31/12/2010

Rosário Breve n.º 187 in O RIBATEJO - 31 de Dezembro de 2010 - www.oribatejo.pt


Anedota aliás fraquita




Vão quatro freiras em seu dois-cavalos. De convento a convento. Noite inóspita, regelada. Atravessam um pinhal o mais ermo, o mais desolado. Tantas horas não contadas da madrugada nigérrima. Frio agudo como lasca de osso já roído. Hora má, enfim. Nisto, acaba-se a gasolina às sorores. Princípio de leve pânico, pensamentos (quatro) porém em Cristo. Saem do carro. Esperança não vã nem vácua em milagre. O milagre acontece: entre os afilados paus negros dos pinhos, uma luzita eléctrica. Se eléctrica, humana. Vão as quatro, rumo direito, à fonte luminescente. É um casinhoto também o mais ermo, o mais desolado. Batem à porta. Demora. Rebatem. A porta chia de abertura. É um homem. Só um homem e um homem só. Grosso de fala, diz: “O que é que vocês querem a estas horas?”. E elas: “O irmão desculpe, mas, por milagre, não dispõe de alguma gasolina?”. E ele: “Milagres, não gasto. Mas gasolina, até tenho. Recipiente é que não. Só se a levarem no meu penico.” E elas, airosas sempre e desistentes nunca: “Seja então pela graça de Deus!”.
Retornam ao citroën com a inquebrantabilidade das mulheres sem homens. Uma desatarraxa o tampão do depósito, outra comanda, duas apontam o beiço do vaso-de-noite. Vertem o combustível. Eis senão quando um camionista se achega à cena. Do lusco-fusco, vê ele o que os meus leitores vêem: quatro freiras, um penico, um dois-cavalos etc. O camionista suspende a marcha. Descerra o vidro do lugar-do-morto e atira: “Porra, irmãs, também é preciso ter uma fé do caraças!”.
E isto era – e é – o que eu queria dizer ao senhor Sócrates, que me parece viver sozinho numa casa sozinha situada em algo vão, e o mais ermo, e o mais desolado, onde, seja o que for, nem por milagre.

28/12/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 137

137. RECONHEÇO NO RUMOR DA FONTE A GRAVAÇÃO DA CHUVA
Coimbra, segunda-feira, 27 de Dezembro de 2010


Reconheço no rumor da fonte a gravação da chuva.
Sinto-me um homem-apenas ao ar-vidro da manhã.
Discorro com alguma segurança sobre vidas férreas e viárias.
Não sinto discordância quanto aos amores estéreis.
E alimento na sombra os animais memoriais.


E que tipo de nome deixo às agonias precoces?
E por que motivo prefiro os salgados aos doces?
Onde as senhorinhas esquinam fatos vermelhos,
aí eu, tomado o café, cirando sombras de púrpura.
É uma espécie de pureza diamantina, à época.


À superfície da consciência, o pélago primevo da ideia,
o Arco Pintado (ou o Arco do Cego, dá o mesmo), o corpo
entre cidades-ilhas que se des-re-fazem na névoa,
tal o molhado musgo dos primeiros anos, quando
respirar não vinha com tabaco nem café.

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 134 - Coimbra, quarta-feira, 15 de Dezembro de 2010

134. PESSOAS ESTRANHAS AO SERVIÇO E SENHORES PASSAGEIROS

Coimbra, quarta-feira, 15 de Dezembro de 2010-12-15

O novo dia ou o dia de novo?
Tenho de decidir-me.

