29/10/2010

Rosário Breve nº 178 - 29 de Outubro de 2010 - www.oribatejo.pt



OE ou não é, chiça

Enquanto lá fora, pela (des)Europa, o anel de ferro franco-alemão, em nome da “estabilidade da Zona Euro”, se faz arganel nas ventas dos pequenitos pseudo-27, por cá, a nunca por de mais hedionda parelha Zé Sótretas/Troca-os-Passos entende-se bem, fingindo sempre que se desentende, a propósito de tostões que (nos) custam milhões. Haja alguém que, de vez, diga que isto OE ou não é. E chiça.
Entrementes, a (dona) B(r)anca engorda como uma porca que vai à manicure no intervalo de roubar. O BCP Millenium, sozinho, cevou coisa de 200 e muitos milhões de euros de lucro. Parece coisa de ténia, isto de 22 por cento mais de farelo intestinal. Este nunca-fartar-vilanagem tem matriz directa na selvajaria do neoliberalismo sem freio. Digo-o eu, que apanho beatas do chão e aproveito os restos de bica em chávenas alheias, esquecidas e arrefecidas. Os colarinhos-brancos e os botões-de-punho mamam avidamente, e sem engulhos de laringe, as taxas de juro equivalentes ao arfar das más cópulas, os onzeneiros interesses, as ganâncias judias, as imoralidades do zamericanos, o nanismo social do Sarkozy e a teutónica frigidez contabilística da Merkel.
Por cá, as autarquias deste quase-País tão lento quão flatulento, ao cabo de anos e anos soltas como bezerras sem ortografia pelas lezírias do endividamento irresponsável e do enamoramento de café de província para com sucateiros meio Ford-Transit meio BMW com matrícula K de importação alemã, urram e ganem à maneira do pato-bravo mal-casado ao descobrir que, afinal, a brasileira do Messenger tinha três filhos crescidos e os ligamentos suspensores das mamas mais descaídos do que o desafluxo de sangue aos tecidos erécteis.
Parecer-vos-ei, talvez, abespinhado como um ouriço na antemão da travessia de um terminal TIR. Mas não estou, juro que não. É que hoje, sexta, 29, vou com o meu dilecto e predilecto amigo J’aquim à festa gastronómica de Santarém. E quando assim é, está tudo bem.
Comamos-lhe, bebamos-lhe e convivamos-lhe, enfim, que a vida são dois dias e a nossa época é uma noite sem manhã à vista.



25/10/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 99 (fragmento)

© Tó Vieira – Barragem do Alqueva - 2010



É a jusante que te rio.
Cristais coruscam peixes falados.
Mansidão das coisas; em pátios, pessegueiros.
Mães urdindo a economodomesticidade.


Aquela senhora ali de preto.
O vão da janela crucifixada.
O comboio ganindo no Loreto.
A casa do Gil, perdida, queimada.


Recorda sem pressa o que vai seguir-se.
Lenta parcimónia ajuda a caligrafia.
Na Turquia, o minarete preside
sem pressa ao crepúsculo, ao milénio.


Reviverei quanto puder (n)o futuro.
Dos meus irmãos a minha Mãe julga-se 55
anuária. Telefonaram-me há pouco, por isso
sei. Uns quantos versos me reviverão


e resgatar hão-de.


*


Em casas de gente, ele há louças
louçãs e rebrilhantes, belas.
Retratos as escoltam, amarelas
caras fustigadas, essas


que ficam galeriando as casas
da gente que desabita quanto pode
os terrores do Fado, do Hospital,
do Demónio e da Pobreza.


Sobre o linho que cobre a mesa,
fruta arde aromas amarelos.
Encarnada mão os rearranja.
Chopin percute cordas na sala.


Obras Completas de Júlio Diniz.
Idem aspas aspas de Eça de Queiroz.
Viver é fácil, basta ser feliz.
Não é tão difícil, basta não ser nós.

22/10/2010

Rosário Breve nº 177 - www.oribatejo.pt + Corvos e Pombas nº 1 - www.regiaodeleiria.pt



Cine Porno e outras desonras afins

Partilho com as louras falsas a secreta esperança de, no epílogo dos filmes porno, ele se casar com ela, já que tão publicamente a desonrou.
Com isto não pretendo dizer, porém, que outra esperança também secreta me anime: falo de esperar que, mais tarde ou mais cedo, este Governo se case connosco, apesar da iniludível e indesmentível pornochanchada em que ele consiste.
Eu não peço que no Cartaxo até com uvas se produza vinho, assim como nunca reclamo quando o melão de Almeirim me parece um bocado espanhol. Se, por absurdo, viesse a participar numa meia-maratona mas obrigado a partir da última fila do pelotão, vivamente vos garanto que me resultaria muito mais fácil apanhar Sócrates do que um coxo.
É por aqui e por aí voz corrente que o Pão, ao contrário do Governo, tem miolo. Tê-lo-á, mas é cada vez mais côdea. Não me recordo de crise tão crítica como aquela com que estes espúrios cavalheiros nos inseminaram. Crise financeira, mas não apenas. Crise moral, crise mental, crise física & metafísica & patafísica & tísica. Tenho a caixa de correio electrónico diariamente atulhada de indesmentíveis (e nunca desmentidas) denúncias fundamentadas de clientelismos, compadrios, vigarices, ciganices não propriamente étnicas, tachismos e assessorismos. Roubalheiras e ratarias, enfim.
O dito pelo não-dito é dito & feito. A promessa de ontem é garantia hoje de que amanhã antes pelo contrário. Estes sevandijas energumenóides desceram a arte da mentira aos ofícios da meia-verdade, sendo esta de bem mais soez sordidez do que aquela. Uma sarjeta não pode nunca ser pista de patinagem, assim como a Vodafone não é a cópula da Ivone, enfim.
A moléstia alastra (e, por desgraça, grassa) por tudo quanto é cão e rincão. A margarina do trabalhador é que sustenta o caviar dos chupistas.
A moralidade é estarmos desquitados de nós mesmos. É. Mas seria tão bonito que no fim do filme ele casasse com ela. Ou então com ele: e não estou a falar do coxo.


