28/02/2009

Narração por causa de Dália Mira Graça Praia

Souto, Casa, tarde de 28 de Fevereiro de 2009
(reescrita sobre esboço de Viseu, noite de 2 de Agosto de 2008)

Não posso precisar o ano.
Talvez tenha sido todos os anos – estes que se volveram aqueles.
Todos menos este em que finalmente escrevo mais por causa dela que para ela, ela sendo, ou tendo sido, Dália Mira Graça Praia.
Mulher não minha mas da minha idade, Dália Mira Graça Praia não precisou nunca de convocar os pássaros brancos à praia para que se enchesse a praia de pássaros ante ela, branca, Dália Mira Graça Praia.
Estudiosa, não grande de corpo, os pés pequenos quase de mais até, foi mulher de si mesma mas nem sempre – embora nunca, senão à passagem, de outros homens, que não fui nunca, e de outras mulheres, que nunca pude ser.
Ainda a vejo, agora que não é senão criada de sua mesma senhoria, isto é e digo: memória de memória, portanto esquecimento.
Ela frequentava cafés de província a horas de homens: as mais nocturnas horas como os homens mais nocturnos, quando a eternidade de uma motorizada risca a sulfato uma rifa de sucedâneos de chocolate espanhóis, no nosso Portugal.
Muito gostava ela de entristecer, e quase triste deveras ser, em cafés de província nas noites de inverno português portuguesas.
Dália Praia chegava sempre de lado como os bandarilheiros, vinda do sul sempre, a norte timoneiro de seu Opel Manta, modelo castanho 850 ou assim.
Estacionava, tilintava a prata dura do chaveiro múltiplo, coçava uma virilha desengonçada e dava entrada no café com bilhar da aldeia mais desértica do mundo, sobretudo por causa das mulheres à capela e dos homens ao bilhar.
Tomava um porto ou dois, tossia concordâncias com o futebol da televisão, arriscava na máquina de brindes uma moeda de braço quebrado, falhava, voltava ao balcão, falava cada vez menos e ouvia cada vez mais.
O mais era ouvir – como hoje o sei e faço e vo-lo peço.
Fui muito acrescentado, a mim mesmo adido, do que me contou Dália Mira Graça Praia das andálianças suas, dela, Dália.
Um olor a espetadas de enchidos provinha sempre das traseiras, a ponto de o sentir no exacto ponto, agora, que ante vós a recordo e ao que me contava, as traseiras onde a memória é contemporânea das grades e dos matraquilhos – e da fala dela.
Reuniu-me, só para mim, dichotes únicos, úricos e serradúricos de reformado de tasca, onde o adágio arranjava sempre maneira de facturar sentido, onde o anexim vigorava com aparato de apotegma e vigor de cobra-de-água dentro de água, onde a impoluta masculinidade dela era toda Dália – e Mira e Graça e Praia, p’ra minha adição.
Se falo dela por jeito pretérito, logo imperfeito, não é por mania, ou por não outra mania que a de narrador: desapareceu devidamente como devia, morta talvez ou improvavelmente viva numa dessas venezuelas que luxemburgam de todo quem nada passou a ser na aldeia.
Só muito depois soube que era empregada de limpeza numa escola preparatória, não sei qual, como não sei precisar o ano, talvez todos os anos, todas as escolas, as praias todas.

Isto da Felicidade

Souto, Casa, tarde de 28 de Fevereiro de 2009


Isto da felicidade / parece-me / há-de ser
Assim como a distracção
Sendo a distracção uma arte xávega
Que / como todas as artes / vira as costas ao mar
Para ser mais atlântica ainda

Isto da felicidade é uma chávena de café
Perante o estendal crepitante da chuva
Perto da mão um policial bem esgalhado
Uma barra de chocolate / um perfume de eucalipto

Nada me concorre para a felicidade o Canal do Panamá
Tenho muito pena mas nunca o passei / nunca o passarei
Vingo-me com Albino Forjaz de Sampaio e Adriano Moreira
Este quando era ministro do Outro da outra-senhora
Aquele quando parece ter sido corno ou assim

Sei algumas datas / algumas páginas / viver não sei
À medida do que se chama viver bem / bem assente
Não sei / Sei que tenho dias / como os tem toda a gente
Isto da felicidade / parece-me que / ah já sei

Isto da Luva

Souto, Casa, tarde de 28 de Fevereiro de 2009

Isto de viver tem pouco que se lhe diga
Isto de morrer tem quase nada de que se fale
Aqui está-se calado
Canta-se ali uma cantiga
E as coisas como aves vão ao vento / é o que vale
Esse invisível levador de coisas antes trazidas
Como as mortes / as coisas / e / as vidas

Isto de viver é quase sempre apenas estar vivo
Isto de viver é quase sempre estar apenas vivo
Morrer não é conversa que se tenha a conversar
Sente-se é certo a aura / a forte possibilidade de acabar
Mas não deve sair dos cinemas / p’ra dentro dos poemas

Eu tenho pela vida o respeito que se deve ter ante velhinhos
E ante crianças também / credoras afinal do respeito mor
Que vivos e mortos / miúdos e graúdos / cobram ao devedor
Que a tanto me montam fraldas quanto pergaminhos

De modo que o sábado trouxe chuva / vai a tarde fria
Serve-me isto de viver qual uma luva / à manual melancolia

Em Casa, com Dulce

Foto: Buarcos, 24 de Outubro de 2008




Souto, Casa, manhã de 28 de Fevereiro de 2009


Do sono somos devolvidos à terra para que maciças flores
sejamos nos canteiros de pedra do mundo que vigia o dia.
É uma pertença, marcar as casas, os rastos de caracol, dores
que as pessoas deixam de si por enfiteuse ou almotaçaria.

Quanta beleza concorria aos coretos de chumbo dos verões,
minha Dulce, quando noivávamos de nós mesmos a vida!
Hoje o mais é que nos aborrecemos aos serões
enquanto esperamos cheguem o Carlos e a Margarida.

Vamo-nos deitar ao mar de flanela da comum cama,
cada um seu ósseo barco navega a não solto sono.
Devemos naufragar sempre um pouco mais cada outono,
maciças flores não flutuantes, peixes sem escama.

Assim seja ainda quando acordarmos, porém, ao mundo,
que sensato nos cerceia flibusteiras desideratações.
Da chuva temamos só e sós as álgidas insolações,
que do sol a pique afundaremos, ó Dulce, um sono a fundo.

Na Cidade Diagonal

© Edward Steichen
Heavy Roses (1914)





Souto, Casa, manhã de 28 de Fevereiro de 2009

Homens gabardinam como verticais apeados pássaros de cinza
por as avenidas fustigadas de ríspidos ventos quase marinhos.
A cidade é inclemente: é uma intempérie de pedra e gerações.
Nas casas de sacada alta, mulheres fulminam flores cáusticas,
pelas divisões fumiga o limão fervido em oxidadas caçarolas.

Estou daqui a ver tudo por dentro, é o trabalho a que me dou,
à falta de outra lotaria e de outro cinema.
Cabisbaixam-se as magérrimas árvores municipais, ao longo.
Das confeitarias, surde a intimidade do pão doce alaranjado
de ocultas mãos torcidas e rumorosas como búzios de segredo.

Quatro camisas muito vermelhas irmanam um varandim, de
que pende um olhar de criança doente além-vidraça. Nunca é
hoje, na cidade diagonal da visão. Brevíssimas epifanias rondam
os videntes cegos que nem acordeão tocam nem cão ladeiam.
E as rosas pesam como punhos de basalto, sobre uma renda calada.

