27/04/2011

Mais coisas

22. LENA E OUTRAS PEREMPTÓRIAS SENHORAS

Leiria, quinta-feira, 21 de Abril de 2011

O fado reforça na manhã a vadiagem peremptória do (m)eu-corpo. Vou a Coimbra hoje. Falei com senhoras, uma de Marvão (Portalegre) por Leiria radicada vai para lá (ou cá) de quarenta anos, chama-se Dona Guida; a outra chama-se Dona Rosa, não sei (ainda não sei) de onde é. Também falei com senhoras chamadas Dona Leonor, Dona Alda, Dona Amélia, Dona Sandra e Dona Alexandra. Por serem todas irmãs, as senhoras são todas donas de si mesmas em aparato de relação ginoglotológica, por assim dizer. Plasma-se agora uma pátina de sol, agora sendo as 12h36m. E a vida teima a vida.

*

Passa ao lado do Mercado de Santana a carrinha-frigorífica do Talho Lena. Conduzida por uma senhora, mas por estas bandas Lena é nome de rio. Sentado em degrau lateral do antigo BNU vendo passar as coisas mundiais: carripanas, gente absorta, camisas e blusas de cores emaciadas pela iminência pluvial, rapazelhos de patins-em-linha, nuvens sobre azul à genérico dos Simpson, óculos de lentes fumadas à Brad Pitt, farolins cagados pelas pombas, personalidades omnívoras palitando anfractuosidades tártaras, toldos de esplanada como pálios de paradas procissões ao orago do consumo, predomínio cinzento-metalizado dos bólides pequeno-burgueses, pombas recortadas à folha-de-flandres volante, carrinha da ECF Telecomunicações, cinco freiras de azul num Fiat Punto, o táxi 103 da praça de Leiria (Mercedes C220 CDI, 47-GZ-60), um cavalheiro com mica porta-procurações e cabelo ralo como uma escova-de-dentes de há dois matrimónios – e a minha Senhora, finalmente, que se faz hora de almoço e ainda não fomos ao pão.

23. RISCO

Leiria, sábado, 23 de Abril de 2011

Por um dos lados da minha cabeça, a ideia da morte-com-sofrimento de amigos é intolerável. Quinta-feira à noite, esse corvo mexeu as asas nauseabundas: há risco em linha no que respeita ao Aniano. Li o relatório da tomografia axial computorizada. Pousei devagar o copo, atirei para a esquerda a baforada tabágica.

24. FAZ HOJE

Leiria, segunda-feira, 25 de Abril de 2011

À varanda, fumando um cigarro sem destino, considero com a pele algumas diatribes quanto ao futuro compósito de múltiplos passados meus. Jornada ampla de sol em plataforma e torno. A casa, protegida de persianas, guardava-se a si mesma ao fresco. Cozinhei devagar, folheei um livro, fui redescoberto por um manuscrito de Dezembro de 2001, relemo-nos um ao outro. Trabalhei no Ideário terminado (entradas 15 e 16). Saímos depois a tocar a brisa aprilina. Disse-lhe:

– Faz hoje dezassete anos, sepultámos o meu Pai.

Agora, este caderno cresce como um fruto para meia dúzia de bocas. Pedem-me a presença em Coimbra na próxima quarta-feira, 27. Lá estarei, em princípio. Cá e lá – mais durantes e por-enquantos. O meu trabalho é este: estar vivo por escrito. O resto é a crestomatia das minhas circunstâncias, nada de especial nem de outro mundo. Na esplanada, um rapazola com um paralelipípedo de merda nas mãos: um “romance” daquele locutor de televisão, o coiso das orelhas. Tempo do vazio, era do frívolo – estes anos da “imagem”, do “à tona”, da acefalia orgulhosa de si mesma. Nada de importante, enfim. Melhor do que a merda é o dia: bom sol instantaneando ideia & emoção, perspectiva & perífrase, cor & distância, segunda-feira & feriado. Bebe-se uma mini, fala-se de irmos ao pão, as coisas decorrem muito fluvialmente como se manassem deste caderno-nascente. Talvez deveras manem. Estou atento. Do que vier, darei conta.

*

Não há quem possa segurar a onda do mar com as mãos, ela é irreprimível, há que resignar-se toda a pessoa à força dela, o mar aí está para ensinar a morte enquanto demonstra a vida, é natural dos rios rumarem a ele para morrer como se fossem salmões, este ciclo não pode ser reprimido, por mais que a alguém isso custe como dar os olhos da cara ao rosto da noite, não há como nem quem.
Gente moça vista daqui través vidraças passeando pelo jardim municipal, também essa mocidade é duplamente rio e onda-do-mar, usam as mãos como antenas que aprendem a efemeridade dos sinais, e no entanto também os sinais são irreprimíveis, os sinais-gestos que afloram os rostos-éter, muito pulsa a vida na pulsão da morte, a estiagem convoca atlanticamente os corpos para o litoral literal do país lateral, as mãos vão a bordo das pessoas-antenas, eis senão quando segurar a onda do mar intentam, coitadas.
Em salões acortinados a damasco, os nomes dos mortos fazem-se bibelôs de faiança, bules adejam chás perfumados que não podem senão arrefecer na suspeita do exterior jasmim, ou jardim, ou mar sem fim, não há como reprimir a mão que alcança o bule e o retrato, o dossel e a baixela, a prata e o pó, não há quem nem como.

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Canzoada Assaltante