******

O Enigma de Marrazes



Os mistérios da vida são universais e começam pela mesma Vida – ela própria e em caixa alta. O par enigmático dela, da Vida, é a Morte. Outros casais misteriosos: o Tempo & o Espaço, o Céu & a Terra, o Ar & o Mar, o Homem & a Mulher (especial destaque para esta última), o Cão & o Gato, o Gato & o Rato, a Brevidade & a Eternidade. E Deus & o Diabo, tão naturalmente quão também.
Mas Leiria tem outro. Ah pois é. Leiria tem um enigma que é só de Leiria. Só, só. Muito só. Muito só de cá e muito só daqui. Qual é ele? É o enigma de Marrazes.
Os meus leitores, sei-o eu bem e à saciedade, já sabiam que sim – mas esqueceram-se de verbalizá-lo. Como sou pago para me lembrar de coisas que nem ao (tal) Diabo, a coisa aqui vai de seguida: em que consiste esse toponímico-gentílico mistério/enigma/charada/problema/quebra-tolas? Consiste nisto: como é que, cada vez que o glorioso onze futeboleiro de Marrazes joga no tomástaveirado Magalhães Pessoa, a assistência traseiro-sentada na bancada é, no mínimo e pelo menos, quadruplamente superior à da infra-média que se dá ao luxo triste de ir ver a União de Leiria?
Como é? Porquê? O que é de facto a Morte? E o Tempo? E o Cosmos? E Homero existiu mesmo ou foi uma data de gajos tipo Fernando Pessoa? E a formação neural da Consciência? E o ad aeternum brevis semper? E o Marrazes?
Não sei. Acontece que não posso ir demandar este esclarecimento existencial a Leonel Pontes, de quem aliás sou amigo por descuidado favor dele. Nem a João Bartolomeu, com quem ainda me não amiguei e cuja voz, apesar de fininha, ainda era capaz me parecer grossa. De modo que, para já, ficamos assim: entre Deus & o Diabo & o Cão & o Gato. Ou entre o Sport Clube Leiria e Marrazes & a União Desportiva de Leiria. Ou entre o aparentemente vitalício (ou ad aeternum…) João Bartolomeu & o monte-redondense Leonel Pontes da Leirisport. Ou seja: sem explicação alguma e com mistério para sempre.
Para sempre – ou até daqui a quinze dias.

21/10/2010

Três Sonetos da entrada 92 do Ideário de Coimbra (quinta-feira, 14 de Outubro de 2010)

(soneto-maria)


O rosto dela é matizado de azulejo.
Finíssimo cabedal de carmim lhe enroupa
a mesma boca que, atirando um beijo,
a volvê-lo se nega, por pirraça e desejo,
ensejo a que ela nunca se poupa.


Tem algo de barco andarilho.
É certo: foi já casada e tem um filho,
mas ninguém o diria. Maria (assim se chama)
oblíqua na rua, direita na cama,
tem algo de barco e espuma no trilho.


Gosta de espargos, gosta de morangos.
Aos sábados sai, vem o pai do filho.
E saem os dois e dançam uns tangos –
valsas é que não, pode dar sarilho.


*


(soneto-cão)


Vi o homem com boca de cão triste.
Vi a dama habitada pela cegonha.
Da Terra me tire e no Inferno me ponha
quem jure que eu sou alguém que desiste.


Vi já silhuetas só sombras de nadas.
Vi tantas marés, bem menos vi praias.
À espera que entres e nunca mais saias,
eu vi silhuetas de mar assombradas.


Aqui entre nós, penso ter já visto
más coisas, más almas, a que só resisto
por puro obstinado feitio nascido.
Antes isso! Que, se não desisto,
é por teimosia. Já agora, insisto
em ser o tal homem, cão entristecido.


*


(soneto-vivido)


Ela desesparadrapa sedas inconsúteis, falando.
Murmura mais do que fala, marulha.
É de tenra e terna suavidade, a locutora.
Aprecio-lhe o vocalismo brando, sonhando eu.


Pergunto sem outra voz que esta, a de dentro,
que será feito delas, digo, ela e dela a voz.
O tempo é dado a assoreamentos levadores
do que água em pessoa (me) foi, digo,


tenho perdido alguéns – e ninguém, por isso,
tenho eu mais que outros sido e/ou vivido.
Agora, o veludo usa postes para ser noite.
Fora, tudo recusa que gostes. Foi-te
precioso ter esquecido, mas eu tenho perdido
o que, vivido, nem por isso mais sido.

20/10/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 96

96. RUA SEM NOME

Coimbra, segunda-feira, 18 de Outubro de 2010

Esta madrugada, sonhei (ou desejei, não sei distinguir) que seguia, a pé como sempre, ao longo de uma rua de que não pude apurar o nome. Não estou certo, sequer, de que fosse em Coimbra. Sei que, atingida a esquina final da artéria e dobrada a mesma, era a mesma rua que se me reiniciava pela frente. E ao cabo dessa repetição, para meu vago horror, a rua repetia-se, a mesma sempre e sempre sem nome. Então, ou acordei ou deixei de desejar. Pergunto-me se aquilo era a morte (como a que o patriarca Buendía de Cem Anos de Solidão recebeu), se aquilo era uma outra dimensão da minha vida podógrafa. Agora, desperto, retomo as circunvoluções cerebrais das ruas, estas sim com nomes cardiais, reconhecíveis e reconhecidas. É a Manhã – que, ontem, era Amanhã.

