31/03/2009

Isaac Levitan, pintor (1860-1900)

Isaac Levitan
By the Deep Waters
1892, Oil on Canvas

29/03/2009

Velas - de Kaváfis


Souto, Casa, manhã de 29 de Março de 2009


A fotografia é de Sandra Bernardo e foi conseguida em Viseu, no Teatro Viriato, a 3 de Setembro de 2008. O poema não é meu, pois pudera! É de Konstantínos Pétrou Kaváfis (n. e f. em Alexandria,1863-1933), um senhor cuja grafia onomástica varia de língua para língua, muitíssimo bem apresentado por uma senhora chamada Blanca Gago (v. texto depois do poema). Como não sei grego (nem antigo nem moderno) e por não dispor de tradução portuguesa, atrevi-me a traduzir do inglês estas


Velas
*
Os dias futuros, temo-los em frente
qual galeria de pequenas velas acesas,
douradas, tépidas, vivas pequenas velas.
*
Os passados dias ficam-nos antes,
velas em lutuosa linha extinta;
fumegam ’inda as mais recentes,
frias, derretidas velas, e inclinadas.

Não quero olhá-las; entristece-me como parecem,
como me entristece evocar delas a luz primeira.
Em frente olho e as minhas velas acendo.
*
Não quero olhar para o antes, tal que me estremeça
ver quão velozmente se alonga a escura linha,
quão velozmente se multiplicam as velas extintas.
*

Candles


The days of our future stand in front of us
like a row of little lit candles –
golden, warm, and lively little candles.
*
The days past remain behind us,
a mournful line of extinguished candles;
the ones nearest are still smoking,
cold candles, melted, and bent.
*
I do not want to look at them;
their form saddens me,
and it saddens me to recall their first light.
*
I look ahead at my lit candles.
I do not want to turn back, lest I see and shudder
at how fast the dark line lengthens,
at how fast the extinguished candles multiply.
*
Constantine P. Cavafy (1899)

*******************************
Blanca Gago
*
Constandinos P. Cavafis
*
in
http://www.espacioluke.com/2002/Marzo2002/perfiles.html
La obra de este poeta, nacido en Alejandría en 1863 y muerto en la misma ciudad en 1933, se compone únicamente de ciento cincuenta y cuatro poemas revisados y pulidos hasta la perfección, lo cual da una idea de su concepción de la Poesía: Señora altísima, objeto sagrado de culto, muy semejante a la midons de los trovadores medievales. Cavafis es por ello y por otros motivos un poeta excepcional: máximo representante de la literatura griega contemporánea, educado a la inglesa, influido por el simbolismo y el parnasianismo franceses, habitante de una Alejandría tradicionalmente multicultural, multirracial y moderna, admirador y estudioso de la Grecia helenística...todo eso lo convierte en un autor original ya sólo por su contexto.
Europa Occidental suele mirar con indulgente simpatía a las literaturas orientales, como si éstas pudieran ofrecer únicamente un cierto toque de exotismo en los momentos de monotonía creativa. La obra de Cavafis es una de las pocas que trascendió en seguida la difícil barrera literaria entre Oriente y Occidente, quizá porque presenta múltiples puntos de encuentro entre ambos mundos, quizá por el oportuno acierto de algunas traducciones, quizá por la universalidad que se reconoce en cada poema.
Los mejores textos de Cavafis fueron escritos en su madurez, a esa edad en que algunas personas adquieren una cierta intuición vital que les permite estar en el mundo como si ya lo hubieran visto todo. Sus poemas no contienen ni un desgarro, ni un grito, sino que contemplan la existencia desde una distancia grave e inteligente, solemne e irónica a la vez, como contempla el mar un hombre que ha pasado navegando toda su vida. Por los poemas del autor alejandrino desfilan efebos ingenuos y deseables, personajes históricos, gentes anónimas...y objetos, objetos cotidianos que siempre tienen un significado hondo y preciso (los cirios apagados son los días consumidos; los cirios encendidos son los días que nos quedan por vivir). Uno de los mayores logros de su poesía es el acercamiento de los personajes y hechos históricos al lector moderno, normalmente poco versado en lecturas clásicas. Mediante la técnica de la máscara, o usurpación de la personalidad, la voz del yo-poeta se apropia del alma de Marco Antonio –y su pensamiento al dejar Alejandría, en El Dios abandona a Antonio-, la temeridad de Julio César, el miedo de Cesarión, las emociones de los dioses del Olimpo...y nos presenta a todos ellos como seres perfectamente humanos. La re-creación constituida a base de elementos irreales es lo que los hace reales.
Y así, Cavafis muestra que la historia, como creían los griegos, tiene algo de cíclica, porque los Senadores de hace veinte siglos hacían gala de una ambición parecida a la de hoy en día. Y la nostalgia del pasado, el miedo a lo desconocido, la debilidad que nos acecha en los peores momentos, la atracción sexual ligada muchas veces al sentimiento de culpa, la impotencia ante el paso del tiempo...todo eso, que es inherente a la condición humana y no cambia nunca, lo supo expresar Cavafis maravillosamente en cada uno de los ciento cincuenta y cuatro poemas que componen su obra. Una obra de lectura exigente ( no olvidemos que la Poesía es la Señora a la que debemos rendir culto ) pero agradecida, que huye de la identificación fácil para adentrarse en la esencia de la experiencia humana. Salir ileso del viaje es ya cosa de cada cual.


28/03/2009

Pomba - um texto antigo com foto recente




Diana voa Meyerbeer

Sei muito bem Quem e Onde

© Arno Rafael Minkkinen




Souto, Casa, manhã de 28 de Março de 2009


Quem na minha infância foi infante
onde está e quem é
agora que a infância não é nem pode haver?

Vendedores, compradores, gordos, encanecidos,
fatigadas, esmaecidas, peixeiras, advogadas:
por que ruas evanescem as meninas e os meninos
que noutras meninas e meninos em vão tentaram
repetir-se?

LIDO CO’ LÁPIS – 2 - Camões Lírico segundo Agostinho de Campos (II Parte)


II Parte



Souto, Casa, 5 e 6 de Dezembro de 2008,
28 de Março de 2009





Parece que também houve ingleses rendidos a Camões.
Byron conhecia-o, admirava-o e oferecia-o.
Wordsworth citou-o de dignidade a par de Dante, Petrarca e Tasso, quando, defendendo de críticos o soneto como forma poética, invocou Shakespeare, Spenser e Milton.
A poeta Elizabeth Barrett-Browning terá tido em Camões nada menos do que um modelo. Isso se aprende (é uma passagem curiosa) na referência que Agostinho de Campos faz a comunicações feitas circa 1918 por um sócio da Academia das Ciências de Lisboa, o “polígrafo general” Fernandes Costa. Este sócio institui que Elizabeth

“num volume de versos, publicado em 1844, menos de dois anos antes do seu casamento, inseria uma admirável e lindíssima poesia, que intitulou: Catarina to Camões: dying in his absence abroad, and referring to the põem in which he recorded the sweetness of her eyes”.

A citação seguinte é mais longa porque Agostinho de Campos recolhe uma pérola da exegese do conferencista Fernandes Costa. Esta pérola:

“Isto diz Fernandes Costa depois de haver mostrado que aos quarenta e quatro sonetos amorosos de Isabel Browning, intitulados Sonnets from the Portuguese, foi pela poetisa dado êste nome, porque êles se inspiravam no seu amor ao poeta Roberto Browning, com quem mais casou; e ela, por delicadeza compreensível a todos que bem conheçam qual era a sensibilidade dos dois, simulou que os havia trasladado de uma literatura estranha, a portuguesa.”

Neste ponto, que encerra a página XVI da Introdução, Campos cede caneta e tinta ao polígrafo académico da Academia das Ciências de Lisboa:

“É para nós, portanto, mais do que intuitivo (conclui Fernandes Costa); chega quási a ser uma opinião fundamentada, que o conhecimento que Elizabeth Browning possuía de Camões, como poeta lírico e como sonetista amoroso, não foi estranho à sua deliberação de encobrir, com um véu de delicada reserva feminina, as cruas e exaltadas declarações amantes dos seus sonetos, atribuindo supostamente estes a uma literatura, já pelos outros enriquecida.”