O Novo Dia

© Joel Meyerowitz
Morning Mist
Tuscany, 2002




Souto, Casa, manhã de 28 de Fevereiro de 2009

O novo dia parece-me uma praia atirada de repente ao ar.
No novo dia é que posso ser antigo, parece-me tanto isso.
Ali as árvores instituindo estandartes, ali os cães humanizando
os caminhos, além as mulheres-da-erva humanizando as vacas,
mais além a minha vida afixada às janelas como escritos
de arrendamento para jovens casais empregados na região.

Por sobre uma mesa recordada, duas canecas de esquecido café,
meia-dúzia de lápis apontando os cosmos possíveis, um cinzeiro,
o retrato de uma ida ao pinhal litoral a comer pimentos e laranjas,
ao fundo o mar de repente antigo como um dia muito novo,
a suposição de isto ser assim-mesmo-assim nas outras vidas
entretanto antigas de repente como o mar e o retrato a lápis.

A boca no novo dia sabe a café e a perdão, à costa da sala dão
os despojos de antigas piratarias, sobre a varanda dá-se um fulgor
de iminentes caravelas, vai-se a ver e são só camiões com areia, mas
não faz mal porque a manhã é antiga e cada um de nós é de novo.
Golpes de água ensinam a exposição e o recolhimento, um fruto
parece-me uma jóia de catálogo no negócio do novo dia antigo.

Quando era menino, acontecia-me o futuro deste novo dia, eu
parava de levitar e sucedia-me a evidência do antiguecer, breve,
além agora aquém, nunca a vida se me fez tão tarde como quando
era menino, se hoje penso nisso é porque finalmente posso
indicar na rua (conheço a região, os negócios) casas para arrendar
a antigos casais desempregados como marinheiros de mar algum.

Isto não tem mal, é apenas assim-mesmo-assim, na volta do lar
as esquinas afiadas como lápis possíveis, recordações ulteriores
convocando meninos que bebem café e pedem perdão não
sabem do quê ainda, nisto os piratas irrompem pelos cortinados
das árvores e atiram durindanas de areia e frutos-jóias e retratos
recordados que, de tão antigos, me parecem tanto o mar de repente.


27/02/2009

Para os interessados na História do Municipalismo Português

Qual foi, afinal, a contestada tese de Herculano sobre as origens do municipalismo português?
Este artigo não é propriamente para dar resposta a esta questão, mas dá-lha. Gostei de o ler.

Em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2232.pdf

De um Quintal Dentro - um exercício audiopsicográfico

Souto, Casa, início da tarde 27 de Fevereiro de 2009

De um quintal perto, como audiogramas, chega o bradar manso de duas mulheres que envelhecem sem homens enquanto amanham cada uma sua horta.
Os joaquins delas já morreram, elas pagaram os enterros, os filhos afrancesaram-se na construção civil, vêm em agosto quando vêm.
Pela pátria, o fevereiro final é uma vela alta (de luz e de barco), já o vespertino sol do marçagão limpa os pés ao tapete.
Chilruscam semínimas os passaritos contentes, gárrulas as aves como ínclito o cedro – e viver é egrégio na justaposição de se não morrer ainda.

Ao cabeço do monte em frente acorrem duas ovelhas e duas vacas.
Pensam as quatro o chão esmeraldamente com as bocas.
A carrinha do peixeiro passa exaurida e saciada, não deve ter corrido mal a venda ambulante da manhã, até porque sexta-feira é ’inda dia só de peixe para muito boa gente temente e tenente “da persuasão íntima, do deleite e do misticismo”, como escreveu em 1941 um senhor de Mirandela chamado Manuel António Ribeiro (1-Maio-1883/6-Fevereiro-1949).

Olhos cerrados, não extinta ainda a vigília, reboo por dentro à matrícula auditiva da tarde e do mundo.
Não tenho frio nem sinto fome.
Vou para pensar – mas depois (agora) já não.

Sono ao Sol - um exercício fotopsicográfico




Souto, Casa, início da tarde 27 de Fevereiro de 2009
(foto: Souto, 7 de Fevereiro de 2009)

Esta luz é para saudar semicerradamente.
É feita do olhar que a instala em pássaros, árvores, casas e praças.
Também é: toda contemporânea de si mesma,
mapa de mapa, mundo de mundo.
Tela aquém descerrada, música roçada de respiração,
é o desmesurado cantil de que bebem as aves cantoras,
través de que fremem como cavalos as viaturas chãs
e os humildes andarilhos.

Esta luz instaura fragrâncias que ruminam a salvação
por um dia.
É bom despreocupá-la de incidências.
Pode ser haurida em haustos altos de damasco faustoso.
Lareira do ar, postergou o frio para ínvios trilhos.
Exposta à qualidade aeróbica dela, mais a pessoa devém porífera
– e toda se medusa, a pessoa, dela banhada a grandes mãozadas
de esmalte anil.

Se o sono traz os dedos a tocar os olhos,
a vista íntima escarlata-se muito amniótica,
pulsam as extremidades digitais o polvo ronronado
– e um solar de morgadio se volve o peito exposto.

Acorda-se para ela com um nascer veterano:
e morrer nem custa, como viver não já também,
à luz.

Nel Monteiro - Puta Vida Merda Cagalhões

Mas quais bob-dylanes,quais pedros-barrosos, quais porras, quais caraças. Ele é mazé NEL MONTEIRO e mainada.

26/02/2009

Rosário Breve nº 92 - esta semana nO Ribatejo do costume - www.oribatejo.pt

Coisas que não

Criar um gato não é o mesmo que dizimar uma população de tigres. Criar um tigre não é o mesmo que dizimar uma população de gatos. Um almoço não é uma almoçarada. Um amigo não é um amigalhaço. Taine (1828-1893) não foi o inventor da tainada. Passos Coelho não vai lá mesmo que tente lá ir como tem vindo a tentar ir lá. Obrigar os professores de Paredes de Coura a carnavalar pelas ruas quase não é o mesmo que desmagalhãesnizar o corso de Torres Vedras. O BCP mandar o Armando Vara para Angola não é nada má ideia, até porque Angola merece isso e pior. A polícia apreender um romance com um nu feminino do século XIX na capa não é coisa por aí além, em Braga. O casamento gay é gajo para não resolver o que por aí vai de fábricas a encerrar. O TGV e o Aeroporto Marginal-Sulista são gajos para também não. O Caso Freeport e a Casa do Benfica não são um casal. Não ir almoçar fora não quer dizer que se tenha para almoçar em casa (como um almoço com um amigo não é o mesmo que uma almoçarada com amigalhaços). Um gato não é um tigre.
Nem Portugal é um país de tigres, tirando os decadentes sacos-de-ossos dos circos pobres que ainda andam por essas vilas e cidadelas a deprimir as crianças e os poetas. De gatos, também não é. Portugal é um país de gatas.
A democracia e o pão com margarina hão-de acabar por matar-se uma ao outro. Nascer na ambulância de ida já é o primeiro acto de morrer na ambulância de volta. Continuar a afirmar o poder local como uma conquista de Abril é ter saudades de Março.
Ainda assim, e apesar de tudo, resistir é giro. Resistir vendo. Resistir lendo. Resistir sendo. Todos sabemos que a tripa-forra da banda(rouba)lheira vai continuar. Todos sabemos que o Carnaval não acabou com o Magalhães nem com os professores na rua. Nem com a boa notícia do Armando Vara ir para Angola. Mas mesmo assim: ele pode haver coisas que não, mas ele é gajo para ainda haver coisas que sim.