14/10/2010

Rosário Breve nº 176 - www.oribatejo.pt


Semelhança do buraco



Os mineiros do Chile foram resgatados. Excelente notícia. O desejo (que todos tínhamos) de que assim acontecesse, foi felizmente satisfeito. O airoso desenlace ficou a dever-se ao heroísmo lúcido dos homens soterrados e à dedicação incansável dos técnicos, que nunca souberam, estes, desistir à superfície, e aqueles idem lá nas profundas. O ocaso deste caso deixa-me, em lugar do desejo único de ver os mineiros cá em cima com as respectivas famílias, dois outros desideratos. Estes aqui:
1) Que a equipa internacional de técnicos salvadores venha para Portugal formar Governo. Só gente assim, abnegada e competente e capaz e dedicada e desinteressada nos pode tirar de um buraco como aquele em que nos metemos a partir de 1976, ano a partir do qual o PS e o PSD, alternadamente, nos meteram no fundo.
2) Que os 33 mineiros sejam secretários de Estado desses (verdadeiros) engenheiros.
Em lugar de, por mero exemplo, um qualquer José Junqueiro, seria ou não seria excelente termos na Secretaria de Estado da Administração Local um Florencio Ávalos, ou um Victor Zamora, ou um Carlos Barrios, ou um Edison Pena, ou um Jorge Galleguillos, ou um Alex Veja, ou um Mario Gomez, ou um Claudio Yáñez Lagos, ou um José Ojeda, ou um Carlos Mamani, ou um Jimmy Sánchez, hum? Seria pois.
Ou então a presidentes de Câmara, estes e os outros. Haveria de dar para todos. E todos eles nos prestariam um serviço a que não estamos habituados – e com abnegação, coragem, solidariedade, entreajuda, disciplina, contacto, comunicação, comunhão de objectivos, igualdade de ponto de partida, essas coisas que perdemos desde 1976.
Julgo que estes meus desejos, ao contrário do outro que queria ver os 33 trabalhadores sãos e a salvo, não serão resgatados de sua mesma utopia. É pena. Porque no Chile só os 33 bravos é que estavam no buraco. Aqui somos dez milhões. E os nossos “engenheiros” são do calibre que são.
Só o buraco é semelhante.

13/10/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 37



37. A VIDA JÁ NÃO É CEDO

Coimbra, sábado, 10 de Julho de 2010


Por mais que todos os dias, anos a fio, acordes e te levantes às seis da manhã, a altura chega em que, no chuveiro, te apercebes de que a vida já não é cedo.
Anos a fio – no fio da navalha.
Esta atenção sideral e siderada – ela exerce-te. E a solidão é a via crucial – aceita-a. E azeita-a.
Sabes que é impossível desamar o mar. Ante ele, és atlântico finalmente, como inicialmente amniótico. Isto significa isto – clarificação. Clarifica-te. Ama-te um nadinha mais. Quando, por exemplo, falas de mulheres, não é de mulheres que falas mas de geometria. Sabes muito bem isso. Geometria e paleta de cores. Paleta de cores e reentrância. É reentrar na Mãe, como sabes, agora que te a vida já não é cedo. E um ombro é uma alegria. E a tristeza bebedora dos sábados à noite desde manhã? Tu agora tens a palavra, tu agora é-la toda, ela toda, todo palavras és. No chuveiro, lavando o corpo que tens de ser, sabendo que não é cedo já. Honra. Amizade e honra. Seriedade. Infância & pessegueiro. Cães familiares, de olhos limpos como linhos de altar. Rosas profusas. Infusos lábios. Isenção? De nada serás isento. As tuas glândulas trabalham já a avaria terminal. Uma noite no campo: a laranjeira que, ante a casita, aumenta o clarão da cal. Tanta beleza. Olha, faz parte dela. Sê da beleza. Sê tanto.

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 89

89. FLORES E OSSOS INTER PARES



Coimbra, segunda-feira, 11 de Outubro de 2010



Às portas da Noite, noite por todos os lados, na rotunda dos patos, pela avenida que sobe até aos Olivais, pelo Cidral, pelas ruas de Santa Teresa e Pedro Monteiro, muita noite nas veredas da Sereia, acampada na Praça da República, nas esplanadas, na dupla sombra dos morcegos, no recolhimento dos cisnes nostálgicos e enregelados – e nos meus sapatos.
Pelas calçadas, o xadrez das figuras confirma a Noite. Há já casacos, o Verão já lá vai. Jornais, latas de cerveja, chávenas, fragrâncias rápidas de mulheres que passam perfumadamente, grandes árvores tremendo da febre fria do vento, automóveis adormecidos, relógios, dígitos, traseiros basculantes – e os sapatos dos outros.
Um rapaz de boca bem talhada encostado a um poste-candeeiro, a perna direita flectida em apoio traçando um 4 perfeito. Um par de namorados (ele mais baixo do que ela dois palmos bem medidos) frú-frúa beijinhos e risadinhas e cuspinhos e alarvidadezinhas docessumarentas. Algum lixo pelos lancis, mormente garrafas de vidro e copos.
Flores e ossos. Outros pares: roupa encarnada & despojos dominicais cheirando a missa acabada; íris versicolores & cintos de napa; arcadas & contentores; farrapos de frases & emoções leigas; restos de jantares & aromas abaunilhados; humanismos frígidos & brincos rutilantes; ossos & flores; & sapatos.