(A CONTINUAR)

27/03/2009

Rosário Breve nº 96 in O Ribatejo - www.oribatejo.pt

Nem dívidas nem dúvidas

Não tenho qualquer dívida para com Angola, Brasil, Cabo Verde, Damão, Diu, Goa, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, S. Tomé e Príncipe e Timor. Nem histórica, nem moral, nem ética, nem económica, nem linguística, nem cultural, nem nada. Nada e nadinha.
Viseu e um pouco mais a norte; Pombal e um pouco mais a sul – eis o meu quintal. A exclusão abrange, natural e irreversivelmente, o ultramontano Vaticano, o Teerão zuca, a mistificação multinacional Cova da Iria/Lourdes /Vale dos Caídos, a seca de Meca, o Estrasburgo mafioso, a Bruxelas pseudo-regional, Paris (Hilton), a Baixa da Banheira não sei porquê e o Bairro Alto também cá por coisas.
A vida é pouca coisa, mas é o tudo a que temos direito. É um fragmento de século, um caco de décadas. Não vale a pena estragá-la com falsas totalizações de aldeia dita global. A vida é a Linha do Tua, não é a mentira do TGV.
“Orgulhosamente só”? Não. Mas o que me interessa, senhores, senhoras, é a minha terra nossa. A terra e o sal de que é feita: o trabalhador explorado, roubado, vilipendiado e despedido; o aluno adiado, desinstruído, mecanografado e esquecido; o doente acarneirado, procrastinado, xaropado e falecido; o queixoso julgado, ignorado, condenado e detido. A minha terra e o sal da minha terra: trabalho, educação, saúde e justiça.
Porque só nos deveria interessar deveras o que, precisamente, não temos. A desclassificada política que nos desgoverna, o decadente “jornalismo” freteiro, a massiva pimbalhada rádio-televisiva – isto é que é a nossa SIDA, o nosso preservativo, a nossa fé armilar.
O resto? O resto é colonialismo do avesso.
Não, não tenho dívidas. Não tenham dúvidas.

Ilya Repin, pintor


Retrato do compositor Modest Mussorgsky (Ilya Repin, 1881)

26/03/2009

LIDO CO’ LÁPIS – 2 - Camões Lírico segundo Agostinho de Campos (I Parte)





Camões Lírico segundo Agostinho de Campos (I Parte)

Souto, Casa, 5 e 6 de Dezembro de 2008,
26 de Março de 2009





“Poderá admitir-se o conceito de Benedetto Croce:
‘O poeta não é outra coisa senão a sua poesia’?
Sim, quando for fácil entre o poeta e o homem, e entre a poesia e a vida, uma nítida, inconfundível separação. Assim está próximo de suceder, quando o poeta se não contenta de fazer da sua poesia uma rítmica repercussão oral das palpitações do coração
o vil músculo nocivo à arte,
como o considerava Carducci –
ou desdobramento, em palavras e frases, das interjeições de dor e alegria, entusiasmo e depressão; quero dizer, quando o poeta se empenhe em comunicar imagens criadas em puro estado poético, ou seja em tensão vital que lhe anormaliza a existência quotidiana, no anseio de a superar em beleza, profundidade e altura. Em tal estado, não pode ser espontânea e natural a comunicação, nem o que se comunica é da pobre existência de que se tentou a evasão.

Hernâni Cidade,
in Camões,
2ªedição, Círculo de Leitores, Agosto de 1980




Agostinho de Campos (1870-1944) assinou em Lisboa, a 3 de Março de 1923, a Introdução que abre o primeiro dos cinco volumes de Camões Lírico, cuja organização lhe pertenceu sob a égide da Aillaud & Bertrand. Os tomos camonianos integravam um plano editorial globalmente denominado Antologia Portuguesa, que compreendia e pretendia divulgar popularmente autores como Fernão Lopes, João de Barros, Manoel Bernardes, Frei Luís de Sousa, João de Lucena, Alexandre Herculano, Guerra Junqueiro, Eça de Queiroz, Augusto Gil, Antero de Figueiredo e Afonso Lopes Vieira, entre outros paladinos da linguagem portuguesa.

À data da edição que possuo (a segunda, de 1925), a dita Antologia Portuguesa compreendia já 23 volumes publicados. O projecto mereceu da Secretaria Geral do Ministério da Instrução Pública uma nota de louvor publicada no Diário do Governo, II Série, nº 98, de 28 de Abril de 1920. Reza assim o registo oficial:


Considerando que à excepção dalgumas raras jóias do património literário nacional, se não conhecem geralmente as obras primas da literatura portuguesa, muitas delas de difícil aquisição pela antiguidade ou raridade das suas edições;
Atendendo a que a
Antologia Portuguesa, organizada pelo escritor Agostinho de Campos e publicada pela Livraria Aillaud, procura obviar àqueles inconvenientes, oferecendo ao público uma colecção onde fique arquivada a produção literária de muitos dos bons prosadores e poetas nacionais de todos os tempos e escolas:
Atendendo ainda a que a forma material como a
Antologia Portuguesa é apresentada, a torna verdadeiramente agradável e atraente e, por-tanto, de fácil vulgarização e largo proveito educativo;
Manda o Govêrno da República Portuguesa, pelo Ministro da Instrução Pública, que seja louvada a Livraria Aillaud pelo seu patriótico empreendimento, em vista dos altos benefícios que essa casa editora vai prestar à divulgação das preciosidades da literatura nacional, com a publicação da
Antologia Portuguesa.
Paços do Govêrno da República, 24 de Abril de 1920.
O Ministro da Instrução Pública, Vasco Borges.


A Introdução de Agostinho de Campos (47 páginas numeradas a romano) invoca testemunhos de “doutos Alemães”: F. Bonterweck (1805), F. von Schlegel, K. Rosenkranz (1833), B. ten Brink (1881) e o famoso tradutor e comentador W. Storck (1881).
(Diga-se à passagem que “Guilherme” Storck, aliás, integra a lista dedicatória do primo volume, Redondilhas, a par de Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Manuel de Faria e Sousa, Visconde de Juromenha, então já falecidos, e de Carolina Michaëlis de Vasconcellos, Teófilo Braga e José Maria Rodrigues, então ainda não...)

Agostinho abre com um comparação resolvida:

“Luís de Camões, tão grande se não maior lírico do que épico (…)”.

Os sábios teutónicos de Oitocentos não desalinham do organizador português:

Bouterweck:

– “(…) uma tal graça”
resistente
“à crítica mais rigorosa”
e capaz de desarmar
“toda a crítica”.

Schlegel:

– “(…) pela grandeza do seu plano e propósito (…) não será fácil encontrarmos seu igual entre os modernos.”

Rosenkranz:

– “(…) cumpre considerá-lo na sua produção lírica, e não só na sua epopeia, como costuma fazer-se. Uma completa a outra.”
(A citação culmina com a manifestação da
“exuberância da sua alma poderosa”.

Brink:

– “Iniciado desde a mais tenra juventude nos mistérios da divina arte, e amestrado nela por uso e contínua prática (…)”,
Camões só pode ver provada a
“universalidade do seu talento”.

Storck:

– “(…) vale por muitos outros poetas e por uma literatura inteira. (…) êle é não só o maior lírico do seu país, mas um dos maiores líricos de todos os tempos.”
Storck conclui que o homem completo de Camões é nas líricas que pode ser visto:
“(…) mas o homem, no seu ser e na sua vida, na alegria e no amor, como no ressentimento e na tristeza; o filho do seu tempo pelo saber e pela fé, pelos devaneios e anseios; o consumado cavalheiro dos serões palacianos; o atrevido espadachim em plena roda dos companheiros de estroinice; o valente soldado de terra e mar; o destemido aventureiro que repartiu a existência pela Europa, África e Ásia; o finíssimo observador da natureza e da vida; o mancebo e homem feito, ilustre e cônscio do seu valor, mas pobre e infeliz; numa palavra: a personalidade íntegra, e os movimentos e impulsos que lhe imprimiu o Destino e os próprios erros – tudo isto só o podemos ver nas suas líricas.”
(A CONTINUAR)

J de Joni, M de Mitchell

25/03/2009

Um país faz os Malucos do Riso, outro tem Ricky Gervais

Alguns Aspectos desta Vida da Gente

Souto, Casa, manhã de 25 de Março de 2009





Chamam artérias
às ruas da cidade como às pistas do sangue.
E pistas e ruas respondem rumorosamente ao chamamento.
As mães correm labirinticamente, chamadas pela seiva
das estações, as do ano como as dos comboios,
rodas que chiam nos eixos, frutos
das árvores como do tempo.