DOUTROS CADERNOS – IV (extratexto de A NOITE EM BREVE)


© Sandra Bernardo
Viver os Livros – XIV
Viseu, 20 de Agosto de 2008



(P)Rosa
Viseu, noite de 4 de Outubro de 2008





Em poesia, não serei mais que prosaico, pois que do mesmo falarei sempre: de um ou dois homens, amados, e de umas tantas mulheres, amadas todas – e todas incompreendidas.
Se a este ritmo (quase poesia) cheguei, foi porque a tanto me levitei, coxo de andarilhas andanças outras, mesmas ou símiles ou iguais que tantas, afinal – e que importa?
Hoje, rumoro neste idioma bárbaro, ledor ’inda de incunábulos e merdas assim, seu quê de Fialho de Almeida, seu tanto de Correia Garção.
É um sábado muito noite, dizem-me que do século XXI – e que importa?
Um homem ou dois, se calhar o mesmo sangue, e o sangue disciplinado de umas tantas mulheres – quanto me basta para prosa.
Rima agora a rosa:
raparigas de minicervejas fumando a um canto (li no caderno de orações da Senhora do Carmo, Viseu, a caligrafia tardio-adolescente de uma menina que invocava à Virgem a ausência da mãe para dinheiro de sair à noite aos bares que rondam a Sé como os lobos outrora a presa fria – e dinheiro para biquínis e solários, está escrito nos pedidos para o terço da Senhora do Carmo).
Nada de especial – nem nada de outro mundo: tudo deste e tudo normal.
Vigência das casas, demora dos sentidos: placas deícticas, sinais de norte e oriente.
Casamentos.
Filas para o afamado restaurante que te explora o prestígio da memória.
Licor de tangerina e salões de baile.
Com a idade, graças a Deus!, menos trepidações do erossangue.
Sossegadamente a morte de Dinis Machado.
Prosa.
Rosa.
Ousa:
uma planície, cobertura rápida de couros (cavalos correndo); muita tinta-da-china (abetos, faias, cedros, ulmeiros: o que subir a botânica onomástica); um lago gelado; frango frito frio e pão de milho na bolsa do pão, comer sozinho ante o lago; esperar um barco; saber que ele não virá; lembrar figuras hollywoodescas: Peck, Garbo, Pickford, Bancroft; sábado, agora, outra vez, nenhuma vez.
(E uma fadiga que recobre de lama a afinal não última água dos olhos, a final primeira água dos olhos, o lago.)

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Virtude do muito trabalho: não ter perdido senão tempo.
Em cafés de província, assistir à bonomia da putrefacção: a da televisão em geral e a dos televidentes em particular, os gajos das motas 50cc que respiram pela hirsuta barriga, suas extraordinárias mulheres comedoras de laranjas cristalizadas, seus energúmenos bebés adejando sangue pelas rosetas das bochechas, seus avós artríticos que condensam na senhora-de-fátima a aparição de epifania nenhuma.

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Daí a prosa.
Qual poesia?
Prosa.
Prosa é nunca ter ido a Lisboa em poesia tendo ido a Lisboa em prosa.
Prosa é ter visto um rio de lado como um perfil de pessoa – ou de cavalo, dá o mesmo e no mesmo.
Eu não ando aqui para enganar alguém.
Eu ando aqui para enganar ninguém.
Conheço alguma história e algum fado, sei que caganitas é preciso cagar para ser rato.
Nasci para a prosa porque nasci em Portugal.
Não é possível nascer a não ser nascendo em Portugal.
Os senhores acreditai-me e que as senhoras não enjoem: é o que mais vos desejo, e saúde e òbrigadinhos, ora o carago!

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Se me não canso de realinhar prosa, é por causa da rosa.
Sábado à noite, província, um café de, por exemplo, Viseu: e então?
E que importa?
Isto das odes marítimas não é para todos: conheço até um gajo tão sozinho, que até deu doutoramentos a conas-de-plástico filhas de gajos ministros e/ou sinistros.
(A Ophelia também queria, mas jamais a teria.)

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Raparigas fumam ao canto do café, tonitruadas pela televisão, bebem minis, nunca sofrerão de marguerite, Yourcenar então nunca, Duras talvez ainda, que é mais fácil, tipo mª teresa horta para remediadas.

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Tenho quatro cigarros, tenho um cinzeiro, tenho tempo ainda.
Morreu ontem o senhor Dinis Machado.
Em 1977, ele mudou sozinho isto tudo.
Ele mudou isto tudo, sem ser o Bush das argoladas ou o Reagan das alzheimeradas ou o Clinton das mamadas ou o Bill Gates das tomadas ou o Napoleão das derrotas ulceradas, mas isto se calhar também já é abusar da cultura geral e do Carlos Cruz e da RTP Memória e do Tony Blair, coitado.
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De uma coisa gosto na prosa – e é o ritmo.
É quase-quase poesia – mas dá na mesma para mostrar à Mãe, em viva.
Uma pessoa pode não ser Pessoa, mas pode ser pessoa, em prosa.

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(Paquidermam-me de alvoroço as grandes naves
que as aves não reduzem, aumentam antes.
Barcos grandes vi entardecer suaves –
e rútilos como júbilos e diamantes
e como tartarugas gigantes.)

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Mudo de café, avícola de minha manquidão.
Quase meia-noite, amanhã é o mesmo dia.
Sofro de não sofrer a própria inconsequência.
Alinho a gramática, entendo as regras.
Isto é tudo agora electricidade, antes era luz.
A sombra cresce una, tetra, octo-genária.
Envelhecer em novo não é fácil nunca, menos ’inda de manhã como ontem.

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Nem é por causa da poesia, nem do desgoverno que assiste à sub-presidência das putas e dos empreiteiros que as tornam gordas e tropicais, não.
É pela prosa, que mais é justa na insuficiência do que a poesia na prepotência.
Num país dentro de nós, temos por exemplo nenhum exemplo: ninguém lê e tudo vê têvê.
Então e o ora-que-carago!?

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Vem comigo devagar, na bolsa da mão, o Wenceslau de Moraes no Japão.
Sepultou duas mulheres que amou.
Foi tristemente feliz longe desta merda, que se calhar também amou.
(Tenho de aumentar os homens amados, parece-me: Wenceslau, o Pessanha que amou Ana de Castro Osório, o elegante Botto, o tísico Cesário, o roto Camões, o invejoso Fialho, o insuperável Eça, o ríspido Junqueiro, o fatal Camilo, o breve Diniz, o sumo Santareno, o gandarês Oliveira, o cromático Brandão, o sombra de pessoa Pessoa, Herberto no Café Gelo, depois no Café Expresso, depois
um poeta está sentado na Holanda, raparigas fumando mal ao canto do café – como homens que não lêem.) !?

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O tempo chega sempre a tempo de um homem se olhar fora de qualquer vidro.
No meu caso, a prosa é vidro quanto baste.
Em os casos dos outros (nas casas dos outros), bastará o que bastar quanto baste.
Fumo e nuvem e lua a meia-haste?
Prossigamos:
da juvenil menina a apetência pelo homem empregado no comércio é primeiro prestígio e ultimada justificação: uns interfaces, uns pubs e o filho está feito; do administrador dado a micoses de unhas e a bêémedâbliùs, também, embora haja sempre que atender às videovigilâncias e à acuidade mediúnica da legítima; o mais é amor.

*******
O mais é amor e poesia portuguesa.
No meu caso, prosa.
E rosa, mas não tanto, dada e tida em conta a situação internacional.

*******
E de repente, não em verso, aí está domingo: coisa linda, nova e carbono-14.
Pelo menos foi o que me disse, em prosa naturalmente,
Molero.

A Ter em Conta no Próximo Orçamento Geral do Estado

Souto, Casa, tarde de 26 de Fevereiro de 2009


A visão para lá da cabeça.
Aquém, onde o mundo é treva lúcida.
Fulgor involuntário e inocente das coisas como os animais.
Muito trabalho para desorientar os fantasmas da casa.