12/10/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 38

38. ALICE PROCURA DONO

Coimbra, domingo, 11 de Julho de 2010

Às sete da manhã, as ruas de Coimbra são mais minhas ainda que de costume. A um domingo, então, chega a ser avassalador, eu tão dono e senhor de nada, senão do ar que respiro e das solas que gasto. No chão, um fragmento de papel:

ALICE PROCURA DONO

O resto do anúncio desapareceu. Alguém que queria dar uma cadela ou uma gata com nome de gente. País das maravilhas, o nosso, onde até as alices são de borla.
O calor do princípio da semana passada deu-nos tréguas. Faz um tempo bom para ser isto: um príncipe deserdado, caminheiro, incondicional e lírico.
Recebo as frases, às vezes de maciça assentada. Chegam-me já buriladas, fazem-me quase feliz, a páginas tantas. Ando por aqui, estou vivo (estou vivo?), filtro os urdumes prosaicos da Realidade da idade real do Mundo, seja ela quanta for, seja ele quanto for.
Tenho de: ir ver a minha Mãe ao lar clínico onde doravante ela exerce a sua solidão descomunal, ir ao Rio e ao Mar, acabar a leitura do Pedro Dias, acabar a leitura daquele número de O Ponney, preparar o outono da minha vida.
Tudo é muito belo, muito grave é tudo. Sinto coisas: lances oblíquos, bolas de borracha ecoando infâncias de pátio, olhos de uma higiene magoada, mulheres sassaricando como bandeiras ao vento mais alto, sinto as aves urbanas da minha terra, melros, rolas, caudas-de-príncipe, pardais, pombas, patos, mulheres-bandeiras, sim, eu sinto e quase não minto. Pretendo tão-só não ser malfazejo para ninguém. Nunca virar, no entanto, a cara ante quem não presta, quem é nocivo, quem dissemina a putrefacção cancerígena, quem não lê Cesário Verde.
(...)
Terá Alice já dono, entretanto?

*

O Quarto-Casa tem uma cama, duas mesas pequenas, três cadeiras, meia-dúzia de livros, um candeeiro. É uma Nave, a nave em que viajo no continuum Espaço-Tempo. Dá para a rotunda relvada onde os patos vicejam. É onde (e de onde me) recolho (de) as palavras de cada dia. Sento-me ante a máquina e transcrevo. Recomponho na máquina cada dia. Não é um onanismo. É a silvicultura que posso. É ser Alice.

*

Barcos, como nenúfares de madeira, coalham
a marina já sem piratas, só tainhas.
Os ansiosos corações, é no mar que trabalham.
E as noites são régias – e as manhãs, rainhas.

Aquele homem é pobre, perdeu-se da mulher.
Agora anda ao sargaço, pode ser que morra.
Não a outra deseja, não a outra ele quer.
E não há quem lhe valha, nem quem o socorra.

Sou o que s’avenida ao longo do cais.
Sou quem o redige, sou seu mesmo arrais.
Sou o das gaivotas, eu quero um anis.
Às vezes não venho e outras não vou.
Sou a velha tainha, é isso que sou.
Pudesse, era barco – e seria feliz.

*

Depois, as fábricas fecham portas, é precário amar de borla os campos em volta, o Sol fustiga e desanima, raros táxis passam, o padre descuida os linhos da capela, os cães pianolam magros pelas ruas esburgadas, o Rogério anda amarelo, tem o mal dentro roendo roendo-o, ali era a casa do senhor Marques, hortas pernaltam couves incomestíveis, a ferrugem da nespereira sabe a morte-da-avó, entulharam o poço, degrada-se a nora.
E só já a rosa-dos-ventos ao vento vigora, alísea.
Ou Alícea.









11/10/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 15 - fragmento 13

Estou a tirar (a ninguém) uma licenciatura, posso casar-me, fazer de professor, comprar um apartamento e um periquito. Mas não. As sílabas voltam a atacar em vórtice-matrix. Tenho de escrever. Ver por dentro. P. ZZ.ETC. cumpro a minha primária e primeira e primacial licenciatura entre 1970 e 1974 (Reitor de então, Elias Rodrigues Faro). E foi para estas labiais flébeis gráceis inverosímeis sí-la-bas que vim:



SILABIAIS SÓ P’RA MEUS PAIS


Meu Pai, meu senhor Pai, que sossegada
nossa cidade está em pleno anil.
Dia catorze, Junho, de levada
leva (não traz) moedas de perfil.


Senhora Mãe, tão minha e tão Mãe,
sint’ a senhora o fresco da noitinha.
Estrelas não pertencem a ninguém,
pertenç’ eu à senhora, que é minha.

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 15 - fragmento 12


Como dizer-vos? – Menino, decompus-me em sílabas. Tirando os nascimentos de uma tal Leonor e de uma tal Teresa, não mor alegria vivi que a das sílabas. Era magia, eu tinha seis anos (outra magia), era magia a sílaba, cada sí-la-ba, as letras que as riscavam, atiravam, precipitavam, incitavam, justificavam. O po-pó. O pa-pá. A pi-pa (esta ficou-me para a vida, que o Pai já foi). O pé. Ou então sem ser por sílabas. Digamos grafemas & fonemas, letras & sons, significantes & significados, coisa & coisa e magia e magia. P. ZZ. PRESSA.PREÇO. EÇA, ESSA OUÇO. OSSO.OUSO. USO. SÓ. Maravilha, verdade? Depois, as ilustrações com o porquinho, a ovelhinha, o pastor, a mulher do pastor – e Cristo. (No fundo dos fundos, está o engenheiro agrónomo, sempre católico de vista e vereador por cunha, mas não vale agora nada pensar (n)isso.) Depois (muito depois), as sílabas, límpidas sempre, emaranhando a minha vida.

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 77


77. DANIEL BY NIGHT



Coimbra, sexta-feira, 24 de Setembro de 2010


Chama-se Noite, a manta que oblitera raias.
É tão mais negra quão mais branca.
Dela, os ossos são de diamante.
Ela cerca as pessoas, aproxima-as do olvido.


Sinfonia de destroços (ossos
de diamante), a Noite é de
uma rumorosa paz
de cabra ruminando, mas leva-nos
a Mãe, não nos leva
à Mãe.


