ao mesmo tempo
no pássaro mesmo: em linha. As cores são,
da janela do ente vistas, alusões ao início:
onde o vulcão dos pais, a cinza dos pais.

CORES, CINCO

A distracção é devagar que se torna atenção.
E cor: é vagarosa a cor. A barba azulada
na cara do homem que pensa na filha,
no chefe, no destino das relíquias que respiram

o tempo dele de que ele foi. Um pote
de barro vermelho com fria banha de porco.
Um retrato de pai flor-secando, a culinária
que a mãe guardou na estante. Um coto
de lápis.

Estas pessoas agiurdindo na tarde claríssima:
delas as votivas sombrias manchas dinâmicas.
Estas casas senhoriais destinadas já tão-só
a rótulos de vinh’adegacooperativacacique.
O tempo do Tempo delas: as pessoas-gaze.
Sim: se a cor é rápida, a cor é rapace,

rapazes.

CORES, SEIS

O chão pisado pelos corpos, pelas máquinas deles.
Os vinhateiros que pontuam os cosmoramas.
A tão frondosa ramalhagem das frases eólicas.
E a derrapagem dos preços no coração doméstico.

O homem que vai comer à Sopa-dos-Pobres.
As pérolas de baquelite nos colos veros.
Os carros da comitiva (ir)real.

22/03/2012

Rosário Breve nº 251 - in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 22 de Março de 2012




Da cardial claridade

O dia é hoje de uma claridade total, que o revérbero dos vidros dos carros e das janelas mais ’inda holofotam. É tudo uma grande piscina de ar azul-ferrete, ao cimo do que nem uma nuvem sequer. À madurez da manhã, os campos que cintam a Cidade estendem panos verdes melhorados por veias de água esmaltada a madrepérola. Muitas árvores estão em fruta. Um rapaz vende batatas, morangos e flores-de-cemitério à beira da estrada, não longe já da Ortigosa. Sente-se ao longe a ânsia serena do oceano, que volve atlânticas a espera e a esperança.
Por cá, o Rio Lis gargalha de patos. Desempregados solitários e ribeirinhos patinham em silêncio suas mesmas silhuetas – e são as primeiras sombras que recebo da terça-feira mais recente do mundo.
Uma pessoa nem sempre desgosta de estar viva nisto. O pano de relva separador do ir-e-vir da Avenida verdeja viçoso tal uma rapariga rubra. Ao pináculo do meio-dia, o mundo é diáfano como uma seda caída aos pés de um vaso de cristal cheio de leite materno. Os dobrões de um sino veneram a qualidade érea e aérea da eternidade possível. E um restolho de pombas municipais movediça-se pelo chão vivo do Largo, a cuja travessia me ocorre a seguinte rosa-dos-ventos:
a Oriente, o casario cristão caia a luz forte. A Cerâmica abandonada teima em subir ao céu o desemprego das duas chaminés, as quais exclamam uma dignidade pernalta e triste de cegonha;
a Ocidente, sabemos que as bestas do ultracapitalismo não desarmam nem nos amparam a loja, mas também que crianças brincam com cães em jardins-parques, comboios reúnem famílias em apeadeiros tão domésticos quão pátios de latada, bandeiras de pórtico de hotel cosmopolitam a utopia da unificação do género humano: e que algum homem com alguma mulher refazem a este preciso instante um amor para lá da minha compreensão e do nosso engenho, mas não da vossa suspeita;
a Norte, uma colisão de ligeiros faz formigar as fosforescentes formigas dos agentes de trânsito. Mirones especam para ver se há mortos;
e a Sul, a Sul estão o meu leitor e a minha leitora, que, a esta última página chegados, dobram o jornal e o abandonam na mesa do café, onde outros olhos e outras mãos hão-de desfolhar a rosa-dos-ventos desta crónica.

15/03/2012

Rosário Breve nº 250 - in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 15 de Março de 2012