O corpo como um (um apenas) dos lugares para o corpo.
A vida passando-se também nas árvores,
nas feiras,
nas desabitações.

A actividade das gaivotas vista sendo não-ser.
As praias no Inverno, plenas de possibilidade.
A consciência colectiva dos peixes e a colectiva inconsciência
das pessoas: simultaneidade e obrigação e não-fé.

Uma gazela de todas as gazelas, incontável como elas.
O nome de uma vinha que a não diz se ao sol se anoitecida.
A vida de uma vela num casebre.
O tinir de um metal à brisa leve.

O chafariz em surdina no largo reverdecido, depois dourado.
Palavras insolfejáveis ouvidas de uma casa passando a rua.
A roupa no estendal esperando um retorno.
O sabão que a esclareceu entre ela e a mão do sabão.

O sabão para lá da mão.

Habitação e Povoamento de Pombal (5 e 6)


5

Tarde de 9 de Fevereiro de 2009

Assisto de lado ao espectáculo do mundo.
O Inverno continua aceso, espécie de furor frio com árvores, carros, ruas, cafés. Os noticiários enojam-me. Hecatombe (holocáustica) do neoliberalismo. Merda de pós-modernidade. Rótulos vãos. Razão tinha o Lipovetsky: esta é deveras a Era do Vazio. Domino mal o nojo por tudo isto. Fecho-me na poesia. Leio pouco, por estes dias. Bocejo bastante.
Outras vezes, dou por mim a pensar em Rilke, não sei porquê. Sombra luminosa – essa figura de grande liquidez ocular. Mestre, naturalmente. É da mesma configuração de Maigret, não sei porquê também. Greene, Maugham. Le Carré. Burgess. António Duarte. Carlos de Oliveira. Tudo fantasmas. A cabeça cheia de fantasmas.
Tarde fria, despovoada. Vontade de cozinhar (uma sopa). Café em chávena azul. Espremer o coração como a uma laranja. Deixar entrar a pulsão poética. Torrar pão, fazer lume. Esperar a pacificação. Alongar a hora.

ALONGAR A HORA

Convoco as mãos para ofício da alma.
Sou um velho homem entre árvores frias.
Sei onde ficam as casas, suas sombras humaníssimas.
Tenho o mapa dos incêndios.
Glorifico a rosa e a laranja.
Falo com o pão.

Os meus mortos redigem obscuramente.
São eles os oficiais de minhas mãos?
São-no.

Bispo da íntima solidão, incenso em glória:
pedras, pó, ramagens, leveduras, orlas.

Conheço profundamente a ignorância.
Aurifico areais, menos e menos sexualizador.
Leio o verso de espuma do mergulhador.
Anseio um barco, uma manhã prateada a azul.

Estou.

Esta é a minha hora grave, esta a minha boca.
Fundo países regionais, de papel todos.
Se viajo, quieto me dou ao cinema: tanto olhar.
Doem-me os animais de berma morta.

Vou.

Caminho dentro.
Gostaria de partilhar Rilke, chocolates, anémonas,
mas tudo está pela hora da morte.
Espero um telefonema, reservo uma mesa no hotel.
(Mas não há hotel no pinhal: invento.)

Sou o velho apanhador de cacos.
Estou de coração de louça.
Muito me surge o mar na ideia.
Fecho os olhos para viajar mais.
Imito dos meus mortos as palavras coloridas.

A magreza das filhas dos barbeiros piana a tarde.
Do cauteleiro, o filho droga-se de chá marroquino.
Do senhor polícia, a mulher está em voga falatória.
E o vereador cavalga a facturação das águas.

Nem tudo são rosas.
Sonetos há que carmenmirandam a língua frutuosa.
A miséria de Camões na ilha moçambicana.
A flor do cancro da imortalidade.
Azeitonas e navalhas na noite churrasqueira.
A poesia vuímetra do coração enegrecido.

A longa hora: a vida breve.


6

Entardenoitecer de 9 de Fevereiro de 2009

Blusa de amarelo-ovo sob colete acolchoado castanho. Ancas e coxas grossas forradas a bombazina castanha. Botas pretas e altas de fora das canelas. Mamalhal abundante gelatinando a inflação láctea. Cabelo pintado de negro-azul como duas tiras de carvão, como um melro pousado. Passa debaixo de um guarda-chuva minúsculo, que mais acentua o contraste do grande corpo fêmeo avançando determinado no crepúsculo.
Chove arame frio. A existência inverna-se sem remissão. Estou calado a um canto do mundo. Cavalheiros vestidos de cinzento comentam os incêndios na Austrália, depois a crise económica. Fazem-no com delícia, ouvintes de sua mesma doxa.
Hoje não entristeci de mais. Colhi a flor possível do dia. Fiz uma sopa boa, comi-a soprando, as gatas dormitaram as horas. O Inverno enovela-as. Pedem mimo, palavras, cursos da mão no espinhaço. Dou-lhe tudo isso.


AGRADECIMENTO

Agradeço a infinitude da palavra.
Todo ardo nela, imemorial.
Este é o azeite da minha lavra.
Língua-oliveira sideral.

Respeito a tradição da dor.
Afundo-me azul na preta noite.
Quem te teve amor, foi-te
leal e grato sem favor.

Arde o pão na pedra antiga.
Animais atiram sons de prata.
O pouco viver muito mata.
A vida ao viver obriga.


E como vidros me caem da mão os versos. Projecto Kafka por as ruas escuras. Ouço os comedores de pescada e torresmos, assisto de lado ao mundo. A minha cabeça enegrece para ser rosa sobre sudário. Que me posso significar, ainda? Revoadas de pombas, tordos, aviões, folhas despregadas do livro das árvores, besta dócil, amargura e caligrafia – minha fortuna além do amor. Evanesço? Evanesço. Transpareço. Desapareço. Peço. Estou atento ao comércio, sei de cor as manias do inconsciente. Escuso até de procurar. A minha demanda não é vital, é idiomática. O segredo e o tesouro estão na gramática: penso que sempre soube isto, nada mais que isto me interessa.
Aquele homem chama-se Victor. É portador de óculos fundos, esguelha de estrabismo. Miúdo de corpo e engraçado no falar. Vive sozinho. Come nesta casa-de-pasto há anos. Conhece toda a gente pelo nome. Cresce sem filhos para a morte. Paga os seus impostos, desconta para os bairros ciganos, não tem que se diga dele. Deve ter sido por causa do amor de alguém por alguém, se foi concebido, tido e nutrido e atirado. Agora, habita um cubículo da cidade: sala pequena, mínimo quarto, serventia de casa-de-banho e cozinha. Rilke no túmulo, junto à Igreja de Raron. Toda a vida de Wera Ouckama Knoop em apenas 19 anos (1900-1919). De perfil, o Anjo do Relógio da Catedral de Chartres. Os olhos extraordinários de Rainer Maria Rilke por Lou Albert-Lasard. Duíno, Castelo. Paulo Quintela na Serra do Gerês, depois em Coimbra no mês de Setembro de 1967. Victor, este homem.

Notas para um Conselho de Ministros


© Sandra Bernardo
Cabanas de Viriato, 5 de Novembro de 2008


Souto, Casa, manhã de 26 de Fevereiro de 2009

I

O fio da boca existe mas não é / é mas não existe.
A voz da flor é a cor.
O fio da voz é a flor.

A pessoa encontra-se na pessoa como o mar na praia.
A praia da pessoa é mais e é menos que a areia da pessoa.

O sarar da ferida também é ferida / também é mais e é menos.