Pertenço à Noite de todas as minhas vísceras.
Ao pó das estrelas, ante o rio gelado,
incendeio de mármore as minhas vésperas
e quando me deito, deito-me reconciliado


com a aceitação. Olha-me em torno:
ali o centro comercial (propriedade de pechisbeque),
ali um senhor qu’infelizmente é corno,
ali duas senhoras de muletas ao ataque.


Nenhuma fronteira senão esta derradeira,
a do coração. A do coração anoitecido,
digo.
Violetas ensombram arcadas imaginadas,
perdidos são os paços dos idos monarcas,
os autocarros amarelejam outonalmente
da rua que vai do Parque a S. José.


Ante o Hotel Astória, imagino-me outro,
um quase qualquer outro desde que não
este.
Depois este volta, volta-se
rumorosamente na
Noite
– e a sinfonia de despojos
apraia-se, destroçante enseada descoroçoante
que ao Mondego azula
tal diamante
alvíssimo.


Já senhoras como basílicas encontrei
em e a quem rezei
lacteamente.
Lembro-as na minha vicissitude podógrafa.
Recordo-as em vãos de espelhos, nas montras
expoentes de femininos adereços, digo,
bonecas, loções, sapatitos de corda, pão de trigo.
Ou recordo-as em vão, de joelhos.
Isto passa – que tudo passa
e se passa.


Hoje é a Noite. Uma sexta-feira,
longe do Hotel Astória.
E é outra, a mesma sendo,
a minha, como a vossa,
história.

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 15 - fragmento 11

Exercício, agora: pegar em solturas lexicais e dar-lhes corpo junto. Exemplo: colhendo palavras do que se diz (ou vocifera) na sala de café, reuni-las em corpus novo e único.
Escutando: onze – não – prazer – saúde – fresca – natural – faltas – tá-tá-tá-tá – linho – Madrid – gira – gás – fazer – gajo (sim, as pessoas circunstantes disseram estas palavras).
Tentando: Onze vezes caindo, doze vezes levantar-se. Que prazer adviria de não ter conspurcado alma, corpo, futuro, saúde? Toca a fresca brisa o perfil natural das árvores. Faltas-me. Olha, olha!, passa a charanga: tá-tá-tá-tá! De linho te revestiria em Leiria, Viena, Praga e Madrid. Lenta embora, gira a Terra, rosa de gás. Qu’é que vais fazer esta noite, ó gajo? Sei não, saio às onze, às doze…

09/10/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 85 (3)




Óbidos, uma vez ou duas.

Peniche, mais que essas vezes.
E estas vozes bramando ainda no lodo
do tempo (v)ol(vi)ido.
Que me digo?
(Ao balcão dO Nosso, a velha zuca da
meia tarde deixa cair-espalhar-se pelo chão
uma chicotada de cêntimos.)
Que te vivo?
(Chinelos de enfermeira batida em
corredores terminais, formóis de pré-
-morgue, médicos novos e compais de
pêssego surripiados ao economato –
nos pés da velha zuca.)
Santiago do Cacém, penso que uma vez só.
Vila Nova de Milfontes, duas.
Caminha, uma.
Vilarinho e Valarinho.
Campo de Besteiros e Cabanas de Viriato.
O Ribatejo de uma água só, campinamente.
Andorinha e Ardazubre.
Alhadas e Fontela.
E a vida e a morte,
ela por ela.


*

Verso da medalha,
o teu rosto:
Mãe.


*


Plenilúnio numismático,
rigoroso, matemático,
lua que aveluda a vida:
sou daqui mas já vim tarde,
sou do sol mas ele não arde,
ele não arde a vid’ardida.

*


Ó moça de sugáveis mamas
(quais moluscos ou bivalves),
espero tenhas a quem amas,
e que o ames mas te salves.


*


Uma revoada de folhas de árvore
devidissimamente paginadas
vieram amanhã em meu socorro,
por amizade, resgatar-me


das más leituras e das boas encíclicas,
da febre amarela e das dores cíclicas,
do éme rebelo de sousa , que tanto ousa
falar do que não sabe nem nele cabe,


de política, de viagens,
de meus sonhos e de piores imagens,
de obras incompletas
(graças a deus obsoletas),
do artur-jorge-e-d’académica,
da plaqueta sanguínea por natur’anémica,
da penínsulibérica, do raio da tia
que envenenou a noite & o dia,
da restauração e da Praça Velha,
qu’em Coimbra é das Cebolas mas nunca das vermelhas,
uma revoada de folhas de árvore
devidamente paginada,
um misto de vida,
de tudo e de nada.

Ideário de Coimbra - 85 - (2)

Ei-la alta,

calças verdes,
o rosto tão branco:
um lírio
ambulatório.
Formosa senhorinha
da meia torrada,
da cha-chá-vena.
Mãozitas de fina faiança,
olhar de quase-criança,
pèzitos que nem sombra
pisam (ou precisam).


Alt(ei-l-)a.

*
Aconteceu-me há pouco: escutei a minha
própria voz enquanto dizia alguma coisa
a alguém, não sei já quem.
Foi no exacto momento mesmo que dizia.
Pareceu-me algo combalida, a voz dessoutro.
Era de um homem que me habita amanhã?
Ou a de algum ancestro por minha vi(d)a?
Não era agressiva nem doce.
Era só uma voz: uma oratura, um metal.
Devo andar muito a falar sozinho.
Muito, digo, tipo coisa de há quarenta anos.