24/12/2010

Rosário Breve nº 186 - www.oribatejo.pt - 24 de Dezembro de 2010

Robin de Jesus

Era para deslindar-me desta crónica com uma proposta de petição a abaixo-assinar pelos meus leitores que alinhassem nisto: juntar uns trocos e contratar os serviços de tantos homens-do-fraque quantos os ministros deste ingovernável Governo. Mas como é Natal (“salvação e luz” etc.), decidi contar qual o meu mais fundo e legítimo desejo para a quadra. Este Natal, quem deveria nascer não era o Menino Jesus. Era o Robin dos Bosques. O tal que sacava aos ricos para devolver aos pobres. Era, era.
A global hipocrisia natalícia fere este ano mais fundo. O Estado, longe de colectiva pessoa de bem, usurpa mais e mais, qual Xerife de Nottingham, os campónios e os artesãos que involuntariamente o fundamentam sem ser por metáfora.
O Menino Jesus nunca nos fez mal. É certo. Habituado a burrinhos como nós e a vaquinhas como quem sabemos, Ele próprio é mais um na fila da Cruz e do matadouro. Partilhamos com ele tão-só o calvário, não a esperança.
Logo, quem nos daria e faria jeito era o senhor Robin dos Bosques. E devidamente acompanhado daquele dito Pequeno mas bem matulão João de abençoado cajado nas patas fortes com que zurzisse os malfeitores legalizados que tudo corrompem e aviltam.
Não é que eu espere, como os ingleses pobres da lenda de Robin Hood, o messiânico retorno da Terra Santa de qualquer Ricardo Coração-de-Leão armado em D. Sebastião. Não. Os Ricardos e os Sebastiões da salvação estão mortos, desfizeram-se em cinza e não voltam “nunca/nunca/nunca/mais”.
E a Terra Santa, por artes & manhas da Santa Usura, parece hoje chamar-se FMI. São “três letrinhas apenas” com que igualmente se escreve FIM. É onde estamos: no fim do ano como no fim do futuro.
Entretanto, o burrinho pestaneja as orelhas, a vaquinha tuberculiza, o Robin não renasce vestido de fraque e o Xerife de Nottingham local sente-se uma espécie de santo.

22/12/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 131


131. CEDO NA CARDIGO, CASA-DE-PASTO, COM JORNAL DO DIA

Pombal, sexta-feira, 10 de Dezembro de 2010
Pombal. Manhã cedo. Na casa-de-pasto Cardigo, desfazendo as horas da manhã até que, como tudo na vida, se faça tarde. Correio da Manhã do dia:
1) Januário de Lima Martins, 60 anos, sacristão da Igreja Paroquial de Marinhas, Esposende, morto ao cabo de queda de quinze metros quando limpava o relógio da torre, a neta, Glória Martins, disse que a igreja era a paixão dele;
2) Idoso foi encontrado morto dentro de um contentor, chamou-se em vida José Silva e demorou 73 anos a chegar ao fim, Cova das Faias, arredores de Leiria, sozinho há anos, um cão e alguns gatos era a família dele, prováveis causas naturais na origem do encerramento de actividades de José;
3) Montijo, recluso de 31 anos, dores no peito, morte;
4) capelas assaltadas no concelho de Castelo Branco e ovelhas furtadas em Tinalhas, não muito longe de tais profanações;
5) Apanhados a roubar em Leiria dois estrangeiros (calças de ganga, camisolas), três assaltantes munidos de armas de fogo (supermercados na Malveira da Serra), loja da Repsol na Avenida da Liberdade (Torres Vedras) com proprietário apanhando dois rapazes de 23 e 24 anos, dezoito acidentes por excessos de chuva e/ou velocidade nos acessos à muy antiga e nobre e branca cidade de Lisboa.
Pombal. Manhã já não tão cedo.



17/12/2010

Rosário Breve nº 185 - www.oribatejo.pt

A EDP tem a ver com a minha vida


Não vos vou falar de facturas abusivas, lá porque haja a sigla EDP no título. Não, nada disso. É de uma mulher. Isso sim. Tem a ver com luz.
Ela surgiu na minha vida provinda dessa terra mágica e de dragões que se chama Nenhures. Outro ou outros homens a tinham já preenchido, acabada dela a infância ríspida e rápida. Eu estava ali à esquina, fumava uma cigarrilha roída, esperava nem sei já o quê, nada talvez.
E então fez-se luz: aqueles olhos demorados em sua mesma água colorida, aquele peito sobressaltado pelo alvor do coração e dos mamilos como campos-de-morangos-para-sempre, aqueles trejeitos nervosos oriundos da beleza inconsciente de si mesma.
Ela trazia os dragões a tiracolo. Era sinóptica como uma badana de livro. Trazia a vida agarrada à respiração. Cumprimentou-me por causa dos óculos com que então eu escurecia a cara. Disse-me novidades da Feira de Maio, alertou-me para as próximas apresentações de teatro no âmbito da cultura municipal, deu comigo pão às pombas. Depois, a noite chegou como um acampamento de diamantes. Do que então se passou, deixo recado, que vos não conto, à vossa imaginação.
Os anos passaram como comboios. Vivo ora cada hoje sem ela, encadeado até pela escuridão. Olho de fora as janelas das casas com famílias dentro. Amealho e esmigalho pão, procuro pombas. Versos de outras pessoas também me acontecem, mas menos do que era costume quando a Biblioteca Municipal da minha cidade creditava a recomendação comercial dos adolescentes bibliófilos. Depois deu-se o 25 de Abril, Jesus aparecia de cravo à lapela, Eça de Queiroz sobrepunha Pinheiro Chagas e Bernardo Santareno era vivo e triste no dispensário psicológico de Lisboa.
Isto pode ser contado de outra maneira, eu sei, mas há tempos em que se me não faz luz para mim, não sei por onde ela anda, facturas é que não deixam de me aparecer, à maneira de dragões de Nenhures.