Ser compreende não-ser e nem-ser e nem-sempre-ser-nunca.
As coisas do mundo são também a pessoa e também
mais e menos que ela.

Nela e fora-dela.

A boca / a flor / a pessoa: mar e areia: praia e além-de-praia.

E aquém.



II

O caminho é horizontal no vivo / é vertical no morto.
A posição do infante no berço é guardada pelas árvores do caminho.
Assim noutra linha a do defunto na caixa.

Um ainda não é.
Outro não é já.
Ambos são mas não existem / ambos existem mas não são.

Um lábio da boca é vivo.
Outro não.
O fio da boca é o fio da navalha.

A boca não é sozinha.

O caminho resulta da boca / a boca existe a caminho.



III

Luz do sol numa janela.
A outra janela em sombra.

Tudo é manhã / não é / mas é.

A manhã que foi na noite que vai ser.

Nisto, a areia.



IV

Nisto, a árvore sara.

23/02/2009

José Afonso - desde e para sempre

A Ronda Columbina de hoje é toda José Afonso.
Diz-se que morreu a 23 de Fevereiro de 1987.
A Ronda Columbina de hoje é p'ra dizer que isso é mentira.

22/02/2009

Breviário para uma Sangrada Comunhão seguido de Tomaram-me os Anjos do Amanhecer


© Timothy O’Sullivan
Tufa Domes, Pyramid Lake (1867)


Breviário para uma Sangrada Comunhão




Souto, Casa, e Pombal, tardes de 19 e 20 e noite de 20 de Fevereiro de 2009
I

No todo como em parte – a vida.
Na parte como no todo – o estar vivo.
Tudo é parte no todo – o ser vivo.
A morte compreende a vida.
O ser vivo contempla a morte.

O corpo muda de vida dentro.
A vida muda de corpo fora.

Pugnar contra e propugnar – o mesmo.
A pessoa em situação e a pessoa em oposição
– a(s) mesma(s) pessoa(s).

Impossível ignorar – a vida.
Impossibilidade da ignorância – a morte.
Ignorância possível – estar sem ser vivo.
O morto respira/fala/come/anda – no vivo.
O vivo expira o morto.
O morto inspira o vivo.
Parte da morte é toda vida.
Assim toda a vida parte.
Assim toda a vida.
Na parte como no todo.
No todo como na parte.



II

Sento-me um pouco ao sol.
Sinto-me um pouco de sol.
O sol tem-me salvado noites.
Mesmo quando anoiteço sou.
Mesmo se anoiteço sou de sol.

Tenho a cara aberta no ar.
Levanto a cabeça para ouvir com os olhos:
a caspa sonora da alta palmeira
é toda pássaros fervilhando.
Cara/palmeira/pássaros – tudo é.
Tudo pertence.
E tudo sente.



III

O humano é a síntese do local com o universal.
Assim o gato anda no tigre.
Assim a matéria apenas muda de sítio e de eu.
Esta chávena de café pode vir a participar de uma pessoa.
A pessoa reúne todas as condições do infinito: estas e mais
algumas.
O que morre – morre para ser
parte pássaro/parte sílica/parte forragem/parte magnésio/parte água dos olhos de outro que vive/
parte folha de oliveira/e/parte chão de oliveira.
Local e universal contemplam (compreendem) o humano.



IV

Daqui que:
à vida fomos trazidos,
pela morte não seremos traídos.



V

Este sol de ontem na próxima noite.



VI

Território com faces de água devotadas ao templo celeste.
Os telhados eriçados de aranhas: antenas.
As faces das casas enxugando bandeiras:
calças/camisas/toalhas/fraldas.
A exemplar bondade de um cão.
Aceitar por enquanto este eu.
Participar de tudo, tudificar passaradamente,
limoeiramente.
Consolar os anjos deserdados pela morte de Deus.
Estar partícula, ser inteiro, viver localmente,
morrer universalmente,
também morrer localmente e universalmente ser,
vivo.



VII

Um corpo é muitos corpos,
muitos estão em um.

Um dia cheio de noites? Pode ser.
Rústica delicadeza usa a cidade,
como urbanidade não escasseia
no campo.

Assim o ar é feito de aves,
sem elas embora.
Assim a mãe assimila homem e
frutos poedeiros.

Um corpo é muito.



VIII

Digamos que uma pessoa ama outra:
ama nela (não o sabe mas ama)
as estrelas/as cruzes/a sílica & o magnésio/
o ar & a nuvem/a vida com sua morte/
a noite & o dia & o mesmo amor.



IX

O homem sozinho ceou fruta verde e negras azeitonas.
Coroou de vinho leve a dura boca sozinha.
Tomou café pensando além da chávena.
Chama-se
Fernando/Charles/Sukura/Strondheïm.
Árvore particular deita-lhe sombra à cabeça.
Rastilho de pensões de uma humidade fria.
Representação de acessórios de automóvel.
Tez rosácea, encanecidas fontes à cabeça.
Delicado manjedor, pés de calfe, gravata acetinada.
Sómenzinho.



X

Eu se pudesse juntaria todas as velhas mulheres
com seus lumes ancestros, suas mãos (expostas raízes)
convocando o deus molecular do lume, suas grisas
cabeleiras soltas ao bruxedo do Tempo,
seu quê de pombas/milhafres.



XI

Os futuros mortos mantêm vivos seus antepassados.



XII

Coretos de, digamos, 1920, quando Brighton e a Figueira da Foz eram já, pela vez última, a mesma coisa.
Os músicos, as senhoras vestidas de bolo-de-noiva,
o lazareto íntimo dos poetas-pintores,
as crianças já antigas, impressionistas, não-crianças
se recordadas.
O mar rocheando de areia o Tempo.
Recorda-me na flor, na panela, na campânula,
na loja, no recado de vidro que a dura boca este/lhaça.
Gelados de nívea doçura nascendo da baunilha infantil,
secretas amarguras de cambista judeu amador de fados,
1921, 1922, 1923, 2009.
Eram, já.



XIII

A menina quer arroz, e
sou eu,
ela.



XIV

Tenebras salacústicas muit demoram a vir.
Vilitambracismos esmos têm de porvir.
(Não. Limoeiro, não. Cinza, sim – cinza, sim.)
(Brighton, Figueira da Foz, Figueira de Brightoz.)



XV

A escrita tem correspondido minuciosamente ao posto de
correios-telégrafos-e-telefones que perder a infância
assinala a vermelho no psyché do coração, digo eu,
que tenho escrito (embora não correspondido às
expectativas).



XVI

Sou o meu melhor homem – e o meu limão pior,
isto tudo depende,
aliás de nada.



Tomaram-me os Anjos do Amanhecer


Souto, fim da manhã, e Pombal, tarde de 21 de Fevereiro de 2009


Tomaram-me os anjos do amanhecer.
Alba de galos, de frígidos limoeiros.
Portugal, todo eiras e quintais, de volta ao meu corpo
selecto.
A maravilha da vida só idioma, não propriamente
outra maravilha qualquer.
Nem o Cristo nem o Buda me tomaram,
esses nomes com que entretemos a ignorância.
O que sou agora é o que o mundo me pode ser:
um ponto no Universo,
um universo no ponto.

Império de meus dias anoitecidos,
a alma glabra bosqueja arremedos.
Rotundo não posposto aos medos,
lazareto sim dos porvires idos.
Ó minha pequena alma, minha Mãe!
Ó minha pequena Mãe, tua alma!

Derredor, frutifica o magno candelabro das árvores de fruto.
O cavador doutora jeiras, que gasodutam seivas.
É o sábado, a glória mana.
A minha Irmã deita contas à vida como o pescador,
a rede à mesa do mar.
É tão possível ser feliz, que uma pessoa até entristece
de teclado japonês com caixa-de-ritmos.