Vistas de fora com a cabeça dentro da cabeça,
as cidades,
como as veias,
pulsam mapas que não cuidam
nem perdição nem salvação.

Tudo é por fora dos outros filhos.
As ninhadas mamam pólen, ambrosia, pão de cacete,
litradas de café-com-leite, folhas amargas de figueira.
Rodam as pedras, reverberam as nuvens, transita
o aniversário incontável de todas as coisas,
data de datas distraídas na insuficiência do cérebro.

Ambulâncias guincham, guinam, pedras de giz
com um aluído corpo escrito dentro.
Pedem aos médicos que o leiam, ao corpo, como
a uma posologia arrancada à terra fervida de estrelas,
a um quintal onde evanesce o remanescente pessegueiro,
antes do que aí vem, o próximo.
Tantos miúdos nomes dão severidade à sociedade anónima
cuja responsabilidade não deixou jamais de ser limitada.

O jazz segue no papiar desencontrado dos vendedores,
é por dentro que se calcula o que o fim do dia pode trazer,
as artérias levam como o fim do dia leva, vale
o que o sangue leva a suas esquinas, suas curvas arteriais
na cidade do corpo, onde a sós se diz imprestáveis segredos,
rumores tão-só.

E o tempo todo o tempo é de anamnese íntima: viver.
Demora a resposta interrogativa do corpo ante a brisa
que é tão ave como árvore na rotação dos céus de azulejo
lavados a sabão e a chuva e a perguntas do viajante
parado em seu patamar arrendado à década, na artéria
crianças suportam já o futuro anterior dos estacionados,
das bancas de fruta, da ronda policial ao sol, queimada
a manhã a gás, fragrância de flagrantes hortaliças,
volta do talhante doméstico, rumor das mães preparatórias.

Onde entra a pergunta
Que acontece às coisas fechadas na caixa?

E a caixa ser a cabeça dentro da cabeça fechada
a si mesma vista de fora como um estudante
descendo escadarias e escadarias longe dos pais,
as coisas fechadas dentro do estudante que brincou
fora à vista da doméstica que pendurava camisas
e do talhante ambulante que não quis nunca
aquela vida,
esta.

24/03/2009

Carta com Eucalipto Perto

Souto, Casa, noite de 24 de Março de 2009





A língua escreve na linha da boca.
A árvore exclama aves de vigia.
Um corpo alvo escurece o dia,
que a manhã se prometia rouca

e de si mesma sequestrada, vã
sua mesma glória falante: suas aves,
suas famílias no lunar afã
de dormidas horas não suaves.

Nisto, o carteiro traz distante
cotim que tão silêncio faz.
É uma carta que traz
do horizonte.

Tudo se une: barbeada de prata a lua,
um sol radial dando um passarito
e uma vaga de frio queimando o eucalipto
que sentinela a casa que é tua,

além de minha. Caiu entanto a noite,
deve ter escrito a língua já sua linha.
Uma carta veio. E foi-te
dizendo coisas da vidinha.

Nome no Escuro

© Nadar
Young Woman in Profile
circa 1859




Souto, Casa, entardenoitecer de 24 de Março de 2009





Não já viver se não assim, atento ao perfume do lilás
que reconhecido rosto evola da galeria ignota.
Manter certinho o cuidado das terças-feiras disto
a que um dia chamámos por ignorância futuro, hoje
ainda.

Hirta rapariga aveludada, o cabelo apanhado pelo tempo
mais que pela objectiva, o brinco em perpétua gota
revelada a água de metal, aquela sombra cavando a raia
entre morder e engolir, entre pensar e sentir, algures
já longe de França e de aqui, onde

a reconheço minha igual, máquina de composta abstracção,
ortógrafa de um olhar calígrafo, contra um cenário neutro,
como nós em crianças e em velhos, praia de papel queimado
sombreada a pègadas silentes, finalmente.

Do todo, meio corpo, nenhuma alma senão a dos ácidos
marejando à luz vermelha, no escuro povoado de ilegíveis
nomes, hirtos, lilases, metálicos, aquosos nomes
certinhos entre duas datas.

Habitação e Povoamento de Pombal (14 e 15)

© Sandra Bernardo
Homem de Bicicleta
Cabanas de Viriato. 8 de Setembro de 2008




14

Manhã de 8 de Março de 2009

Fuma-se um cigarro à porta do prédio.
O sol não dá sinais de aparecer em esplendor. Um cartão de embalar frigoríficos pladurou o céu de gesso-cinza, faz um griso apesar de tudo moderado. Vê-se uma mulher varrendo um pátio e um gato estudando um canavial português. Os automóveis são quase todos cinzento-metalizados. Uma bátega de chuva nem cairia mal. Tempo (uma hora) até almoço, seguindo-se a cógnita tarde de domingo: papéis, fotografias, arquivos argolados, leituras de geografia e de criminologia, talvez um filme faça de tampão mental até cercanias de jantar.
(Mas ontem nasceu a Margarida, filha do Zé Eduardo, minha primeira sobrinha-neta.)

Almoçamos nos Marrazes, chez “Casinha Velha”, com Isabel C., a convite dela. A refeição foi um interlúdio suave nas três vidas à mesa. Comungámos queijos, enchidos, peixe (robalo) e carne (cabrito), mais doces e café. Havia na parede um texto autógrafo de Saramago com data de 16 de Abril de 2001. Fora, um sol fresco de fim de inverno, mui-pouco-nada marçagão. Investidas de sonolência pós-prandial. Voltou-me a boa prática de deitar-cedo-cedo-erguer.
Passou.

15

Manhã de 19 de Março de 2009


Usufruto da tranquilidade decorrente da irrelevância, até cósmica, de nós todos, assim na terra como no céu.
Condição humana e filmes à tarde, embalagens de pão fatiado à americana e bibliografias do XIX.
Perto, em frente ao Armindo do Pic-Nic, dois chorões ao sol matinal.
Leitura vagarosa do Dicionário de Milagres do Eça.
A irrelevância como um consolo.
Gente.
Um polícia leva à cara o par de óculos escuros.
Casal de velhos na rua: homem à frente, mulher a dois passos, ele conferindo a carteira, ela de olhar oblíquo, descendente.
Gente, nós todos.
Gente que só em funerais se permite o luxo insensato da metafísica, a moléstia da consciência, a esferográfica da efemeridade.
Gente que saca papel higiénico nos cafés para ter em casa sem comprar.
Um cigarro calmo, banal, matinal, um cigarro que ajuda a não permitir mais auto-impostura, mais máscara.
Recolha e recolhimento.
Andando calado pelas ruas, soliloquaz em casa, com as gatas e as publicações calmosas.
Águias, águas, magias, mágoas.

20/03/2009

Rosário Breve nº 95 - O Ribatejo - www.oribatejo.pt

(200 mil mal?)

(Uns poucos têm cotação na bolsa. Pelo menos 200 mil têm cotão no bolso. Decerto os mesmos que, quando olham um ministro de carro, vêem um sinistro-auto. Os próprios que ainda não confundem tanta pomba com Santa Comba. Os tais que, por ousarem manifestar-se, um dia destes não acordam na cama mas na cana.)
Para me entreter enquanto a mulher não chega a casa para irmos ao Lídle comprar atum de Marrocos, azeitonas da Grécia, gasosas de Espanha e arroz da Coreia do Norte, vou rabiscando uns trocadilhos a ver se a raiva me não espuma todo. Raiva de quê, de quem? Ora, desta pandilha, súcia, cáfila, quadrilha, vara, tribo, seita, mòlhada, troika, comandita. De quem e do quê? Ora, deste bando, gang, conclave, conselho, grupelho, sínodo, conluio, rancho, sarrabulho, partido.
Que me adiantará não ceder a ser súcubo ante o Primeiro Íncubo? Como poderei eu (mais 199 mil 999) depor o Possidónio-Mor cujo comboio eléctrico em pequenino já era um têgêvê a pilhas, cujos aviões de papel ardiam a gasolina de isqueiro, cujas gavetas do bacalhau eram forradas a jornalistas, cujo triciclo era mono como no circo e como agora?
O que não posso, não me adianta. Mas adianto, à mesma, o que posso: posso muito rir-me muito. Do poeta do milhão de votos. Dos manos Portas. Do coiso da Madeira. Da bagunça bancária. Da tropa. Da coisa de Felgueiras. Da reforma que não vou ter quando não chegar a velho. Do Lobo Antunes a fazer de Nobel e do Nobel a fazer de Saramago. Dos lobos do rugby e dos cordeiros da Páscoa. E de mim e dos outros 199 mil 999, já agora, que também somos gente.
(Que ruído foi este na porta? É a mulher que chega. Ela assim para mim: “Então sempre vens comigo ao Lídle?” E eu assim para ela: “Olha, amor, inventei agora uma muita gira sobre a cotação na bolsa.”)