15/12/2010

Ideário de Coimbra - 133 - fragmento 1

133. A VIDA E A MORTE E A VIDA

Coimbra, terça-feira, 14 de Dezembro de 2010-12-15

A vida e a morte são parecidas: pois não passam ambas de nada?
Vem comigo uma destas noites por ruas de Coimbra.
Observa os sonhos, as árvores.
Dá de lado com a cabeça.
Faz-te pássaro na tua economia pessoal.
Tu, anda de lado.
Se a serra sonhada te atacar pela noitinha, tu sê a pessoa que de lado é frente e fronte.
A pequenita miséria do lixo pelo chão, os silvestres amores que não tocam já a seiva do coração.
E quando cresces contra o mundo, sabes, os hipermercados e as merdas, uma laranjeira confirma-te.
Aí tens teu Pai, teus filhos, tuas bugigangas de nada, tal que, e de modo que, a vida e a morte e a vida.


12/12/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 130

130. ALGUM AS LINHAS ’INDA

Coimbra, quinta-feira, 9 de Dezembro de 2010

Sou aquele gajo acolá e por ali, o do casaco preto comprido. É pelo entardenoitecer. Regressa do centro de formação, caminha pela álea alcatroada. Atravessa pela passadeira, segue pela margem esquerda. Assiste, já perto do centro comercial, à fauna estética das mulheres. Que bonitos animais – redescobre ele. Uma árvore (de que desconhece o nome) de folhas vermelhas: um incêndio vegetal de grande lentidão. O vento demanda corredores, relança e dança as cabeleiras humanas. O casaco preto acolhe-se à galeria, a cabeça em cima engendra a música que pode entre a solidão comercial dos lojistas sem fregueses. Atendada a noite, solta-se o vento. É forte, zune nos cabos altos. Uiva à lua dele. E ele pede a um livro que o ajude a não pensar. E ele entende que são linhas: diz: as ruas, as pessoas, as árvores tocando o céu: e que o céu é não haver linhas.

09/12/2010

Rosário Breve nº 184 - www.oribatejo.pt


Foto Relvas


Permiti-me vós que vos diga algo, esta semana, de um livro cuja leitura guardarei e cujas lustrais páginas hei-de revisitar com agradecida recorrência. Foi-me oferecido no decurso de uma das infelizmente fugazes correrias que de vez em quando atiro às lezírias ribatejanas.
Trata-se de Fotobiografia José Relvas 1858-1929. É do investigador e historiógrafo José Raimundo Noras e foi publicado em 2009 pela editora Imagens & Letras sob a batuta de Fernando Alberto Mendes. Atenção: falo-vos de memória. Não tenho, de propósito, o livro à mão. É como se estivéssemos abrigados da chuva no interior aquecido de um café a falar de livros e coisas quase inúteis afins.
Esta Fotobiografia é profusamente ilustrada. Mostra o Homem maiúsculo que José Mascarenhas Relvas foi. Não apenas o perfil barbudo que às nove da manhã de 5 de Outubro de 1910 proclamou, da varanda da CM de Lisboa, a República. Bem mais do que isso, revela-nos a estesia pragmática de um cultor das artes refinado e moroso, ilumina-nos a por assim dizer eólica estatura moral de um homem público que nunca se alapou ao calhau do Poder, aclara-nos a fineza invencível do coleccionador de artes (é ir a Alpiarça e demorar as vistas na Casa dos Patudos), pranteia-nos a tragédia da morte dos três filhos (nenhum dos quais sobreviveu aos pais). E muito mais. (Nota breve: a edição padece apenas de algumas exasperantes gralhas, as quais não logram, porém, macular a magnificência do trabalho.)
José Raimundo Noras sabe escrever. É de estilo enxuto, lavado, claro e conciso. Sabe do que fala e fala do que sabe. Aturada parcimónia reveste tudo quanto costura o texto: a incisão da legendagem, o entrecho cronológico, a tessitura epocal – e, à fímbria do pergaminho historiográfico, uma espécie de brilhozinho nos olhos ante a superna exemplaridade de um homem profundamente português.
A Golegã e Alpiarça gozam de especiais motivos de orgulho: José Relvas pertenceu-lhes de corpo, coração e alma. Também a nós pertence o dever da visita e o prazer da revisita a uma figura a todos os peitos exemplar.
E eu, que nunca fui vendilhão, não sofro pejo de vos recomendar o livro à guisa de prenda de Natal a mais excelente.