Chita & organdi, néctar & palato-de-menino,
solução & absolvição & destino.

Escrevi, só para ti, um
Breviário para uma Sangrada Comunhão.

(Fi-lo porque
0s fantasmas pastam luz na casa encerrada,
de fora, o ferrugento limoeiro, os gatos artríticos,
o pote da água que choveu livre, ora prisioneira
de sua mesma liquidez como um escuro olho triste,
porque
os fantasmas são os carteiros dos mortos,
quando nasci, ’inda havia telegramas,

e o nosso coração é a nossa criada-de-servir.

20/02/2009

Rosário Breve nº 91 nO Ribatejo - www.oribatejo.pt

A vida de Sócrates


“Seus pais eram pobres, mas a lei impunha ao pai a obrigação de mandar dar alguma instrução aos filhos. Sócrates aprendeu, pois, o que era então hábito ensinar às crianças; isto é, a ginástica e a música, que compreendiam, entre os antigos, todos os exercícios do corpo e do espírito e constituíam uma educação pouco mais ou menos completa das faculdades humanas. (…)
Segundo vontade de seu pai, Sócrates entregou-se primeiramente à escultura. (…) Ignora-se por quanto tempo Sócrates exerceu o ofício de escultor; o que é certo é que acabou por o pôr de parte. Desde a primeira juventude manifestara uma curiosidade das mais vivas por todas as questões científicas e filosóficas. (…) Sócrates começou por se virar avidamente para todos os filósofos que se lhe ofereciam. Mas, nesta busca ardente duma fórmula definitiva da verdade, não encontrou as satisfações esperadas. (…) Uma tal diversidade de opiniões só conseguiu irritar a curiosidade inquieta do jovem Sócrates. Mais apaixonado pela verdade do que a maior parte dos seus contemporâneos, não fazia da especulação um puro jogo, não repousava na contemplação de ideias incertas ou inúteis; só podia ligar-se a princípios indiscutíveis (…).”

E pronto, assim se expressa o desaforado P. Landormy a propósito de Sócrates, a propósito de quem também as senhoras professoras M. Helena Varela Santos e Teresa Macedo Lima garantiram que “Sócrates nada escreveu.” E pior: “Sócrates desviou-se da pesquisa sobre a natureza, procurando limitar a sua investigação aos problemas éticos e assim fundamentar uma nova sabedoria para a prática.” E muito pior: “Aos que pretendem tudo saber e tudo querer ensinar, Sócrates proclama ‘só sei que nada sei’, daí nada poder ensinar.”
Mas muitíssimo pior deixou Xenofonte: “(…) os que mais se vangloriam de saber raciocinar sobre o assunto não estão de acordo entre si, mas comportam-se uns a respeito dos outros como fazem os loucos…”.
A vida de Sócrates está No Reino dos Porquês – O Homem do Outro Lado do Espelho (Filosofia para o 10º ano, Porto Editora, 1979). Há trinta anos que lá está: do outro lado do espelho.

19/02/2009

Enquanto É T.

Pombal, noite de 19 de Fevereiro de 2009




O tempo toca por dentro seus sinos
e ignomínia e orgulho e esquecimento
são a música ominosa
enquanto é tempo.

18/02/2009

Um Bocado de Camões

Souto, Casa, noite de 18 de Fevereiro de 2009



Por vezes dou por mim a pensar em Camões
como se ele fosse um gajo conhecido,
um tipo daqui perto com jeito para as tipas
e para as confusões de navalhada, mas um gajo
porreiro, pobre e porreiro, rico de língua
como não conheço ninguém,
quando penso nisso,
quando penso.

Não chego a ter pena dele por viver sozinho
numa barraca desassoalhada, sempre tem
uma laranjeira à porta a que o luar dá vestidos
e pratas no olhar dele, aquele olhar dele
que cala os cães da noite e as aves do entardecer,
as aves que escrevem os poentes poemas de um
verso só, altas, de tinta quase permanente,
no final anil do dia.

Também não chego a ter pena de mim
por causa dele, não ligo muito a gajas,
não gosto de navalhas, quando muito tenho
pena de não ser da língua como a língua
é dele, quando ainda não bebeu muito,
quando conseguiu alguma coisa para comer,
um bocado de pão, uma laranja, algum peixe
do rio que lhe trouxeram frito e frio.

Uma pessoa tem de ter algum Camões
em que possa pensar durante a vida, a vida
gosta de viver séculos afora mudando de corpo,
como ele, coitado, nem de camisa, que as tem
poucas e esfarrapadas, também com aquelas
golas já não há muitas, mui mudam modas,
que não modos, se penso nisso fico triste um bocado,
como se pensar fosse um bocado de pão do dele.

HABITAÇÃO E POVOAMENTO DE POMBAL (4)

Roland Barthes



HABITAÇÃO E POVOAMENTO DE POMBAL
um catálogo de miudezas e de notações meteorológicas, humanas, animais, vegetais, minerais e cosmo-agónicas





e diz, servindo, o que acontece.

R. M. Rilke

Muzot, fins de Fevereiro de 1924



4

Tarde de 7 de Fevereiro de 2009

Sábado. Movimento perpétuo: perenidade-efemeridade-perenidade-efemeridade.
Faz sol, bênção que se calhar merecemos. A luz parece uma grande rosa. O ar passou de frio a fresco, é uma gula respirá-lo em andamento, perto do rio, sobre a ponte, depois de ponte e rio. Escuto a luz, seu roçagar vegetal na pedra, sua juvenil antiguidade, dela a esperança insensata. Altaneiro, o castelo fulge forte. Tem aos pés a cidade, ao ombro esquerdo o cemitério. Há muito tempo que não subo a tocá-lo. Tenho uma fotografia lá com a Leonor, era ela muito pequena, anjo vivo e terreno: beleza e pureza. Adiante.
O sábado sobe no ar: um fumo multitudinário, um presente colectivo, árvore muito branca no inverno chão azul do céu. Limpidez e formosura.
Em Pombal, há um Homero, um Ulisses e um Telémaco. Em duas vezes dez anos, todavia, não conheci qualquer Penélope: perenidade-efemeridade-etc.

Tenho toda a cidade ao dispor. Incluo na disposição as lojas encerradas: quietos filmes da tarde cuja visão me move e comove. Pouco me é bastante: atenção e rumor, invenção e sentido. Coleccionarei e catalogarei hoje muitos artigos onomásticos. Sentirei decerto motores verbais e cópulas adverbiais no rol de coisas mundiais, ais, ais. Mas trago uma tristeza comigo. Conto-a: um cão morto na berma da estrada. Eu vinha a pé, como ele sempre veio e foi. Parecia-me dormir, mas a velha metáfora não lhe serve, a ele morto. Não é possível dormir bem havendo-nos abalroado um carro. Não era um juvenil, estava maduro, sabia viver, conhecia o mundo. Uma distracção ou uma temeridade dele – e foi-se a luz dele, ficou à berma do meu caminho o seu corpo já devorado por dentro pelos corvos que esquecem. Talvez me livre dele escrevendo-o e abandonando-o escrito: tenho-o tentado com outros mortos.
Talvez passe pela estação a ver o Grande Ninguém da ferrovia. Há muito não viajo de comboio, sinto falta dessoutro cinema ambulatório, fotogramas do tamanho da janela sucedendo-se: a vaca no prado, a casa isolada, os arrozais, o Desolado Além da vida sublinhando o horizonte com a tinta da sombra, a inexplicável ânsia igual à partida e à chegada. Tenho de ir a Coimbra um destes sábados, abandonar Pombal por um dia, reverificar na minha cidade-natal a autoridade do exílio. Fi-lo várias vezes quando andava a escrever Terminação do Anjo. Partia da estação de Mangualde, transbordava em Coimbra-B, trotava até A com o coração de narceja de volta ao ninho. Fazia e refazia as ruas pontuadas de putas portuguesas e de evangelistas brasileiros, tomava o cálice no Café Angola, columbinava pela Praça Velha, passava a Igreja de S. Bartolomeu, subia as Escadas do Gato, florescia na Portagem, melancolizava na Avenida Emídio Navarro, suportava a angústia inexplicável e mágica do Parque, andava e andava e desandava. À noite, o comboio devolvia-me ao norte breve da Beira Alta. Isto passou.
De regresso a Pombal, tenho confirmado a estatuária, o comércio, as laranjeiras, o Hospital, o Restaurante Tirol, a Rua de Ansião, a Rua de Albergaria dos Doze (antigamente, do Quintalão), a Cervejaria Cervejália, a Pizzaria Jardim d’Itália, o Celeiro do Marquês, a Casa de Pasto da Ti São, os bastidores do Carlos Augusto “Azeite”, o universo, enfim. Tudo isto faço antes de morrer porque depois não há nada a nem para fazer.