E vão 250

Esta é a crónica n.º 250 que vos escrevo. Parece mentira: um quarto de milheiro de semanas desde o dia 27 de Maio de 2007, data da primeira coluna que aqui assinei a convite da malta dO Ribatejo, convite que me honrou e honra e que tanto continua a gratificar-me.
Os meus leitores perdoar-me-ão decerto que, assinalando a redondeza da efeméride, esta crónica vá um pouco mais virada para “dentro”. Ou seja: esta semana deixo Moita & quejandos em sossego e faço prova pública da minha gratidão para com o jornal humano, que naturalmente inclui a gratidão para com tantos leitores, monárquicos e sportinguistas incluídos.
Dia 3 de Março recente, fui almoçar ao Adriano da Taverna Miratejo, lá em baixo para o Alfange, à face do belo Tejo. Por óptimas que fossem (e eram, e eram), nem as enguias nem o sável puderam rivalizar com o teor todo ourives da companhia que me fizeram: a Zélia Barata exerceu duramente o prestígio da sua beleza física e moral; o Manel, marido dela, inchava como um pavão a hélio ante o nosso desconcerto; o Viriato Teles ensinou-nos coisas do Fausto Bordalo Dias, revelação que, ora & aqui publicada, me vai decerto mover um processo judicial; o patrão Adriano não me levou cêntimo pelo sétimo moscatel; o Manuel Freire não cantou a Pedra Filosofal nem deitou Abaixo o D. Quixote, mas disse coisas melífluas do General Eanes e do Padre Fontes, aquele das bruxarias; derredor Alfange, o Tejo era a veia viva do costume: espécie de Alves Redol em alma líquida; o Zé Oliveira e o Júlio Murraças trocadilharam à fartazana, tendo o Júlio contado uma coisa de pescadores e de maçãs que ninguém percebeu, a começar por mim; o pessoal dO Ribatejo se calhar nunca tinha juntado tantos leitores juntos, tirando aquelas galas aniversárias a que o Relvas e o Chico Flores já foram, embora contrariados por causa da liberdade e coiso; o Zé Freitas, como toda a gente sabe, não existe nem respira, como todo o bom espanhol, mas o ágape foi excelentíssima organização dele; o João Nuno “Pep” estava atento às hostilidades e comeu como se fosse etíope; a minha senhora e a amiga Mafalda também comeram de mais, mas um dia não são décadas; o Fernando Costa deglutiu com delicadeza tudo o que lhe puseram à frente, incluindo uma vela esquecida que ali estava; o João Baptista mandou umas boquitas arranha-benfiquistas, mas no geral primou pela ética e pela deontologia que o caracterizam, o sacana.
E depois havia o Quim Duarte, esse irrevogável ajuntador de migalhas que, águas-vêm-águas-vão, nem merece dois beijos de homem para homem em público, quanto mais este. 

09/03/2012

Um verso bissexto (29-2-12, Leiria) para o Quim Jorge




O Rio Mondego dizendo o longo verso de si mesmo.

08/03/2012

Rosário Breve nº 249 - in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 8 de Março de 2012


© Pawel Kuczynski



Sem dias

Imaginemos, por absurdo, que chego a casa e digo assim à minha senhora “– Olha, a situação está e é má, mas tu dá-me cem dias. Vais ver que eu em cem dias pago tudo, resolvo tudo, saneio tudo, limpo tudo, que eu sou o Senhor e nada nos faltará, passando nós de nabos a nababos num ápice de meras catorze semanas.”
Imaginemos, pois, que eu era absurdo ao ponto de não apenas firmar como afirmar e até acreditar nesta manhosa intrepidez de onzeneiro da banha-da-cobra doméstico-político-palradeira. Que (nos) aconteceria?
Acontecer-nos-ia isto: que, passados seis anos (ou seja, mais de dois mil dias depois; ou seja, mais de 20 vezes os tais cem…), eu não apenas não teria pago, nem resolvido, nem saneado, nem limpado, nem sido o Senhor, nem nos desnabificado, como ainda teria astronomicamente inflamado o pus dos calotes ao merceeiro, ao sapateiro, ao encadernador, ao peixeiro, ao veterinário, à bruxa, ao padre, à Casa do Benfica, ao homem do gás, ao livreiro, ao carpinteiro, ao canalizador e à sociedade do euromilhões da tasca da Rosa – e como, ainda por cima, já só viria dormir a casa dia-sim-dia-não, daqui aumentando em mim as possibilidades mais cornúpetas e a ela, à minha senhora, as veleidades mais ladydianescas.
Por ser, enfim, absurda de mais, porra para a imaginação! Mas os/as leitores/as sabem muito bem a que (e a quem) quero eu chegar. Estive folheando o Anuário Financeiro dos Municípios Portugueses 2010. É literatura pelo menos tão deprimente quanto aquela a que determinado figurão autárquico, não sem aliás o dote da invejável lisura da irrelevância, se dedica tão afanosa e tão esterilmente e tão operético-vadiamente.
Ó santarenos: cem dias vezes seis anos são uma eternidade mais cabisbaixa ainda do que o reboco do scalabitano casario ribeirinho do Alfange e muito mais incontrolável do que os gangues de gatos empoleirados nos transbordantes contentores de lixo daquela e das outras artérias da cidade e do concelho.
Vale-me que a minha mulher se não chama Santarém, mas Graça. Só que eu, por desgraça, não sou Chico. Nem esperto.