07/12/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 123 - um trecho mais de 22 de Novembro de 2010


Na Loja Pérola aqui do Atrium, compro uma cenoura, um par de cebolas, uma garrafa de tinto barato. Derivo pelas galerias breves entre senhoras caladas que, como eu, projectam últimas-ceias no estertor da jornada. E hoje até trabalhei – mas não tanto assim que assim fatigado se me distenda o corpo afinal não semicentenário ainda. Cansa-me a tosse, assoar-me também me cansa. No televisor, um palhaço gordo e sem graça farfalha gargalhadas de banha (felizmente inaudíveis, que a bênção do Atrium é não dar à corda do som dos receptores suspensos do tecto). Na cozinha do Quarto-Casa, repetirei os gestos de factor de caldos vegetais. E serei um homem.

06/12/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 128 – Coimbra, segunda-feira, 6 de Dezembro de 2010

© Walker Evans – Roadside Stand near Birmingham, Alabama (1936)



128. EM VINDO SEGURANÇA


Há por aqui sossego, ainda é o que vale. O tempo que hoje fez (e se desfez) nada teve a ver com o de ontem. O de ontem foi tormentoso, até trovoada meteu ao barulho entre muito vento e muita chuva. Mas hoje não é ontem e não há-de ser amanhã, embora tudo me pareça idêntico, por causa talvez do sossego. Estou aqui parado (menos a mão direita). Também as pessoas passam paradamente. Isto não é Norwich nem Bruges. É outra mesma coisa, por assim dizer. Não posso (poder, posso, mas não devo) ir já para a cama. Tenho de cansar a vista e esvaziar a cabeça primeiro, operações que levam o tempo que o tempo mesmo demora a levar-se, não o tempo como o de ontem mas o tempo-tempo, o tempo do vazio que tudo preenche. Aponto a cara ao papel-cenário, avizinho os adereços desta parte do mundo, deixo-me estar enquanto o guarda (agora diz-se “segurança”) me não enxota daqui para a rua. É até agradável, quando as moedas dão para um café. De resto, espera-se vez pelo jornal, há sempre velhotes que demoram no pasquim os olhos aguados, mas mais meia hora menos meia o jornal fica disponível, também nem cinco minutos o demoro eu, valha a verdade (que, aliás, ele nem sempre traz). O nosso tempo é o do esvaziamento, valores, ideias, honras, projectos, tudo enfim parece marcar passo à beira das furnas, não sei bem o que seja isto, marcar-passo-à-beira-das-furnas, mas assim surgiu e assim vai. O valor moral ausente, ainda o sossego é o que vale. Lá fora, sem pressa nem parança, os fumadores pinguinam ao frio vai-vem-trás-frente o tempo de chegar à fímbria do filtro. Cá dentro, senhoras chaleiram e biscoitam conversações de celofane, lá está, não sei bem o que seja tal, chaleirar-e-biscoitar-conversações-de-celofane, mas assim vai por assim ter surgido. Isto não é a Libéria nem a Finlândia, mas isto e isto mesmo. Posso sempre escolher uma dormência visora, como se estivesse na cama – e então deixar aqui o corpo e dar alas a alamedas chilreadas a frechas de sol suspensoras de pólen, perto a respiração de um rio ou de uma lagoa verde, as árvores sem cartazes pregados, as bermas sem ossos de animais, um quase frio nas badanas sem sinopse do nariz. Casais oxidados como trincos de arrecadação de museu, ei-los em suspensão de cristal pela galeria, parecem gostar das lojas mas nunca entram, gostam mas não gastam. Isto não é Birmingham nem Ottawa, Baltimore ou Macau, é o que tem sido enquanto puder ser e para, senão de, alguma coisa valer.