*
Olha, um homem de olhos verdes:
por azeitonas ou esmeraldas olha.
Que ele é pobre, sei-o eu bem.
Trabalha numas bombas de gasolina.
Ele olha arrelvadamente à chuva.
Tem um telemóvel dos baratos, umas
sapatilhas das descalças, umas
bragas no fio (da navalha), umas
vinte unhas, dois lábios, oito metros
e tal de tripas delgadas e grossas,
uma caderneta de cromáticas recordações,
um par de bambinos, uma mulher-nas-
-limpezas, uma avó hirta como uma
tábua de andaime, um passado
histórico, uma autognose absolutamente
involuntária, uma projecção astral,
uma irrisão áugure, um ricto labial
traidor de semiologias nervosas, uma
impossibilidade de conferir a Manuel
Alegre o estatuto de trovador sem
contar com as cheias de águ(ed)a e o
exílio em Argel, uns dois olhos
verdes.

Ideário de Coimbra - podografias de retorno - 85 (1)

Jorge de Sena (Lisboa, 2 de Novembro de 1919 — Santa Bárbara, Califórnia, 4 de Junho de 1978)



85. ELA POR ELA

Coimbra, quarta-feira, 6 de Outubro de 2010

O dia amanheceu inglês – baço, de frio ar varredor, chuvoso. Eu, no entanto, estou protegido da intempérie porque colecciono relâmpagos, isto é, versos.
De Poesia de 26 Séculos, a preciosa antologia costurada por Jorge de Sena, estes (co)riscos:

1 – OMAR KHAYYAM (Pérsia, séc. XII)

O mundo imenso: grão de pó no espaço.
Toda a ciência humana só palavras.
As flores e os animais e os povos: sombras.
E teus profundos pensamentos: nada.

2 – DANTE ALIGHIERI (Itália, 1265-1321)

Tanto é gentil e tão honesto é o ar
da minha dama, quando aos mais saúda,
que toda a língua de tremor é muda,
e os olhos não se atrevem de a fitar.

E ela perpassa, ouvindo-se louvar,
vestida de humildade e tão sisuda,
que se diria que, do céu transmuda,
à terra veio milagres comprovar.

E é graciosa tanto a quem na mira
que dá dos olhos tal ternura ao seio,
que entendê-la não pode o que a não sente.

E é como se em seus lábios fora ardente
um espírito suave e de amor cheio
que, sem dizê-lo, às almas diz: – Suspira.

3 – SHAKESPEARE (Inglaterra, 1564-1616)

Porque escrevo eu sempre tão igual ao que era,
mantendo-me fiel ao que inventei,
que cada termo é como se dissera
quanto de mim procede, que o gerei?

*
(Intervalo para vos confessar quanto me agrada esta meteorologia ensimesmada e ensimesmadora, este ar-aquário, este vulcão pluvial, esta redoma maxiatural com uma cidade dentro, esta campânula que prologa e prolonga o pensassentimento de cada instante. Não é já, não, o alto Verão durante que brilho e milho rimam tanto a tão loura altura. É a voz do Inverno Outono adentro, é a homilia hidrófila da quarta-feira. E é estranhamente, também e ainda, a magia de rimarem melancolia e quase-alegria.)
*
(Prolongou-se-me o intervalo por causa do almoço – e do raro apetite por ele. E são já as 17h09m da quarta-feira. Aproveitei os momentos pós-prandiais para conceber e enviar para Santarém a crónica dO Ribatejo, blogcanilei a entrada 83 deste Ideário, não saí de casa rumo ao Atrium antes de atirar uma porção de água e um chocolate-miniatura para as entranhas. Conservei, não sei porquê, o talão – processado por computador – de compra do Cortázar. Na última linha, inscrevem-se hora e data. Com a hora, tudo bem: 15:57. Mas a data refocila-me as tripas: diz que foi no dia 10/09/30. Inevitavelmente, leio: 10 de Setembro de 1930, o que é uma quimera técnica, tanto para mim como o americanóide processador de facturas. I know, I know, tem de se ler ao contrário agora (por paradoxo, à árabe), da direita para a esquerda: 30 de Setembro de 2010. Raios partam a globalização e os US of A. Por isso é que ainda lhes dói o “nainilévãne”. Deveria roer-lhes era o (duplo) “elévãnáine”: porque o 11 de Setembro de 2001 foi muito menos, mas incomparavelmente menos, assassino do que o outro, o de 1973, no Chile, que eles, o zamericanos, instigaram, encomendaram, pagaram e benzeram ao porco-sujo dos pinochets. Dito isto, regressemos à beleza crestomatiada por Jorge de Sena:)

4 – ANGELUS SILESIUS (Alemanha, 1624-1677)

SEM PORQUÊ

Não há porquê da Rosa, é rosa porque é rosa:
Não cuida de ser vista, ou ser de si curiosa.

*
E, por hoje, stop na antologia da Antologia. Amanhã ou assim voltarei aos trechos luminosos que Sena tão porfiada, gentil e sabedoramente arrebanhou.
Agora, preparando-me para a investida/descida/ subida da Noite. O Nosso Café, 18h06m. Precavi-me de camisola e casaco para descer da Solum ao Calhabé, mas é de t-shirt encarnada (duas nódoas feias na barriga) que vigoro à terceira mesa direita de quem entra. Uma espécie de paz: apesar da hipoescassez de dinheiro, apesar de todos os raios que me partam, uma espécie de paz. Afinal, a República pode ter cem anos, mas eu tenho quase metade disso. Portanto.
Portanto, seguir (conseguir) tecendo a emulação da utopia consigo mesmo/a. Digo: concebendo sempre a outra margem (a terceira) do outro Rio: lá onde as ideias, os flashes, a coruscância, a esmeralda – lá onde tudo é possível/passível de ser dito. A Poesia? Pois por que não? Já é tão tarde para cursar anatomia patológica ou silvicultura silvestre ou taxidermia de criaturas volantes ou hidráulica do Mondego… (Olha, pus reticências! Olha, pus ponto de exclamação…)