(Re)Visões Sumárias do Século Anterior


Souto, Casa, manhã de 20 de Março de 2009





Universidade de Coimbra.
Ovelhas pastam os interstícios das pedras.

Rua Guerra Junqueiro.
Deus posto, Deus morto.

Panteão Nacional.
Os ossos das estrelas por terra.

1974.
Demo c’a CIA.

Tejo.
Pátria cacilheira.

Mondego.
Nome de cão.

JP II.
O pato de Varsóvia.

António.
Variações da SIDA.

José.
Afonso.

Ferida.
Pus canta amarelo.

Republicana.
Folha de guarda.

Braga.
Seus arcebícepes.

Rádio.
Tíbia difusão nacional ao cúbito.

Salazar e as criancinhas.
PIDEofilia.

I República.
E última.

Para mais garantido efeito de efectivo recebimento, clicar na imagem

19/03/2009

Sem Trégua






São quatro anjos na oficina do tempo, irrepetíveis
um dois três quatro.
Forjam a espada e o i-relógio. Fora isso, têm jardins,
crianças, cigarros, regatos, sombras de grandes panos de arvoredo.
Um deles volta a não estar morto, mexe-se na luz encarnada,
não enjeita
o fogo dançarino em suas espáduas poderosas, dão-lhe água
e uma toalha removedora de lamas,
folhas dos entretant’outonos,
bolçado o íntimo paúl ao crepúsculo.
O sol é rápido, expedidor de febris espadas.
Eles sabem que é tudo uma questão de in-tempo.
Fantasiam quase nada.
Os mesmos corpos
um dois três quatro
os celebram
jovens como nunca
mais.
De outro, ouro flameja em penhascosa peanha,
altar de si mesmo, subida a direita escarpa do ventre,
as asas musculadas,
as pontas voadoras afinadas em dedos falantes.
Entoa lanços que o céu sobe a tomar seus.
Um ainda é guerreiro de não matar,
a mão esquerda toda escritora
de riscos de que as cabeças são feitas,
como as estrelas são
e são todas as coisas,
as materiais até.
O quarto é todo silêncio,
o que lhe agrava a música.

Quatro anjos nunca menos do que homens,
quatro homens incondicionais na i-rendição
do tempo.

Souto, Casa, tarde de 19 de Março de 2009

Smokey

Ao Ar de Duas Manhãs

Pombal, Ripa Café, manhã de 16,
e Café Esquina, 13hoo de 17 de Março de 2009




I

É uma manhã gloriosa – ou então, é só uma manhã de mercado semanal mais, não importa.
Sonhei que ouvia sem ver o raspar do aparo em papel de branca rugosidade de linho. Atrás, na estante escura, livros de egiptologia e de numismática, que não possuo. Também um volume espesso sobre a obra litográfica de Théo Ducassé, que não conheço. Às voltas com fragmentos disto até acordar numa espécie de limbo ou de nimbo.
Então a alba foi vindo, veio partir – e eu entendi a linha de azul-água que diluía a cerração da hora, aceitei sem regatear o carácter de feira franca do momento, devo ter sido feliz enquanto me enfiava nas calças, alheio aos paradoxos gentis e carburantes da ideia que desperta sem acordar, não ainda de todo.
Subi a mão ao armário da cozinha, resgatei uma chávena azul e preenchi-a de café feito de fresco. As bolachas absorveram a beberagem, calafetando o estômago de paz e reconquista, após o que fumei na varanda um cigarro olímpico. Já havia rolas no cedro, havia já pardais pirilampando de castanho a manhã e a glória.
Longe, subindo como uma dedada de lama, a serra bloqueava o horizonte a nascente. Acho que ainda bloqueia, mas de modo mais consistente, sem o fumo azulado que a luz vaporiza a tal hora.



II

O ar todo branco e amarelo, todo drapejado de bandeiras azuis e verdes, de escarlates reclamos que hão-de ser os rubis da noite. Acaba a manhã, começa o país a que chamamos tarde. Ressoa rítmica a asma benigna da orla do mar, ainda que só na imaginação acústica dos exilados ex-marinhos. Vem hoje lavada a água que o rio é, faz bem recebê-la ao alto da ponte, entre gente passageira como o que há e é.
De um pátio de infantário revoam vozitas em humana capoeira: agudas interjeições que atiram nomes de bibe, gritinhos de prazer e susto, crianças profissionais aprendendo a perda e o sal da vida.
À janela do consultório, o estomatólogo boceja. Tem uma cara viciada no néon de aproximação, a boca é muito branca, muito areada de novocaína, muito trincadora dos mamilos da recepcionista.
Estamos todos no ar.

18/03/2009

Adeus, Guiné - pelo incomparável Mário Ferreira

Uma Antitabágica Fabulástica mais para Fascistas Higiénicos

Em recintos fechados de formigas não se fuma cigarras.

Ex-acento agudo em Luis, Claudio, inicio e Junior: talvez já seja do brasilês acordossocrático

Esta e muitas outras maravilhas da nossa natureza aqui.

ai a p. da nossa v.

o proença da ugêtê a pedir a maioria absoluta
o coiso da covilhã a desvalorizar a minoria absoluta que saiu às ruas
o pastor alemão a ladrar que o preservativo faz mal à sida

ai a puta da nossa vida



portugal, 18 março de 2009

Olhares de J. e de J.

Neste sítio, dois belíssimos fotógrafos, José G. Lorena e Jorge Alfar:

www.olhares.com/jlorena
www.olhares.com/jorgealfar

17/03/2009

Fadiga e repouso

Souto, Casa, noite de 17 de Março de 2009



Murmura o bosque breve perto de casa.
Cordeiros fatigados, bebemos água morna de pé.
As dores descansam como meninas de salão.
As aves já dormem, dorme já o Sol de amanhã.


Deriva

Souto, Casa, manhã de 17 de Março de 2008



Adormecemos, somos de novo fetos astronautas
à deriva no regaço da mãe-noite, essa princesa
cheia de jóias frias
.

Habitação e Povoamento de Pombal (13)

13

Noite de 22 de Fevereiro de 2009

Tudo passa, a começar pelo futuro.
Saí a ver o último ouro, que ao castelo subira a dourar o crepúsculo.
Grande beleza triste, a do domingo plenilunando as ruas vazias.
Senhoras velhas empalhavam o ar alto das mansardas, como periquitos enrugados solfejando um final mais.
Pelo fim da manhã, vira um par de gémeos, dois meninos vezes três anos. Pelo da tarde, duas meninas de cinco anos: duas gotas de água, cinco anos a da mão esquerda, cinco a da direita.
Sou feliz no domingo que acaba.
Uma vez na vida, um domingo na vida.
Ouço fios de clarinete, numa harmonia de feira mansa, em pleno silêncio.
Torno pela direita a seguir ao viaduto.
Muitos homens sós – um só de cada vez.
Houve futebol, desarmaram a tenda, recolhem aos balcões-de-pasto os merendadores, chiam os fritos em cubículos exaustos, a humidade doméstica dos olhares embolorece as frases, as sentenciosas locuções.