*


Tenho a ambição de esgotar a memória a ponto de só poder lembrar-me do futuro. Acho que isso se tenta escrevendo, mas como o envelhecimento consiste tanto na capacidade de não sofrer nem surpresas nem de certezas, não sei – o que me não surpreende, é claro.





05/12/2010

Dia 7 do 12 do vinte-dez na Biblioteca Escolar da Carapinheira



CORES DE PALETA NO MENINO





Devo começar esta história – e começo – por vos dizer que, com franqueza, o Natal das lojas não me interessa muito. Talvez porque eu não seja dono de nenhuma loja. Ou talvez porque eu não seja dono do Natal. Não sei. Só sei que o Natal já não é, para mim, o que era antigamente. E o que era para mim antigamente o Natal? Eu conto.
Antigamente, o Natal vinha muito de véspera. Era como os gaiteiros. As crianças até sentiam comichões na cara por causa da expectativa da Árvore, dos presentes, dos cheiros doces que nasciam na cozinha maternal e tomavam toda a casa, todas as casas, toda a rua e a aldeia toda. Ora, foi numa dessas aldeias que se passou a história que hoje trago comigo (hoje e há muitos, muitos anos) para vos contar.

A tal aldeia tinha por nome Paleta.
As pessoas de Paleta eram idênticas a todas as outras pessoas que há, que houve e que há-de haver no e pelo Mundo.
Umas eram muito caladas, outras algazarravam-se muito, outras eram assim-assim.
Umas tinham roupas tão boas, que parecia ser domingo todos os dias para elas. Outras andavam vestidas de uma pobreza decente. Outras, ainda, não ligavam nenhuma ao que traziam trajado.
Umas tinham cão, outras tinham vacas, outras tinham papagaio. (Havia até um homem que vivia sozinho e que, por ter andado nas guerras de África, tinha um macaco, só que o macaco ao cabo de uns anos morreu e vai daí o homem solitário, para não ficar mesmo só, mandou empalhar o símio, que se chamava Tobias e gostava mais de pêssegos do que é normal.)
Umas tinham bicicleta, duas tinham motorizada, as outras andavam a pé.
E a vida também parecia andar a pé, em Paleta. Eram outros tempos, não havia pressa de morrer. Mas uma coisa era diferente, em relação ao resto do mundo todo, em Paleta.
Em Paleta, toda a gente ligava muito ao respeito pelo vizinho. (Sim, mas isso também noutros sítios acontece, não só em Paleta.)
Em Paleta, toda a gente ajudava toda a gente quando a Necessidade ou a Desgraça atacavam. (Sim, mas tal também, embora menos, em outras paragens sucede, não só em Paleta.)
Em Paleta, nas noitinhas diáfanas de Verão, os diamantes das estrelas choviam esmigalhadamente sobre os campos de cultivo. (Sim, mas é possível que outros cantos do Mundo tenham ainda também acesso ao céu, não sei se seria só em Paleta.)
Que era então diferente em Paleta? Que sinal era então tão diferente em Paleta que nenhum outro ponto do mapa repetisse?
Eram as cores dos olhos das pessoas.

As cores dos olhos das pessoas? Então as cores dos olhos das pessoas não são, verde aqui, castanho acolá, preto além, azul aquém – semelhantes por todo quanto é Mundo? Deixai-me explicar, que comecei mal.
Diferente, em Paleta, não era propriamente a cor dos olhos das pessoas.
Era a cor dos olhares.
Assim é que está bem.
As pessoas de Paleta tinham olhos de todas as mesmas cores que os olhos das outras pessoas todas de todo o Mundo e que as outras pessoas todas de todo o Mundo usam a norte do rosto. A diferença era a cor com que cada pessoa de Paleta olhava. E eu sei que, agora e a partir daqui, vou ter de vos e me explicar muito mais refinadamente o que quer isto dizer de em nenhuma outra parte do Mundo acontecer o que acontecia em Paleta – e que era cada pessoa, fosse qual fosse a cor natural dos seus olhos físicos, olhar os outros e a si mesma com uma cor que era só dela porque com ela tinha nascido, com ela morreria e por ela ia vivendo cada noite e cada dia. Claro que tenho provas do que digo, claro (e não escuro…) que sim.