08/10/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 84

© Marek Jedzer

84. SONHO EM ESPÉCIE, ESPÉCIE DE DESEJO

Coimbra, terça-feira, 5 de Outubro de 2010

Descontadas algumas interjeições soliloquazes, passei o dia calado. O Centenário da República, comemorei-o, pois, em silêncio solitário. Falar, falei pouquíssimo (os telefonemas, aliás escassos e breves, não invalidam o que anoto), mas ouvi. Ouvi lendo. Cortázar atirou-me para o aquário das suas vivíssimas medusas póstumas. Agora, agora que o Sol da tarde foi finalmente vencido pelo anoraque cinzento do entardenoitecer de Outubro, pois agora que se lixe. Sem recursos e sem expectativas, não cuido de amanhã. Hoje basta-me por vida. E por enquanto mais não digo. Ou falo.
*
O intolerável das galerias comerciais fechadas nem é a interdição de fumar. O intolerável é a criancinha pequeno-burguesa que guincha e cabrioleia exigindo guloseimas e balancés electrónicos e coca-cola em vez de sopa. Não grita já o amor eventual que a gerou. Ela sim, grita, guincha, brama, trissa, ganiza, cainha, rincha, relincha, glotera e blatera. Invariavelmente filha de padrasto rematrimoniado com a madrasta seguinte, estas miniaturas estereofónicas entram-me pavilhões auditivos adentro com a subtileza do grão de areia em giz través ardósia. Tenho momentos em que me apetece jogar futebol com tal criancinha, fazendo ela de bola e o cabrão do padrasto dela de poste.
*
Uma manhã, à maneira de quem nasce, levantar-me de entre duras pedras orvalhadas e seguir marchando, primeiro por um areal litoral de incalculável extensão, areal e areal e areal e areal, vigiado de cima por aves geométricas como cabides ou crucifixos, do lado direito pela espumosa asma oceânica (oceano e oceano e oceano e oceano), em frente sempre e sempre avante, até que, como quem cede, o areal entra, para atirar-se-lhe aos pés, floresta adentro floresta afora, e nisto a tarde tornada fotograma de si mesma na película árvore sim árvore não, o pólen joeirando pelas frechas solares, a lavanda lavando os aromas respiratórios, a maravilha tão álgida de uma mãe-de-água em talha onde satisfazer a saúde da sede, seguir até que o entardenoitecer me cumpra o círculo e, nas duras pedras sobre que a geada veio anoitecer, parar, sentar-me e morrer.
*
(O que acabo de escrever – pode tanto ser um sonho em espécie como uma espécie de desejo.)





07/10/2010

Rosário Breve nº 175 - www.oribatejo.pt

© Fernando Campos in http://ositiodosdesenhos.blogspot.com/




Rosa-choque, laranja-mecânica e outros arcos-íris

Já muita gente percebeu, sem dificuldade alguma ou de maior, que Sócrates é Coelho e que Passos é Zé. Isto é: que são caras da mesma moeda. Leva-nos a palavra “moeda” ao incontornável e execrável Orçamento/2011. O monstro vai passar – e vai passar às cores: rosa-choque (tecnológico, claro) e laranja-mecânica (e bate-chapas e pintura). Claro que os mais abonados não o ficarão menos. Claro que os menos o ficarão muito mais. Mais do que as contas (sempre passíveis de uma qualquer maquilhagem remendo-oratória), a realidade está aí: na rua, de onde a toda a hora vem para nos bater à porta e estilhaçar as janelas.
Noutro plano hilariante deste morredouro de tesos que a centenária República é (sempre foi, até antes de republicana), o impagável (mas tão bem pago) PêTêPê (Paulo Teixeira Pinto), esse desgraçadinho reformado, esse capuchinho vermelho (salvo seja) que o Jardim Lobo Mau Gonçalves compeliu a dormir entre cartões frigoríficos ao desabrigo do pórtico do Teatro Nacional de D. Maria II, Paulo Teixeira Pinto, dizia eu, veio a terreiro público indignar-se muito com o gasto “quase obsceno” com que a República de agora veio comemorar a de há cem anos. Com entradas (e saídas) destas, não me admira muito que o Gato Fedorento ainda se torne quinteto – “por razões atendíveis”, claro está.
Entretanto, a “tranquilidade” está de volta à Selecção Nacional do Coice no Couro. (Não, não é de Paulo Teixeira Pinto Coelho José que vos falo: é mesmo do aliás gentil, lusitaníssimo e aturdido Paulo Bento.) É uma boa notícia. Tão boa, que até desconfio que as barricadas da Rotunda dos dias 4 e 5 de Outubro de 1910 não foram montadas, com ademanes de barraca de feira, senão para tirar de lá para fora o D. Carlos (Queiroz) I (aliás vítima, já então e à data, de regicídio, palavra que hoje significa “doping”) e botar lá o Paulo (em S.) Bento.
Tudo isto, enfim, é da mecânica dos choques e das rosas com sabor a tangerina mijona.