16/03/2009

CARTA AO SOL MAS TAMBÉM A MARIA RICARDO DE BORGONHA SEIXO, UMA QUINTA-FEIRA

Gaby Deslys circa 1915,
Autor desconhecido



Café Paris, Viseu, tarde 24 de Abril de 2008



Escrevo-vos, Senhora, de um café de putas.
É um sítio sossegado, depende de nós e da hora, que muito nos desassossegamos uns à outra, nós à hora.
Nós à nora, também.
O mundo explode em silêncio no mesmo sítio, não há, Senhora, maneira de entender isto, um calhau no espaço, um calhau azul afinal minúsculo no espaço sem mensidão.
A esta hora, não há putas.
Há uma praça em frente, o Sol arde de sua normal febre, nenhum vento desaquieta o arvoredo disponível.
Escrevo-vos para nada, Senhora, como para nada escreve sempre quem escreve.
O tempo assa leitões humanos, sou um dos que rodam sobre brasas.
Tenho um vento de ínsuas dando em laranjeiras, tenho isso no coração, nasci de janelas abertas, o frio entra e toma senhorio.
Tenho uma língua que me usa, Senhora.
O Sol é a coisa mais alta que acontece.
É-me uma Borgonha olhar o Sol e senti-lo na armadura mole – o corpo.
Sou um corpo, não o tenho.
Ele disporá, Senhora, ele disporá.
De nossa mesma memória desataremos diásporas – e esporras – e esporas.
Tudo nos doerá até que a morte nos perdoe tanta insensatez, tanta língua.
Inquieto, não notícias dando, minha Senhora.
Os telefonemas nem sempre obrigam nem sempre abrigam.
É um custo altíssimo, viver.
E a morte fica-nos, Senhora, a dever.

Gerações ao Vento


Castelões
Nascente da Serra do Caramulo
25 de Janeiro de 2007




Viseu, tarde 19 de Julho de 2008



1

Todas as gerações são uma só geração
só.
Assim um homem é todos os homens
em toda a geração.
Todas as mulheres e todos os homens andam
num homem: e por ele
falam todas as línguas
num verso
único e só e total.

2

As muitas imagens únicas do mundo
aclaram a noite da fala.
A fala é esse vento das árvores
pulmonares.

Um cauteleiro é tudo
de quanto precisamos para
gerar uma humanidade
só.

Urdir uma humanidade é
como urdir uma rosa
dos ventos.

Habitação e Povoamento de Pombal (11)

11

Noite de 13 de Fevereiro de 2009


DEPOIS A NOITE

É o sítio capaz dos desvalidos.
Flanela que a oftalmologia não favorece.
Território dos discos pe(r)didos.
Mãe q’engorda, pai q’emagrece.

Sítio de imos lobos. Raposas poucas
favorecem os faróis entelógicos.
No mais, as coisas são loucas.
Também os loucos estão e são lógicos.

Vamos ao Tó-Mário. Dinheiro,
enfim, é coisa pouca, no Canadá.
Antes te valera ser paneleiro.
Agora dá, ora não dá, Abrunheiro.

O corpo do menino é todo o menino.
Ele já favorece o sal, a areia e o sol.
O menino é uma das flores continentes
derredor. Não há que chatear a Natureza.

Os animais praticam uma elegância pobre:
sobrevivência se chama a elegância pobre
dos animais. Os animais são a elegância pobre
dos bichos. E os bichos são a elegância pobre,

meninos.


Dentro do idioma, a pessoa tem condições para resistir. Pode não ter mais nada. Pode só ter o idioma, só. Tendo idioma, tem resistência: é riquíssima.
É claro que dores excessivas, por excessivas, podem exceder o idioma: a morte de algum filho. Se Deus nos não livrar disso, por inExistência, então que as Estrelas. É claro.
Noite agora em Pombal. Li. Vi. Ouvi. Não conheço, mas reconheço.

Tempo das palavras novas, sim:



Céspides
Holograízes
Choupalimas
Favoríceas
Delumbantes
Temorquídeas
Semelumbrantes
Morrímeas
.

15/03/2009

Bosso & Basso, por ser domingo

Não comeces a voltar mais cedo para casa não



Habitação e Povoamento de Pombal (9 e 10)

9

Manhã de 12 de Fevereiro de 2009

Hoje: 25 anos exactos sobre a morte física de um gigante – Julio Cortázar: 1914-1984. Qual 1984?! 2009 e ss., isso sim.

10

Fim da manhã e tarde de 13 de Fevereiro de 2009

A minha S. faz hoje anos.

Retomo, para concluí-la, a leitura de Europa, de Vasco da Gama Fernandes, edição do Autor, Leiria, 1953. Entre as páginas do volume, redescubro uma nota manuscrita:



“Confio no ensino dos campos.”
(Antero de Figueiredo, Jornadas em Portugal, 2ª ed. (1918), a pp. 52)



O universo parece-me eminentemente rural. O meu, digo. O teu e os vossos, não sei. Versos e universos, ele há muitos. Na manhã de domingo, quantos domingos e quantas manhãs. A minha e o meu nasceram frescos, banhados a ouro pelo lado casquinha das árvores. O ar, grande aquário. Fui um peixe vermelho e negro, cedo na pastelaria, entre comedores de farinha cozida e leitores de jornais desportivos.

Na manhã aniversária da minha S., sol e céu são uma bênção unificada. A luz alaranjeira-se toda. Há um grande ar lavado para respirar lavadamente. Vou a pé à cidade ter com ela. Um presente, um almoço, depois a tarde, a noite depois. (Antes de almoço, compro-lhe, na Livraria K de Livro, Robert Doisneau, edição fotográfica da Taschen. Florista encerrada mais cedo, impossível levar-lhe uma rosa amarela. Alegria: ao desbarato, um livro profusamente ilustrado sobre a Buenos Aires de Borges e um Roteiro de/sobre Italo Calvino: leituras seguintes em linha, de que me/vos darei conta, talvez.)

À espera de S. para almoçar. Nas escadas rolantes do centro comercial (chama-se, em vernáculo, PombalShopping), vejo um ser feminino de boa envergadura, calças de tinta vermelha, cabeleira de tinta preta. Ancas muito simétricas, de um magnetismo enérgico. Cabelo comprido e liso, cerceado ao alto por um risco branco-nácar de salão. Uma comedora de fatias de quíche, saladas em pires fácetefúde. Agradável à vista, que não ao tacto, na hora solar.

Depois de almoço (ela bacalhoou à Gomes de Sá; eu fui, e bem, pela raia grelhada), o Sol continua a ser a notícia mais esclarecida do dia. Breve volta pelas papelarias em busca de cartuchos de tinta permanente de cor alternativa a preto e azul. Não havia. O desejo era (ainda é) escrever com uma tinta que desse este desmesurado branco todo, que sufraga a existência e a hora, que exalta a eternidade rápida da beleza do mundo. Mas já leio o Calvino. Vasco da Gama Fernandes esperará um pouco mais.

No fundo como à superfície, trata-se(-me) de aproveitar a vida para escrevê-la e de escrever a vida para vivê-la.
Não pretendo dizer mais nem menos do que isto.

Na tarde soalheira, o Adriano do Talho idem e o Amadeu do Mercadinho (agora também com loja anexa para abastecimento de produtos para animais, onde era antigamente o Restaurante Verde Gaio de outra memória, servido à mesa pelo mui benfiquista senhor Abel) conversam soalheiramente. Vejo-os à distância, não me meto agora com eles, que vim fumar à rua e depressa fumo, já que quase completei a leitura deliciada e séria de Italo Calvino – um Roteiro, edição de 1996 da Editorial Teorema – o Roteiro propriamente dito é de Mario Barenghi e Bruno Falcetto; a Bibliografia é de José Colaço Barreiros. (Já agora, como a Teorema foi absorvida por um paramonopólio editorial luso, o ex-distribuidor da editorial anda pelas livrarias da amargura a recolher dez-réis-de-mel-coado em sobressaldos de gigantes como Calvino e Norman McLean, entre outros: Palavra do Senhor, Graças a Deus.) Depois a noite.

Bom dia, Daniela A. e Sofia A.


Brynolf Wennerberg
In der Heimat

14/03/2009

Destino dos antigos telefones (obrigado, Gracita)


(clicar na imagem para melhor apreciação)

Ella por ela


Não alinho em comparações bacocas.
Cada um(a) é o que é e máinada.
Por isso, Ella por ela, não conheço ninguém como Ella.
Aqui num tema da minha dupla favorita de criadores para Ella: Rodgers & Hart.