O ti’ João da Fernanda, por exemplo.
Era homem de sete décadas de ferro. Perpétuo cigarrito de barbas-de-milho ao canto da boca. Pele de pergaminho que mirra. Samarra sempre vestida, mordesse o frio como inchasse o estio. Por ter andado mais de metade da vida descalço, era de pés mais cardados do que as botas que só teve quando já a velhice que subira aos ombros e descera aos joelhos. Tinha mais filhos do que ovelhas. Era de olhos esmeraldinos como incrustações de musgo fresco, mas, por ter ficado viúvo da senhora Fernanda, única mulher que ele poderia ter querido, tido e vivido, o ti’ João olhava os outros e a si mesmo com um olhar cor-de-cinza-nácar-de-concha-no-bico-do-corvo. Juro que sim: o olhar do ti’ João vinha de ser esmeralda para ser corvo.

Clarisse, de sete anos, era outra coisa, outros olhos, outra cor-de-olhar. Clarisse gostava de ir à escola, achava graça ao parentesco difícil das letras com os algarismos, das estrelas de cartolina tão bonitas e sérias nas vidraças das janelas, do perfume a madeira das carteiras tão diferente do olor frio dos bancos da capela, do calor da lenha de oliveira na salamandra da senhora Professora, do mapa-múndi todo contente de países e continentes na parede. Era uma menina de pèzitos mais leves do que as mesmas sandálias que os fitavam. Tinha mãos pequeninas e preciosas como harpas de açúcar. E tratava das galinhas sonhando-se, agora ela, Professora de meninas estouvadas. Mas o olhar de Clarisse, nascendo embora do vulgar castanho de três quartas partes dos olhos do resto do Mundo, não era nada avelã. Nada. Era cor-de-margem-de-água-violeta-dando-suave-ao-entardenoitecer. Era, era. E quem passasse por Paleta, como eu em sonhos muito passei e passo ainda, não haveria de achar meio de me contradizer. Clarisse olhava os outros e a si mesma assim: margem-de-água-violeta-dando-suave-ao-entardenoitecermente. E era feliz, Clarisse, que é um estado de alma que já não se usa muito.

Ah, mas eu sei, eu sei! Que tem isto tudo a ver com o Natal!? Já lá vamos, deixai-me só enumerar ainda, mais brevemente embora, alguns olhares-cores de Paleta. O Natal virá no fim da história, como aliás vem também no fim do ano.

Mais cores-olhares de Paleta:

a ti’ Natércia, mãe do Rui que foi para polícia em Lisboa, olhava, por causa de não sei quê, cor-de-sombra-furtiva-no-muro-do-cemitério-lobisomem;
o Man’el da Taberna aplicava a todos e a tudo um olhar cor-de-eu-é-que-sei;
a Etelvina Solteirona só não foi para freira por olhar cor-de-homens-que-é-feito-deles-?;
o Rufinozito do senhor Major, porque tinha tostões para gastar em bolos sempre que queria, era de olhar cor-de-cabrito-aos-pinotes-nos-móveis-da-avó;
já a Eurídice do Zé Ulisses era utente de um olhar cor-de-jóia-de-imitação-sobre-veludo-de-chita;
e o senhor padre Ismael, cuja fadiga asmática tornava rancoroso e opresso e opressor, olhava, apesar de tudo, nas horas boas, cor-de-Cristo-dormindo-ouros-de-palmeira-em-areia.

Agora, agora que preciso de terminar este conto, vou dizer que tem o Natal usa ver com tudo isto e com esta Paleta toda. Não tem a ver com o tal Natal das lojas. Tem a ver com isto, quereis saber?