06/10/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 83



83. DITO COM A NUCA


Coimbra, segunda-feira, 4 de Outubro de 2010

Outubro já se outona. Não é o frio ainda, não. É o geral embaciamento da montra do ar, a teia pluvial, este global suspiro de terra que deu frutos e agora se prepara para dormir sobre o pão cortado, bebido o vinho novo da nova chuva.
Por mim, acho tudo bem. No café, uma velha enxuta como uma ave empalhada prolonga-se de corpo & alma no guarda-chuva de que se faz preceder. Encontra, prazenteira, uma homóloga etária – põem-se a charlar com uma espécie de delícia babilónica, uma gula que papia, ceceia, numa perene (e invejável) curiosidade atenta às mais comezinhas cozinhas inhas inhas da vida: os remédios de cada uma, os netos de cada uma, as vizinhas de cada uma – e nada naturalmente sobre Milton ou Nick Cave, népias a propósito de Montaigne ou Pétain, nicles quanto a Serrat ou Marías, também para quê Afonso Costa ou Sidónio.
Às 11h48m já chove. A semana começou com um mau telefonema, que faço por arquivar em alguma das mais recônditas reentrâncias do psyché da mente. À tarde, um pouco de trabalho, um quase-nada de ganha-pão. Entrementes, chuva e Cortázar.
*
Um cavalheiro reformado e nédio, de impermeável verd’escuro e aros de tartaruga oftálmica, lapija o problema de palavras-cruzadas do dia. O todo dele descamba nuns sapatos castanhos e picotados à antiga, cuja versão prefiro em preto. Tomou café, sobra-lhe um pouco do quartilho de água mineral. Tenho fome, mas é cedo ainda para me deixar de melancolia e literatura em prol de ir comer o esparguete e a sopa. Na televisão, enésima repetição de um Benfica-Braga qualquer. No exterior desta repartição de cafeínos & nicotinos onde escrevivo em silêncio, desmonta-se o circo dos U2. O rapaz que queimou a mioleira com anos de drunfos & afins não veio hoje de casaco de couro castanho. Também não se demora por aí além. Eu sim, um pouco mais ainda, não sei quantos anos.
*
Num texto publicado em L’Humanité (Paris, 22 de Agosto de 1977), Cortázar, evocando a sua relação de, então, quase vinte anos com a Cidade-Luz, escreve:

Paradoxo irrisório: quanto mais pertencemos a uma cidade, menos a vivemos.

Espero viver mais (um pouco mais, pelo menos) a minha. Com ou sem paradoxo, que a irrisão é certa.
*
Do mesmo Cortázar, em Rayuela:

(…) depois dos quarenta anos a nossa verdadeira face está na nuca, a olhar desesperadamente para trás.

Pois é, digo eu com a minha nuca.
*
Ei-la, claro, a velhota zuca à hora do costume (meia tarde, 16h30m). Arara que o Tempo agalinhou, pele facial em estrias de escarpa (ou escamas de carpa), cabelo, hélas!, envernizado de um ouro-verde, pés que seriam de cortiça se a) a cortiça andasse, b) a cortiça fosse branca e deitasse unhas. Está (Deus às vezes existe) calada: uma revista absorve-lhe a mecânica dos fluidos labiais. Antes da revista (somos poucos clientes a esta hora), porém, farolinou derredor olhos de mete-conversa. Periférico, nem ousei içar a corneta e o par de óculos (que ainda não acabei de pagar à Óptica L.) do caderno. Mas já sei que, um destes dias, ela, flibusteira, corsária, me piratareará o silêncio escriba para saber se a) sou casado, b) se ando a estudar, c) sobre que escrevo eu tanto, c) que livro é este que eu ando a ler há tanto tempo, d) que edição é esta tão inesperada e tão póstuma de don Julio Florencio Cortázar. Se tal por desgraça suceder, terei de lhe redarguir que a) na peida, b) no olho é um descanso, c) nos entrefolhos badanantes do cu e que d) é uma edição da Cavalo de Ferro (1.ª ed., Julho de 2010) preparada por Aurora Bernárdez e Carles Álvares Garriga e com tradução de Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu.
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Paradoxo irrisório meu, este: publicando-a, tornar mais secreta a face.
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Às 17h20, quatro pós-adolescentes adolescentam uns pós de conversa-capoeira: palram namoradas, eus, cus & mamas, cristianorrónaldo, ar-de-cor, bairro-norton-de-matos, &podes, merdas que há vinte e cinco anos também chalrei, mudados os rótulos aos frascos.
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De tarde, uma solaridade fresca esqueceu as águas da manhã. Mangas curtas por todo o lado. Um homem de camisola afro-verde, porém. Carros cinzento-metalizados, um par de mamas inflacionando uma blusa roxa, um pacote de açúcar degolado, a revista do Noddy (estranha felicidade, a da infância do Norte, por assim: por feliz, por infante e por do Norte), porto-ferreira & brandy-croft, massa térmica para processador, é-assim, tàzaver?, 1-euro-1-euro-e-meio, gigas, o alçapão da mente urdindo o Zunir da Palavra, ontem-domingo-à-varanda-vendo-vento-que-chovia, obliquidade do pescoço na história activa da literatura, na tarde de Coimbra um ciclista-operário de camisola amarela, epifania benigna que me transmuda sem apelo para a visão de Joaquim Agostinho em fuga solitária (n.º 1, n.º 1!) para a Figueira da Foz, à passagem pelo túnel da Estação Velha, a nossa verdadeira face está na nuca, os macacos, a linha de sangue & fogo que baptiza as cidades, a peduncularidade lacustre do coração, a ubiquidade insectófila dos telemóveis e das meias brancas com o par cruzado de raquetes de ténis, as mariposas e as medusas, os anos que andei para isto, os anos que afinal andei para isto, os anos que andei para afinal isto, Martinet & Schaff & Aguiar & Kristeva, Cervantes & Eusébio da Silva Ferreira. O resto da vida parece-me inversão de fotograma: ter feito sol de manhã, estar a chover na antecâmara da noite, do outono, da porra do outono, que sempre foi e é sempre bonito, mas enfim.
*
Toca-me como um dedo alheio na bochecha a perfeição por assim dizer cerâmica da fruta exposta em bancas na rua. Ainda agora assim foi: pêssegos-carecas de tão glabra lustralidade, uvas-de-mesa gordas como pérolas de ostras gordas, batatas descomunais como hematomas ou aleijões de gigantismo das feiras de aberrações, nêsperas que não sei se pepitas se chinelos de ouropel. Venho andando nisto, afiado como um lápis sobre papel-manteiga de embrulhar toucinho, as mãos ainda-ilesas, as nádegas nem-tanto e os ossos apesar-de-tudo.

Canzoada Assaltante