Ente, Cedo

© Arno Rafael Mikkinen
Foster's Pond (2000)



Souto, Casa, manhã de 14 de Março de 2009




A alba apareceu vertebrada pela árvore sem folhas.
O ar, todo de gaze, fumo da terra respiratória.
Os vizinhos levantam-se cedo, vozeiam a casa do lado.
O mundo volta à cabeça por partes, junta-se na língua.
Os sonhos acabam, negativos cortados juncando as mantas.

A pessoa desce das funduras altas para orar a hora.
Os objectos da casa ressurgem, sinais da acumulação.
Não há esquecimento, mas transformação.
Memória das rosas tombadas ao tampo da mesa da cozinha:
as crianças adormecidas que esperavam o pai.

Respiração da mãe, adormecida também, longe.
A espiral torneou-se, peixe cosmológico, ave estelar.
O tempo coleccionando saquinhos de pó, de giz, de unhas.
A alba ressurgindo como matriz da eterna vida.
Vinte anos, cem anos, uma hora: tudo é vivo.

Jogamos as pedrinhas nas mãos minerais.
Gaze nós também, vozes como as do lado, dentro.
Acorda-se para o trabalho, para respirar a espera das folhas.
Crianças varam canaviais chamadas pela orla do mundo.
E as aves riscam o grande papel do céu – e o mundo é.



Habitação e Povoamento de Pombal (8)

8


Entardenoitecer de 11 de Fevereiro de 2009


OFERENDA NENHUMA

Aos exércitos da noite assiste a impiedade.
Furtivos homens mínimos rescendem a bosque.
Sou já também uma sombra na cidade,
um mínimo furtivo ser dos que

existem por a pura contramão.
Toca a rebate o fim das merendas.
Recolhem a casa solidões em solidão.
A impiedade é, não há oferendas.



Posto isto, assimilo devagar a flor retórica de Cortesão a propósito do ulterior franciscanismo social-cristão do Eça dos últimos anos. Em paralelo, habito o Canadá novofrancês de XVI e XVII: Quebeque, Montreal e Trois-Rivières, principalmente.
Tardias figuras conjuram-me versos a cuja factura resisto: mais e mais prosaico, voltei a ler contra os dias muito adentro e afora. Não é já a tristeza, mas uma espécie de brandura banhomariana, um torpor que chego a confundir com uma tranquilidade.
Na madrugada, visão em casa de um documentário: The Bridge, a propósito de um ano (2004) de (24) suicídios (reais, realíssimos, humaníssimos, flagrantes) na Golden Gate Bridge, em S. Francisco, EUA. Filme de uma delicadeza cirúrgica e de uma contenção lírica absolutamente desarmante. Homens e mulheres à beira do desespero e da solução final: mergulhando na brevíssima glória do alívio. Os que ficaram deles e delas sem elas e sem eles. Os nomes, as idades, as doenças, os problemas – tanta humanidade em um só ano, em uma ponte só (e tão bonita, a porra da ponte inaugurada em 1937).
Finda a ponte, regressei ao Canadá da Nova França e quase não pensei mais naquelas pessoas voadoras, anjos pesados, traídos e levados pela gravidade fluente das águas.

Bom dia, Ruizito D.


© Elliott Erwitt

13/03/2009

O que Hoje Temos

Pombal, tarde de 11 e manhã de 12 de Março de 2009





Temos hoje para viver o dia.

A luz é clara como um caderno novo.
As pessoas estão em glória, mesmo que a não sintam.

Temos hoje para viver o dia.

Vi dois pinheiros, um cedro, outro pinheiro.
Resplandeciam. Reverberavam.
Airosos, aéreos, feitos de graça e louvor.
Azul mais azul por causa daquele verde.
Lavadores de almas, tais seres.
Agradeci-lhes com um aceno mental, passei.

Temos hoje para viver o dia.

Ao termo da ponte, tive pena do rio.
É de águas sujas.
Estas águas não sabem cantar.
Estas águas não podem cantar.
Todo o dia

(temos hoje para viver o dia)

tentam lavar-se mas não o alcançam.

Temos hoje para viver o dia.

Dá para trazer o casaco no braço, para receber a brisa
na cara barbeada de fresco, aspergida à palmada
de loção aromática, para cirandar pelos panos
de pedra guardada à sombra, para investigar
a glória trágica das pessoas que se vê passar pensando,
pensando muito
suas contas, seus rosários,
suas pontas, seus calvários.

Temos hoje para viver o dia.

Dois vidros azuis: naquele rosto branco poalhado de rosa e carmim.
Cabelo fino e farto, como uma palha muito madura e muito viva.
Ancas subidas como cabides, pés de robusta finura delicada.
Mãos longas atirando dedos, em torno de que faíscam anéis.
Alimentada a talos de alface e a polpa de cenoura,
é um animal bonito como um pinheiro, de que imita
a altura e a dignidade
azul mais azul.

Temos hoje para viver o dia.

Bom dia, Zé Nhel


John Singer Sargent
Rehearsal of the Pas de Loup Orchestra at the Cirque d'Hiver

12/03/2009

Fala o Ex-recluso

© Jennifer Gordon

Fonte Nova e Pombal,
manhã de 4 e tarde de 11 de Março de 2009


9h14

Não sei o que fiz da minha vida.
Sei o que não fiz da minha vida.

9h18

Está decidido: hoje vou cortar o cabelo.
Mas faço a barba na pensão.
Não suporto que mão alheia me traga lâmina à garganta: só tenho esta, não me cortarão o passado nela.
Nenhuma decisão corta o passado.
Uma lâmina, sim.
Não sei o que fiz do meu futuro, excepto que hoje vou cortar o cabelo.
Mas faço a barba na pensão.

9h27

Um gajo matar-se, não.
Não faz sentido.
A vida há-de encarregar-se de se tirar (d)a vida.
Está decidido: quando o subsídio pingar, arranco estes dois dentes, o de cima e o de baixo.
Tem de ser um dentista barato, mesmo que doa.
Há coisas gratuitas ainda, já não há coisas graciosas.

9h32

Às vezes penso (penso agora) que a minha vida poderia ter dado um barbeiro – ou um dentista.
Não deu.

9h48

Lembrei-me do brasileiro Badaró.
Não sei porquê.
Estava na prisão quando ele morreu.
Talvez me tenha lembrado do Badaró para me desculpar da lembrança da prisão.
Badaró poderia ter dado um bom Beckett.
Um bom Pinter, um razoável Sófocles, um Miller jeitoso, um Tennessee aceitável, até um Osborne bem esgalhado, um Ionesco porreiro.
Mas Badaró nunca deu um bom Badaró.
Isto acontece comigo, também.

9h51

Acho que hoje está a ser mais pensativo que de costume depois da prisão.
Na prisão, era como hoje: pensar tudo a toda a hora e sobre toda a folha.
Mas lá não escrevia, nunca escrevi.
Não sei por que nem para que o faço agora.
Penso: a infância terá mesmo de ser?
Ou assim: a infância terá mesmo de ser o pretexto de tanta veterania?
(Depois, agora, esqueço: uma formiga debate-se de costas no tampo da mesa da pastelaria.
Não a esmago, a vida dela há-de encarregar-se disso e dela.)

10h05

Carpintaria é um ofício bonito.
Aprendi na cana.
Não posso começar uma oficina, não tenho dinheiro para tanto.
Não há emprego cá fora.
Faz-me uma cara oficiosamente triste (mas é tristemente oficial) a menina da Reintegração.
O psicólogo faz uma cara igual à dela.
Às vezes, aparece um biscate.
Faço, pagam-me umas moedas, dá para tabaco e para uma sopa fora da pensão.
A minha especialidade é fazer gavetas à medida, tiro as partidas e meto as novas.
Faz-me jeito: aplico isso à minha vida de um dia por dia, agora que escrevo fora da gaveta.

10h08

Não hei-de morrer com 47 anos, hei-de?

10h12

Lembro-me de pensar assim na prisão: “Um dia isto arde tudo.”
Mas não.
Pelo contrário: hoje chove em toda a parte.
E hoje é um dia.

10h24

De cabelo menos comprido, sem barba e menos dois dentes – serei o mesmo homem?
Sim, mas com menos corpo.