Na capela de Paleta, o Presépio mora todo o ano. Não é que seja Natal todos os dias. No resto do Mundo, às vezes nem no Natal é Natal – e Paleta, por ser de gente humana como humana, para o bem e para o mal, é a gente de toda a parte e toda a arte, não é nisso diferente. Mas é diferente naquilo que vos contei dos olhares-cores.

Bem, na capela de Paleta o Presépio atravessa sem ser desmontado os dias, os anos, as décadas e o que veio, vem e há-de vir. Tem os Reis Magos, os Anjos, os ternos animais maternais e vigilantes, o S. José e a Virgem Senhora Mãe. Claro que tem. É um presépio como os outros. Só o Menino é diferente. Só podia ser. O Menino Jesus de Paleta é diferente porque acorda pintado de cores como nenhumas outras existem nem no orbe terrestre nem na armilar esfera celeste.

O Menino Jesus de Paleta, quando o sacristão Jeremias (olhar cor-de-aceite-surripiado-em-hora-fria-e-escura-de-Fevereiro) encerra o portal da capela, é incolor. Parece feito de terracota de água, por assim dizer. Mas é então que se dá a branda maravilha.

Adormecendo, o Menino sonha. E sonhando, olha-se a Si mesmo pulsando medusas-íris, revérberos, coruscantes emanações, tonalidades de meio mar, inclinações de pinheiro ao vento, cabeleiras de trigo melhoradas pelo Sol e chapas de prata reveladas pela Lua fotógrafa. E o Menino pergunta-se, no sonho que será tão mais divino de quão mor humanidade proceder, que suave fascínio é aquele que o toma, leva e enleva. Abrindo os olhos bons sem de todo despertar, compreende então que está a ser olhado pelo ti’ João, pela Clarisse, pelas ovelhas mansas, pelas estouvadas galinhas, pelos cães que a vida vivem como nós, por Eurídice, pela senhora Fernanda (olhar cor-de-ter-sido-mas-ido), pelo senhor Major até.

E então Ele compreende que tintas são as da fundamental nudez de nascer todos os dias. E que o Mundo, como o Natal, é só da cor com que cada um olha os outros e a si mesmo.



Daniel Abrunheiro

Coimbra, 22 de Novembro de 2010

03/12/2010

Ideário de Coimbra - 112 (conclusão)

Certa, certíssima, é a curtição do couro dos dias. Os seres que emanam a si mesmos. Os cordões de sebes aparados por alcoólicos mansos. A trepidação dos motores imitando corações hidráulicos. As begónias, os ditirambos, as saudades-à-prima, os ecocontentores, os contentes e os nem-por-isso, a genitália brasilóide e o luso pato-bravismo, Coimbra-sexta-feira-5-de-Novembro-de-2010-11h01m (faz hoje trinta e três anos que vi publicado em folha de jornal – o diário – o meu primeiro texto (As Quatro Estações, edição de Mário Castrim (Oriam, com ilustração de Catarina Rebello), certas penedias nasais descendo a expressão a caminho da boca, gente fiel ao seu café-com-leite, à sua meia-torrada-com-pouca-manteiga, o tifo da rotina, uma ânsia de barcarolas serenatadas ao luar, homens-sexuais procurando em cus a epígrafe de seus espúrios matrimónios, pés acetinados de sabão baseando celibatários no chuveiro, Café Abadia, Combatentes, Botânico, Celas. Chelas. Xabregas. Pontinha. Campolide. Campo de Ourique. Luís Bívar. Monsanto. Arrábida. S. Bernardino. Baleal. Caldas da rainha. Aljezur. Bragança. Duques de Bragança. Tuy. Vigo. Madrid. Etc.

Ideário de Coimbra - 112 - Coimbra, sexta-feira, 5 de Novembro de 2010 - fragmento 6




Ali, a banca de fruta expondo jóias sumas. Ali, o mostrador com fritos e conservas e ranços e queijos. Mais acolá, a neurastenia (pedras no bolso) de Virginia Woolf, aquela descrição da radiografia nA Montanha Mágica do senhor Thomas Mann, a insuperável feminilidade de Mercè Rodoreda, a declinação cromátic’aromática, insuperável ela também, dos Japoneses quase todos, as dívidas de Manoel Maria Barbosa du Bocage, as canções dos marinheiros gregos entre as Ilhas que fazem da solidão uma acalmia olímpica. Mais cá, as manchetes dA Bola e do Record, o carácter-alcateia dos gestores das empresas públicas-ovelhas, bolos & bolinhos & bolinhós, assombrações bosquímanes de agência-de-viagens, cruzeiros ao Sul a bordo de uma casca-de-noz chamada Recordação da Virgem de Guadalupe, mais o Diário de Coimbra maila invejável irrelevância da Universidade também de Coimbra.

