26/04/2011

Era uma vez em Coimbra, em Junho


© Tina Modotti
Escadas (México, 1925)




MARGINAL PASTOR DE ÁGUAS ou S’UM DIA EU FOR À LUA (fragmentos)

Coimbra, quarta-feira, 16 de Junho de 2010


Vivos chãos sobre chão de mortos.
A Cidade toda escrita: ruas, lápides.
Vesgos olhos, dentes tortos.
Vestais antivirgens, elfos, sílfides.

Sol brancamarelo em puro azul.
Ramagens frescas farfalhando.
Eu sou de uma terra anil
– e vou andando, e vou andando.

(…)

Campos estendo, os olhando, quais toalhas. Dei hoje ração reforçada às aves (um melro, três pardais) no relvado quase sob o viaduto do Norton de Matos: ao pão, uni arroz seco. Espero em vão ser remunerado de ter vivido. (…)
Recebo a graça alta: todo o azul. Verdejo entre árvores frescas, que atiram ao chão frescos mantos de sombra. Eu sou o homem na Cidade, como na canção. Porto uma população dentro. Serotonina e nostalgia me electrificam. Se calhar, sou feliz – e não o sei. Sei poucas coisas. Colhi ontem do rio o montante de solidão bucólica: pastor de águas serei, marginal.
(…)
Cordura, que não estultícia, pratico, vivente. Esta é a minha ora-vida. O olhar quieto, reflexivo, nas bombas de gasolina em frente. Uma revoada de páginas (próprias como alheias). Cidadão entre cidadãos. Inspector de nada, pronto para tudo porém. Ter ido ontem para haver sido, amanhã. Ensaboar o corpo solitário, dar-lhe de comer como a pássaros, ser, pelo corpo, pensado.

(…)

De tarde. Quem me dera ser um Vermeer palavroso capaz de perfilar em escrita este perfil: rapariga auxiliar de frutaria debruçada sobre as caixas multicolores em banca no passeio. Augusta humildade a enforma, pele e gestos, avental e liso cabelo apanhado atrás por fita azul-celeste. Mocassins baratos figuram dela os pés breves. Mãos de trabalho, porém: e viçosas de fadiga. Agora, coisa de há instantes, este acontecimento maravilhoso: em puro vigor, uma revoada de pombas. Nutridas, cor-de-chuva-de-Novembro ao pleno sol de Junho: maravilhosas.

(…)

Nem toda a dor passa, nem toda é passageira na viagem de cada um(a).

(…)

Tinta, papel, lápis, mão direita: nunca fui nem serei mais do que estas quatro coisas.

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Canzoada Assaltante