12h08

Almoço na pensão.
Sopa de repolho, azeitonas, um papo-seco, quatro salsichas das pequenas com batata frita e ovo estrelado.
Um café de cafeteira em chávena média e um cálice pequeno de aguardente.
Não servem jantares nem pequeno-almoço.

14h14

Um ar de não sei quem: vi-me atravessado de camisas, o rosto cortado no reflexo da montra.
Preciso de não pensar tanto – ou de não deixar o rosto pensar.

15h09

Uma semana inteira mais quatro dias para vir o subsídio.
Dá para a pensão e para uma semana de cigarros.

16h00

Ciganada por todo o lado, por tudo quanto é sítio e mundo (imundo).
Metiam nojo lá dentro, metem nojo cá fora.

15h18

Coisas que não fiz na minha vida: pensar mais cedo, perceber mais cedo, não deixar que se tornasse tarde.
Coisa que fiz: mal, matando um gajo que me fez mal.

16h48

Pré-noite pior que a noite.
À noite, durmo, o comprimido da Reintegração ajuda, não sei o que faria de tanta noite e de tanta luz preta sem ele.
Mas a pré-noite é pior.
Quase nunca um convite para uma aguardente, dois dedos de conversa sobre bola.
Muita gente – e nenhuma gente, cá fora, quando escurece, quando parece que nunca mais há ser dia, como lá dentro.

19h35

A noite usa as casas para emitir sinais.
São sinais eléctricos.
Não são para mim, os sinais.
A luz não se me dirige.
Talvez eu saiba porquê, não por não saber o que fiz da minha vida, mas por saber o que não fiz dela.

20h48

Convidaram-me para um petisco de iscas na casa-de-pasto em frente à retrosaria do grego.
Aceitei.
No fim, fumei do tabaco deles.
Um chama-se Gregório e é representante de máquinas agrícolas, não é daqui mas é como se fosse, bate a zona há quinze anos ou mais.
O outro chama-se David e é um bocado manhoso, já andou na pintura da construção civil e a recolher fichas numa pista de carros-de-choque de feira em feira.
Também já esteve preso, mas tempo menor, coisa de nada, um ano e picos.
Está junto com uma Marília que faz limpezas.

5h13

Acordo sem retorno a esta hora.
Não sei porquê nem para quê.

Três Dias

6 de Julho de 2008

(Ambas as mãos sobre a mesa, nenhuma das duas escrevendo, vais ter de me ler a partir dos olhos ambos, que ao ar atiro como pombas de concurso de tiro, como estrelas de concurso de tiro.)

9 de Julho de 2008

A corola solar abre para baixo a descomunal flor do mundo.
Fora de brincadeiras, a vida parece-me um caso sério.
Passa a flor Maria do Rosário, mulher da flor senhor Edmundo.
Humano jardim colectivo, do berço ao necrotério.

12 de Março de 2009

Se hoje fizer sol, hoje não chove.
Oxalá que o faça de manhã.
Se fizer sol, Rimsky-Korsakov.
Se chover, então Chopin.




Bom dia, Iké-Kikas e Ca'litos



The Boyhood of Raleigh by Sir John Everett Millais, oil on canvas, 1870.

11/03/2009

As Quatro Estações

Foi há mais de trinta anos, caramba! A 5 de Novembro de 1977, vi o meu primeiro texto publicado. Chamava-se (e ainda se chama, enfim) As Quatro Estações. Saiu na página infantil de O Diário, um suplemento de artes (muito) juvenis coordenado por um tal Oriam, anagrama de Mário Castrim.
Recordo ainda, claro, a excitação de ver o nome no jornal, o milagre da caligrafia ter devindo letra impressa, essas coisas (ainda hoje) pueris.
O poema tinha de ser o que era e o que foi: uma coisa neo-realíssima, própria de quem tinha 13 anos e andava na escola, em Português, a estudar
Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes
.
Cá fica, para documento.




As Quatro Estações



Quando chegou a Primavera
transbordou vida nos campos e nos
olhos dos homens. Houve até quem
dormisse por entre madressilvas
congeminando formas de melhorar
a vida.

E no Verão, quando o sol ardente
lambeu os corpos e tornou mais
difícil o trabalho aos aldeões, os miúdos
assaltaram o rio, buscando
na frescura das águas aventura e
desporto.

Chegou o Outono. As folhas das árvores caem como
lágrimas que largam o que foi
a sua companhia. E a poesia dos homens
morre com o enterrar das enxadas
na terra de sempre.

Mas cai o Inverno, e não transborda agora
vida nos olhos dos homens, nem os garotos
procuram aventura. A chuva
encharca a terra e alaga a alma
aos homens. Afoga-se na taberna
o desejo de progresso.
Terras de sempre.



Daniel Santos Abrunheiro
(Pedrulha – Coimbra)

Paul Simon 1991 Tokyo 05/14 Proof

10/03/2009

Finge Comigo, que Eu Mostro-te uma Coisa

© Edward Steichen
The Flatiron
(1905)





Souto, Casa, tarde de 10 de Março de 2009





Pelas ruas seguimos implantando a república pessoal,
esta mon’anarquia a que pertencemos por hábito.
Não há tempo, por momentos pode não haver tempo.
Cerejas, palavras, paisagens cerceadas por esquinas
– tudo se emaranha mas tudo finge que não,
que não se emaranha e que se não sabe que sim.

Mas emaranha. A aranha que arranha, a carne exposta,
a loja que vende chapéus ainda, o sobretudo daquele homem,
a estupenda indiferença dos monumentos a nós,
o perambular das contabilidades republicanas de cada um,
o rapaz que dá lume à namorada na paragem do autocarro,
a aluída fábrica de artefactos de borracha, a cruz da farmácia,
a comida atirando lições de estratégia internacional,
os tijolos do Diabo no estaleiro de Deus.

Figuramos na galeria promíscua manequins descamisados.
As famílias assemelham-se como filarmónicas de barro miniatural
– e o sol propaga o amplo incêndio branco de março,
trabalhando as esquinas em prol da orientação dos cegos.

Ciclistas debandam da fábrica ao urro da sirene,
patos cisnam num tanque pútrido,
revoadas de panfletos de circo quebram o sorriso,
à varanda a Senhora Graça penteia-se,
um menino com rosto de leopardo caça um caracol
– tudo finge que não e todos, que sim.

A Robin a dar-lhe com o sol

Passageira do Eternistante


© Robert Mapplethorpe
Tulip
(1988)





Souto, Casa, tarde de 10 de Março de 2009





De ocidente um pano de pinheiros escurece a fresco o azul.
Um poste de alta-tensão faz de torre de menagem.
Há uma quietude solar que entorpece o coração.
Não há tristeza no semblante das árvores muito aquecidas.

Frutificam aves, as sombras muito puras da hora.
Ouço o ronronar dos camiões serventes do comércio & indústria.
O sangue da mão esquerda é de um pulsar arenoso.
Timbram bem os brilhos, os ruídos da porcelana aérea.

A roseira do vizinho, muito enxuta, pede uma esmola de água.
As unhas descascam-se sozinhas como peles de cobra.
Extirpa-se do tempo uma eternidade passageira.
Há um damasco por dentro das coisas do florilégio.

Todas as casas são ao mesmo tempo, como as coisas.
Dona Gervásia parte em a missão de testemunhar Jeová.
Leva consigo a perna quase-nada coxa e Jacinta,
que também nunca se casou nem casará.

Espreguiça-se Serafim, o assador de frangos.
Gosta de hermenêutica e gasta filatelia nas horas vagas.
É vaga esta mesma hora, a oriente do nosso quase-pensar.
Aproveita-se o momento, cuja doçura é de manta mole.

Ouço um piano eléctrico dentro da alma.
Recordadas gotas de água desenham frinchas de sótão.
Uma paz química enobrece a metafísica.
Eléctricos rios pianam tarde ao longo longe.

Corusca um par de fendidos olhos felinos.
Mulher que usa a boca como um álacre trapo de lacre.
Mexe-se um pouco um ramo de cedro.
A rola é toda luz, confere o poema e vai, passageira.

