24/03/2010

De Perth ao Longe (3)

Pombal, manhã de 22 de Março de 2010

3



As pessoas não lhes ligam nada, mas as mãos são maravilhosas. Já nem me refiro apenas ao milagre de mecânica que é a oposição do polegar. Falo da estrelícia que cada uma floresce. Antigamente, na televisão única e a preto-e-branco, davam concertos de piano. As mãos da pessoa pianista eram quatro por causa do reflexo mágico da madeira que encimava o teclado. Aquela imagem ainda me emaranha o coração. E ainda me infantiliza sem prejuízo. Depois disso, dormi com mulheres e escrevi livros, como a todos os homens acontece mais cedo ou mais tarde. Mas nunca me esqueço de ser hipnotizado pelas mãos das pessoas: de todas as pessoas as mãos todas. As da minha família são todas iguais, chegando a parecer-se mais connosco do que os olhos mesmos. As mãos fazem tudo o que é preciso, como também tudo o que não. Ontem à noite, assisti em solidão perfeita a um documentário sobre a existência miserável de um tal Heinrich Himmler. Ele tinha duas mãos. Uma delas lhe levou à boca a final ampola de veneno: único gesto decente daquela vida. Quando a vida dele acabou, eram quatro da manhã para mim. Um dente infecto fazia-me da gengiva uma romã maligna. Toquei a queixada com a menos escritora das minhas mãos, a esquerda. A minha mão esquerda também é encantadora. Finge (ela gosta de fingir) que não existe, que não quer a coisa, que não é nada com ela. Mas ela estava lá quando se tratou de segurar ao colo as minhas infantas, e quando sequei o floco de espuma aos cantos terminais da boca do meu Pai (Abril de 1994), e quando subi ao colo a gata que morria de fome numa rua de Viseu (1 de Junho de 2008), e quando no comboio nocturno a faço estrela absorvente (duas, na vidraça) da escuridão corredora. E quando a vida é o que nos fica mais à mão – está tudo dito.

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Canzoada Assaltante