04/02/2010

Somos de Madeira Também

© Lewis W. Hine - Nan de Gallant, Eastport, Maine, 1911



Souto, Casa, noite de 3 e madrugada de 4 de Fevereiro de 2010

I

As casas apodrecem um pouco mais devagar do que nós.
Já não custa sabê-lo agora que as horas se tornam madeira.
Moedas de lilás circundam-nos os olhos urbanos.
Somos de madeira também – e a vida é lume.

O dia-a-dia adia o dia, odeia a ideia do dia
em que todos estaremos sós ao mesmo tempo.
Quando o corpo começa a fenecer, Deus começa
a dizer criancices mortíferas em voz grossa.

A tristeza é outra coisa, outro caso, outra casa.
Nada a contestar à rapariga que envelhec-
eu.

Os casos apodrecem um pouco mais depressa do que a voz.

II

Noites como esta servem-me à maravilha
para confirmar a maravilhosa inutilidade
da poesia.
Ficam algum tempo os papéis, algum tempo
neles a tinta, depois é como todo o antes
de que nada soube nem saberei.

III

Homens e mulheres à ventura dos dias,
tão cansados à noite, à noite tão cansadas,
gente entregue ao rodízio carnívoro do Tempo,
pobre gente acumulando destroços de si mesma
em garagens onde escovas, meios baldes de tinta,
bicicletas quebradas pela espinha, sapatos
que não houve coragem de deitar fora.

Repartições administrativas, creches ferrugentas,
embarcações transeuntes dos sonhos, casotas
sem cão dentro, canários mineiros de cheirar
o gás, anonimatos mais duradouros do que
celebridades, cafés que servem ainda ponche
e anis e refresco de groselha e café-de-saco,
as nossas vidas levadas a sério de mais
ou menos.

Nas prisões, nos quartéis, nas escolas, nos hospícios,
nos cabeleireiros, nos mercados, nos pavilhões, nos adros,
nos túneis, nos parques, nos coliseus, nos esgotos,
nas bibliotecas, nos bazares, nas pistas, nos hipódromos,
nas câmaras, nas confeitarias, nas morgues, nas mercearias,
nas perseguições, nas bolsas, nas fontes, nas pontes,
nos montes, nos viadutos, nos oleodutos, nas fábricas
– a nossa gente somos nós, ninguém um dia,
por ventura.

IV
Quando durmo à beira do mar gelado, em
casa embora, adquiro essa espécie de inconsciência
que se chama felicidade. O mundo deixa
de poder convocar-me à força, sinto para além
do corpo, sem alegria e sem amargura, sem
hora e sem década. Como peixes transparentes
em água-de-coral, vivos e mortos, próprios
e alheios, juntam-se-me à beira do mar
frio. Subo um olhar que não é o da cara
às montanhas brancas, de que sobem árvores
de precisa e preciosa escuridão. É muito bonito, sobretudo
na presença da vela vigilante de quem vai adormecer
não cuidando se acorda, pois que
recorda.



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