Passam este mês de Fevereiro/2009 22 e 25 anos sobre as mortes fisiológicas de José Afonso e de Julio Cortázar, respectivamente. O que me atrai na aranha do quiosque, porém, é a edição do Le Monde de Vendredi 6 Février 2009. O suplemento livresco do jornal anuncia a publicação de dois inéditos de um certo Roland a quem devo muitas canções, por assim dizer. Digo: Roland Barthes, que intensa companhia me fez em idos arroubos universitários da minha penúltima mocidade. As duas moedas de euro que dei pelo periódico já rendem: leio a peça de Jean Birnbaum a propósito do quiçá mais afamado semiólogo de há quatro décadas. Barthes escrevia muito bem. Tenho muitos livros dele, entre a semiologia pura e dura e a incursão pessoal de Incidentes. Birnbaum remete para uma preciosa distinção operatória: a oposição “bouffée”/”brique” barthesiana. Transcrevo, que é mais cómodo (e sempre dá uma certa distinção, copiar no Café Esquina em francês):

« Roland Barthes (1915-1980) s’était fixé une tâche impossible: non seulement prendre soin des mots, mais encore ne jamais laisser le langage se figer, toujours de maintenir dans cet état de révolution permanente qu’on appelle littérature. A ses yeux, il n’y avait pas de combat plus urgent.
Avec délicatesse et conviction, il nommait des forces en présence. A une extremité, pour désigner la parole ouverte, celle qui déferle dans votre tête, palpite sans ordre ni contrainte, Barthes mobilisait la métaphore du souffle et évoquait une
« bouffée » de langage. De celle-ci relève notamment le discours amoureux, auquel le sémiologue consacra son livre plus célèbre.
A l’autre extrême, pour qualifier la parole fermée, prise dans la bonne conscience et les clichés, il utilisait un terme issu de la cybernétique : la
« brique ». Parmi les plus fameux fabricants de « briques », Barthes citait le Bourgeois bien-pensant, et aussi l’Idéologue militant.
Le destin de la langue, et donc de l’humanité, semblait se jouer ici, dans cette guerre entre le libre déploiement de la
« bouffée » et la pesante oppression de la « brique ». A bien y regarder, pourtant, la ligne de front n’était pas si claire. En témoignant les deux textes inédits qui paraissent aujourd’hui : les Carnets du Voyage en Chine, d’un côté, et le Journal de Deuil, de l’autre. »

Há coisa de um quarto de século, era este o mundo que eu habitava. As traduções portuguesas de Barthes (muito boas, como magnífico é o prefácio de José Augusto Seabra a Mitologias) fluíram nas minhas tardes tão a estas alheias. O “son livre plus célebre” (discutível galardão, aliás) a que Birnbaum se refere? É Fragmentos de um Discurso Amoroso, desconstrução naturalmente semiológico-estrutural do Werther, de Goethe. Tenho esse mundo (e a mocidade penúltima dele) na estante.

17/02/2009

UM VERSO-COMENTÁRIO A DOIS EPIGRÁFICOS


The Järnefelt Family
celebrating Elisabeth Järnefelt’s 80th birthday
in 1919





Temos um convívio velho
com as luzes no pântano.

Rainer Maria Rilke
Muzot, meados de Fevereiro de 1924



Pois temos.

Seis Poemas para uma Assombração Lunar à Medida


Assombração: Pombal, noite de 9 de Fevereiro de 2009






I. Entrevendo Robert Wise’s The Haunting

Souto, Casa, madrugada de 2 de Fevereiro de 2009



As crianças envelhecem muito depressa
quando lhes chega a memória.
Ballesteros negava o passado e o futuro,
só o presente existia para ele – inteligente,
chegou a muito velho.
Mas as crianças, Senhor?

Assombramo-nos.
Construímos vastas (infinitas) mansões
de cor.
Alas intersectam alas e alas e
existências.
Armaduras e cabeças animais empalhadas, dentro.
Fora, um jardim-parque glacial, que um jardineiro
sem idade vigia.

Quartetos de cordas transluzem hologramaticalmente.
Mas nos copos-flautas é vinagre o que espera
a boca.
A grande peça de carne assada fervilha de larvas.

Augusto Gil, os Antónios Botto e Nobre, o brando
Raul Brandão, Mestre Camilo Pessanha,
os desolados meninos uno-vários
Fernando, Alberto, Álvaro, Ricardo e Bernardo,
Eça demandando em vão um copo de leite morno
para acalentar a peçonha que lhe aranha as tripas,
Ramalho fazendo (finalmente) sorrir Junqueiro,
o Oliveira Martins ainda chateado por já não ministrar,
Antero sofrendo sofrendo sofrendo sofrendo,
os condes de rodapé da pré-República charutando,
como se nada fosse com eles (e não era e nunca foi)
– tanto fantasma na desolada mansão da não mansa
desolação.

Beleza negra, a da casa torturada de brancas carnes.
Para sempre apagados, lustres enormes choram cristal.
Os largos linhos semelham peles mortas
tomados de tormentos e tomentos.

O argênteo talher, embaciou-o o abandono.
Frascos de licor enrubescem ouros.
Terrinas fumegam de frio caldos enxutos.
Candelabros suspensos no ar sem mordomo.
Risadas e histerismos de criadas há tanto defuntas
enervam ainda os quartos do sótão.
Bacios de louça campestram ainda de rosas inglesas.

As crianças nunca deveriam aprender a ler
– e a escrever, muito menos.
(Olhai as vidas de Fernando, Alberto et alii).

Vamos fumar para o jardim?
A pérgola é perto de fresquíssima água mineral.
Cantochão, pedra, ramos de árvores seculares,
do luar a sideral pérola para um avatar,
rosas portuguesas, espectros de cães de estimação
– é bom fumar sentindo tudo, o decalque
das mãos da raposa na terra verde, a atenção
professoral do mocho, os vidros que caem da Lua,
o vento em câmara-lenta de quando se não sabe
que se recorda ou cria ou recria ou acorda.

(Não podemos ser poetas se nos não enlouqueceu ninguém
na família. Eu
tive uma bisavó que cegou e foi centenária, mas
não chega.)

Assombrações: tanto pessoas como mansões
dependem da qualidade (e da profundidade)
das fundações.



II. Um Dia os Anjos de Gesso Abandonam

Pombal, noite de 2 de Fevereiro de 2009



Um dia os anjos de gesso abandonam os ondes
onde o mármore é jardim para vir para as ruas
tornando-se nós.
Um dia os anjos vão fazer isso
e nós nada poderemos
(sequer algo quereremos)
contra isso.