Ideário de Coimbra - 112 - Coimbra, sexta-feira, 5 de Novembro de 2010 - fragmento 5



Ou então o FMI, essa surda avantesma que mereceu a José Mário Branco a alucinante noite de há tantos anos na Voz do Operário. Ou então o senhor Ramos, rapaz de seus sessenta e picos anos, agasalhado de bombazina e tomador de ginjinhas introspectivas na demão das manhãs faça-chuva-faça-sol. Também gosto dele, até porque o imagino e ele é outros nomes, outras concretas realizações que não preciso de ver-ou-haver-para-ter. O senhor Ramos, coitado, morreu-lhe um filho na tropa, não sei se na Escola Prática de Infantaria (Mafra), se nalguma das desoladas paradas de Santa Margarida. Duas décadas, a passar, passaram já do funesto acontecimento, mas a senhora Ramos continua fechada em casa, entre círios e pagelas, sofrendo a memória e a impotência ante os estranhos desígnios de Deus. De modo que o senhor Ramos & os copinhos de ginjinha, que o que é doce nunca amargou. Cresço, peitoral e fátuo, para as onze da manhã (10h36m) e não tenho medo de quase nada nem de quase ninguém. A vida é bela sozinha, não precisa de mim para nada.

02/12/2010

Rosário Breve nº 183 - www.oribatejo.pt - 3 de Dezembro de 2010



Dois mil anos mais dois

Embora a datação seja ainda algo controversa, deve ter sido há coisa de vinte séculos que certa obra-prima da literatura latina (logo, universal) viu a luz do dia. Falo-vos de Satyricon, hilariante (mas seriíssima, também) narrativa de um tal Petrónio. Há mais do que uma versão portuguesa da obra, mas a que vos recomendo é a que Delfim F. Leão preparou em 2005 para a editorial lisbonense Livros Cotovia.
Lendo-a, tropecei em mil e uma virtudes diegéticas, estilísticas, estruturais, o diabo a quatro. Petrónio é grande escritor, Satyricon é deveras livro de primeira-água. Trago-vos (re)citações de alguns trechos. Ei-las:
- “Panela onde muita gente mexe, ferve mal.”;
- “Mas agora o povinho em casa é um leão, enquanto fora é uma raposa.”;
- “Mas quem não pode malhar no burro, malha na albarda.”:
- Uma cobra não vai parir uma corda!”;
- “Se não houvesse mulheres, teríamos de tudo aos pontapés; mas assim é mijar quente e beber frio!”;
- “Não sei por que razão é a pobreza irmã da sabedoria.”;
- “Quanto mais não vale polir o sexo que o siso!”;
- “Anda à procura de si a natureza e não se encontra.”;
- “O povo está à venda, a cúria do senado à venda está: o favor reside apenas no preço.”
Permite-me agora, meu querido irmão-leitor, que a estas pérolas com dois milheiros de anos junte duas outras. São de factura portuguesa. Uma é de 1980. Foi escrita a 13 de Janeiro desse ano pelo Professor António José Saraiva no Prólogo do seu, dele, livro Filhos de Saturno – Escritos sobre o Tempo que Passa (Bertrand, 1980):
- “Se o mercado mundial é um dos processos característicos da nossa civilização, é evidente que a mundialidade do mercado é um dos problemas que contam na conjuntura nacional.”
Avisadas e sábias palavras a que uno estoutras de Manuel Laranjeira (não sei de que obra, lamento). A data é fácil. Troquem de lugar o 8 e o zero da citação anterior. Dá 1908. Foi quando o poeta disse:
- “Mas não nos iludamos: ou nos salvamos nós ou ninguém nos salva.”
Fico por aqui, amigo. Faz favor de reflectir (no duplo sentido de reflexo e reflexão) Petrónio, Saraiva e Laranjeira.

Canzoada Assaltante