07/03/2012

LIGAÇÃO À MEDUSA - 20 (fragmento 4)




13/ E da linha fresca do mar sinais manam antigos
às vidas dirigidos unipessoalmente.
Cada um(a) os aproveita como gente.
Cuidado: eles homiziam, não são amigos.

Gente de relações minhas usa comer gelados
quando já o brando Outono se desculpa
de não ter já do V’rão a mole culpa
dos dias d’asfixia atabafados.

14/ Quanto me custaria, senhora, em boa hora,
não ter ficado em ti, ter-m’ido embora?
Ter medo, agora, senhora, aquanto
me custaria o dia, senhora? (O quê: tanto?)

15/ Quando ela faz anos, o planeta expulsa pinguins,
o senhor que trabalha nos seguros nem bate
tanto na mulher e os pessegueiros fremem como coristas.
Quando a minha Irmã faz anos, há arlequins,
há travessas d’arroz-doce, há chocolate
– e há os anos que um ano hão-de (disparate!)
fazer de todos nós, sei lá!, artistas!

06/03/2012

LIGAÇÃO À MEDUSA - 20 (fragmento 3)

12/ Um corpo parece-me uma alvenaria de pele.
A boca é-me um tambor devidamente oco.
Na minha rua-d’antes, um senhor de nome Miguel
descascava batatas. Ele era leal. Era fiel.
Comum também: e são: e mouco.

Uma rosa perece-me expeditamente,
igual a qual tenho perdido gente.
Perecer é ser-não-ser: e antigamente
o senhor Miguel enrouquecia comummente.

Descascava batatas. Nascera ele, nado rubro,
no exacto dia número cinco de Outubro
de 1910. Implantação. Rotunda. Confusão.
Na minha rua d’alvenaria,
adeus, Miguel,
’té qualquer dia.

01/03/2012

Rosário Breve nº 248 - in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 1 de Março de 2012


© Eduardo Gageiro, in Mulher



Ned sem Nel ou de ginjeira

Por uma destas frias, áridas e maninhas noites de sexta-feira, fui a um baile-das-velhas. Vocês sabem: aquelas matinées de lázaros & lázaras que parecem ressuscitar os passamentos geriátricos través o milagre simples do organista-vocalista.
Mandei vir uma ginja e um pires de tremoços, acalentando durante um arremedo de esperança quanto a encontrar alguma avó divorciada que comigo aceitasse merengar um bocadito de Nelson Ned ou de Nel Monteiro. A bola-de-espelhos tinha a translacção avariada, pelo que as estrelas eram fixas no céu de popelina do estaminé.
Lá fora, as motorizadas e os táxis enregelavam à lua triste na antemão de cópulas só dérmicas, que a idade não doa nem perdoa, só dói.
Derredor, cavalheiros encanecidos como cisnes anacrónicos faziam pé-de-alferes (que o mesmo é cortejar d’arrastão) a araras aramaicas de rugas as mais cuneiformes. Havia botelhas de malvasia à base de beterraba sacarina (daquela que dizem vai voltar a haver em Coruche). Também havia tremoços. E mais próteses dentárias do que milímetros de asfalto na Rua das Manteigas da freguesia de S. Nicolau. Deixei-me estar naquele transe de melancolia atenta que confere a um pré-cinquentão, no referido contexto, toda uma aura de efebo o mais púbere, o mais sumarento e o mais acamável, se o ponto de vista fosse o de uma septuagenária comichosa ainda e ainda com dinheiro para o táxi, que eu nem motorizada tenho.
A septuagenária lá acabou por vir e chegar e pedir-me o obséquio (aos anos que eu, tirando a leitura do Altino Tojal de Os Putos, não ouvia o pedido, e aliás a fineza, de um “obséquio”!) de uma moda do Nelson Ned. Acabei a quarta ginja, palitei o interstício frontal e acrílico da placa de cima, levantei-me e fiz-me à pista.
Já manteiguenternecida, a dama (que era Ivone e reformada dos Correios, para mais com um netinho aviador nos alemães de Beja), perguntou-me que fazia eu. Eu disse-lhe que nada, que só escrevia no Ribatejo. Vai daí, diz-me ela assim: - Ah, então o senhor é aquele que escreve muito bem, o coiso, ai!, o Moita Flores?”
E eu rosnei-lhe que não, que quando escrevo é mesmo a sério e sem auto-beatificação, e sem projeto ou sem “projétil”, e que quando eu escrevo é mesmo mesmo a sério para ninguém. De modo que a seguir, já nem Nel Monteiro.

Canzoada Assaltante