Bruckner com Christus

OS OBJECTOS PARECEM-NOS MUITOS e UM LEVANTAMENTO


© Sandra Bernardo
Pudor - 1
Pombal, 26 de Fevereiro de 2009

Fonte Nova, manhã de 10 de Março de 2009

I. Os Objectos Parecem-nos Muitos






Os objectos parecem-nos muitos mas são poucos
porque cada vez menos visitamos os muitos
e mais os poucos que nos deixam viver.
Os muitos deixam-nos a viver.

A chávena o pente a retrete o cinzeiro.
A cadeira a cama o rádio a janela.
A árvore a parede o sabão o fósforo.
A caixa o lápis o livro a vassoura.

O dia diz-nos bom-dia e põe-se a crescer
como um fruto controlado pelo armazém
onde a noite faz de capataz plenipotenciário
onde a varanda deita para o horto de lixos.

A caixa de fósforos como possível metáfora disto tudo.
O fogo futuro dentro da caixa de tudo isto.
Duas aberturas ao livre-arbítrio.
O livro a mesma coisa nisto tudo isto.

Um pouco de atenção a mais e é o horror.
É o horror das rodinhas dentadas rotinas.
A cidade esparramada como uma raia de cal.
As empregaditas guelreando poemas e esfregonas.

Homens já velhos ainda ou já de sapatilhas.
Canários de um mutismo amarelo-prisão.
Em as casas as cadeiras as conchas de alumínio.
As avós de estanho mumificadas de súbito como pássaros.

Um repente de décadas coadas pelo ralo.
O lavatório ganhando estrias de cera manual.
A insurreição da erva nos interstícios da fala.
A árvore a chávena a caixa a cadeira o horror.



II. Um Levantamento

Um levantamento súbito de pássaros deslocou-me a atenção para outro dos flancos da manhã nacional, a um canto inócuo do País. Floresciam betões para poente, ao alto das bouças que os camionistas da pedreira atormentam noite e dia e epicamente. Empregaditos bancários (todos iguais como pardais) vieram tomar a bica de mínimos espetados no ar-condicionado. Distraí-me logo que pude. Pensei no mês de Outubro, pensei na Bélgica, pensei no silêncio da pétala seca quando cai para o naperon. Desdistraí-me e pus-me a ver tudo o que podia, na condição de não ser para dentro. Um rapaz quase mongol equilibrava a chapadas de banha farpas do canavial do cabelo junto a um balcão de bolos e queijos. Uma mulher comia azeitonas retalhadas num transe budista melhorado pela proximidade do fontanário. Uma camisola azul passava sem corpo rumo às urgências, sem especificar quais urgências nem de quê. Um sinal de haver bifanas tinha acento grave no verbo. Da montra dos electrodomésticos, a Lia Gama fazia de grande actriz numa eira perto de si. Bolhas de asfalto hematomavam o piso da estrada do Norte. Um comboio riscou a pauta em peregrinação semigrave. Cheirava a café-com-leite e a torradas-com-margarina de além da porta de acesso privado da biblioteca municipal. O rio seguia chapeando a estanho uma veia de terra ideal para rios e para estanhos. Por volta das onze e um quarto, já cheirava a assadura na churrasqueira. Distraí-me outra vez para concluir que somos todos apenas subúrbios da cabeça, essa bouça alta de onde, de facto e de súbito, se levantam os pássaros.

09/03/2009

Repetição

© Emmet Gowin
Edith and Ruth
Danville, Virginia (1966)





Souto, Casa, noite de 9 de Março de 2009



A repetição das ovelhas na vida
Como a dos carneiros na insónia
As pessoas galeriadas tais quadros ex-vivos
Ex-votos de seus rostos mesmos
E o pudor da vida contra a sensata morte
E andar nisto ao mesmo dizendo-o diferente
A sorte a morte o destino o tino a correnteza
Depois vem o ano a gente dá-lhe um nome um número
A gente é feliz se faz sol perto da capela
Onde o homem do peixe diz alto como um sino
Ligado a Deus por bateria e preços a giz
Esbugalhados os olhos vítreos dos frutos do mar
Os frutos do mar comedores de cabogramas
Infâncias e senectudes e latas e sons pressurizados
Tudo num tempo de bocas firmes e desoladas
Tremem um pouco as mãos na acepção certa
Tinem os pires de porcelana nas têmporas
A cabeça é a rosa a que sobe a chuva de maio
Muita gente se pudesse evitaria o nó dos Francos
Congestão de tráfego em direcção à do Brasil
À dos Estados Unidos da América
Em Celorico da Beira a esta hora fazem sopa
Em Setúbal um homem está desesperado mas finge
Em Lagos as coxas morenas da casada abrem-se ao rapaz
Vão os animais humanos frequentando a duração
Lá em cima lá em baixo as estrelas gaseiam espirais
Fragmenta-se o dente na dura palavra que o move
Os mitos são baratos são muito acessíveis
Inez de Castro em software à escolha
Com Pedro ou sem Pedro e Dom Afonso a fazer de Darth Vader
É tudo tão fácil cada vez mais fácil com a idade
A gente vê o tabuleiro sem pedras já sabe como acaba o jogo
Dois ou três telefonemas combinam a esplanada do rio
Num sábado fingimos como se tudo fosse Setúbal
Ovelhas e carneiros onde aquele homem que finge por amor
Aquele homem que finge por amor de quem ama
A esta hora numa sala tomada pela noite ouve-se Bruckner
A esta hora é possível ouvir um ribeiro dormir nele
Tantos barcos voam no fundo do mar cheios de madeixas
Os peixes devoram os cabogramas não enviados
Ondulam numa pessoa tantas austrálias tantas astúrias
À boca sobe Celorico da Beira desce o ralho mais azedo
Não estamos aqui muito tempo não nos dói nada
Nos coliseus juntam-se as ovelhas os carneiros os holofotes
Celebra-se algures a comunhão de uma ave feminina
E Bruckner acaba amanhã é outro homem mesmo em Lagos


Raça que deu novos mundos ao Mundo para maior glória pátria, vá lá voilá

Chegadas e Partidas (e Estadas)

© Tina Modotti
Roses
(1925)





Fonte Nova, manhã de 9 de Março de 2009




I

Do lado da manhã chegam as mulheres amarelas
de crianças loiras naturais pela mão branca.
Adquirem bolos e hábitos, alguns torpes, outros
claros como clarins, as faces vermelhas como galos.

Há quantos anos me sentei para esperá-las?
Há quantos anos me sentei para desesperá-las?
Estou sentado do lado onde o pão envelhece
– e sou feliz, um pouco trágico também, mas

agora menos.



II

Nada me custa ver daqui um comboio ligando árvores.
É do tempo dos êmbolos a vapor, nasci há muito mais
que apenas isto.
Estou sentado noutra idade talvez minha também,
ainda.
Porque não conheço pessoas, crio nomes.
Passo a manhã a criar nomes em cadernos cegos.

Mulher vestida de castanhos calcula o dia, as moedas.
Só tomou café, mas pensa frangos, marido, filhos.
Parece um pardal de óculos na cabeça,
um pardal imitador de apresentadoras de têvê.

Estou sentado do lado onde as águas aplaudem a terra.
Nada me custa receber o frio vegetal das sombras.
Sou o homem que se perdeu na serra, no futuro:
o homem cujos ossos ligam genealogias a fragas.

Nada ligar me custa.



III

Chego a um ponto de desembarque.
A gare é varrida pelo vento mais que pela mulher de bata.
Voz altifalada diz Lisboa, diz Vila Franca das Naves.
Por mim, diria Southampton, diria Marseille, mas não
diz.
Venho coleccionar pensões e mulheres amarelas e corredores pluviais.
Perto, o rio que me deu heptassílabos, um dia frio
que já lá vai.
A luz bate-me bem na cara, desaba-me o casaco,
empurra-me pela frente e pela fronte, isto é parecido
com a felicidade até doer.
Passo o Astória, o Joaquim de Aguiar, a Couraça, a Torre,
o Botânico, o Seminário, a de Moçambique,
o S. João Alto, a Serra do Senhor, chego ao Corvo.
O Corvo
diz Marseille,
diz Southampton.



IV

Sou a máquina de enviar rosas.
Flúem no desconhecido éter, enviadas.
Tenho um posto de recepção solar.
Nunca desisto de traficar cifras, mensagens, imagens,
rosas recebidas e enviadas,
chegadas e partidas.

Canzoada Assaltante