Vamos ser de gesso como já somos
em tribunal
na mercearia
na fábrica
na discoteca
na biblioteca
no parque
no teatro-cine.

Nós temos da vida o dízimo da pedra.
Um pouco de atenção é quanto basta
para a total percepção do dízimo da pedra.
A vida acontece ser a mais inimiga coisa do viver.
Se de helicóptero nos víssemos, iguais todos a anjos,
em nossos cafés de província, em nossas casas
térreas como atitudes, em nossas dimensões sufocadas,
se de gesso nos confirmássemos:

a vida acontecendo ser,
então,
que vida.

Fundas projecções no basalto, longilíneas vielas
ladradas a cães prisioneiros, a pele das plantas
dos pés tocando a cara húmida da mãe-terra,
projectados e fundos os anjos da clonagem nossa,
nos anos iguais.

Ao alto, a Lua,
vigorosa de catecismo, cáustica e amarga,
candeeiro de ciganos e de motoristas.
Havendo torrado a fímbria do mar,
nenhum Sol,
por pagão e dormente.

Camisarias, ópticas, ferragens, pastelarias.
Mármores, mármore, mármore, mármore.

Ou
gesso, gesso, gesso, gesso.



III. Gosto de Assistir à Ceia dos Casais Populares

Ibidem



Gosto de assistir à ceia dos casais populares na casa-de-pasto.
O casal de hoje é jovem, ela para aí uns 24, ele trinta e picos.
Um menino, claro: na província, a prenhez é que matrimonifica.
Derredor, os homens de rostos roxos azeitonam-se, indiferentes àquela espécie de felicidade em triplicado.

Eu agora tenho tempo na vida para gostar de ver.
(Mais de ver que de viver.)
Gosto deste casal + 1 como já de tantos outros escrevigostei.
Gosto que seja um verso aquela dose para dois e para poupar.
É um verso escrito a tinta de lulas guisadas com batata cozida.
A senhora bebe gasosa, ele bebe um jarrito de rubis.
O menino não come nada, adormeceu, coitadinho.

Os meninos de agora não são como os do meu tempo.
Os meninos de agora passam a vida com os avós-creches.
Os meninos de agora passam a vida à espera dos pais.
Os pais chegam-lhes com a noite, bovinos de cansaço do campo.
Esta mãe esteve todo o dia na escola a lavar a escola.
Este pai todo o dia andaimou matérias de reboco.

Gosto de Portugal.



IV. Lembro-me de um Senhor chamado Duarte

Ibidem



Lembro-me de um senhor chamado Duarte.
Ele bebia, mas vivia.
Agora já viveu, não bebe já.

Era um istmo.
A casa comercial dele dava-se a labirintos:
o do bolor, o da sardinha frita, o do mijo,
o da caldeirada de bacalhau, o do pudim de pão.
Entrava-se no escuro, ele luzia como um cardeal.
Era antigamente, era em Peniche.

Passados uns três lustros, volvi ao sítio.
Não havia sítio.
Era um plano de mármore, a casa.
Ele, um anjo de gesso.



V. Pode Ser

No Moto Clube de Pombal, tarde de domingo, 8 de Fevereiro de 2009



Pode ser que a tua próxima vida
seja algo a que pertenças.
Um país diferente, um corpo-nação
com pernas para andar.

Pode ser que voltes a ser uma bela coisa,
uma flor morena que as mulheres queiram
ter.

Pode ser que o teu próximo tempo não
seja um papel queimado,
uma ardida laranja,
uma rosa aziaga nos dias carburantes.

Pode ser que sejas feliz.
Pode ser que sejas.
Nas tardes de chuva da eternidade,
pode ser que possas.

Tudo pode ser no espaço-tempo,
digo-to com relativa segurança absoluta-
mente.
A mitografia da Noruega/Argentina,
extremos Norte/Sul,
a vida feita encarnado azul.

Pode ser que aconteças como uma árvore,
relâmpago de ti mesmo na cordial condição cardial,
sideral, Portugal.

Pode ser que faças ainda da tua vida uma alfaia agrícola.
Pode ser que a tua mãe nunca mais prescinda da vesícula.



VI. À Medida

No Tó Mota, tarde de domingo, 15 de Fevereiro de 2009



O homem é a medida do dia
como o dia é a medida do homem.
Não tarda nada não tenho nada
excepto meio século ido mais que vivido.

Luzem as luzes na terra de repente azul.
Tenho de fazer alguma coisa por isto.
Diz que há outras terras, onde o pão salga.
Diz que há que fazer, alhures.

Esfumando

Souto, manhã de 17 de Fevereiro de 2009



Certas horas como lobos feitos de luz escura,
como lobos escuros de luz certas horas impensáveis.

Nós quaisquer em uma fotografia esfumando-se,
sobre um móvel húmido numa qualquer casa molhada.

O esplendor da vida retalhado qual a azeitona
que a oliveira atirou ao céu como estrela preta.

A estrela preta do esplendor da vida, quando a terça-feira
bate depressa dentro do coração fugitivo centrípeto.

A fuga para dentro, para baixo e para dentro, na hora.
A mulher ao balcão da retrosaria sonhando netos.

As horas dessa mulher sem câmbio com as nossas
quaisquer. Então, o fotógrafo que nos caça, nos esfuma.

14/02/2009

Esta e este, aprendi-os com o João Pinto, que é de Seia mas apesar disso sabe umas merdas

HABITAÇÃO E POVOAMENTO DE POMBAL (12)

12

Tarde de 14 de Fevereiro de 2009

Morredouro.
A orquídea lança som.
(Isto é prosa.)
Toda a riqueza é na panela: o cabelo-alga dos grelos, a batata a que os Canadianos chamavam raiz, a senhora cenoura pictórica, o alho perfunctório, a cebola totalmente maternal, o nabo jucundo e honesto, o aurífero azeite, o grainho tomate honesto também, a chouriça economia-do-lar – caldo de um poeta sem dentes e sem esperança e com idioma.
A orquídea lança som.
Hoje o Sol voltou ao país.
Hoje o Sol sabadá-se todo, puta velha, masculina.
No Souto, com a Senhora Alzira e o Senhor António, antes com o casal António e Alice Mota: no café, falando de saúde, de internet e do Sol que faz.
Algum desespero nas tripas.
A Buenos Aires de Borges, por Carlos Alberto Zito (tradução de Serafim Ferreira, Editorial Teorema, execução gráfica e impressão por Rainho & Neves, Santa Maria da Feira, Outubro de 2001, por 2 euros, ontem, na pombalense K de Livro, atrás da Prisão Antiga, fim da manhã.)
Viver em morredouro.
Viver em ouro.
Alcançar um dia a casa de madeira, o espeto de pau do ferreiro.
Uma cerveja sangrada devagar, atenta, benigna.
O abandono latente – e as primícias.
O lado miliciano do coração.
E o coração propriamente dito: desculpa para quase tudo.
A Mãe envelhecendo mais um pouco no sofá mijado a desconta-gotas.
A puerilidade tão sábia das gatas economistas-do-lar, bonitas como flores de cabelo torrado a luz e a golpes de chuva.
Necessidade de muitas palavras irremissíveis, digo: hontaluz / gaspárdio / senoctural / reventismo / coliferoz / zapurdanista / telmaquia / ropidastro / sentonete / cloripidistra / zelmuquímaco /estordinal / bengaplor / tuntaliz / sentemuros / gárdio / policoiso / émaco / ónio / cheza / coliflor / flor / sentargem / bastro / custro / roderiquigues / lhãmorta / cavalo / gospistrada / ão / saturnico / çolar / bangue / izola / rândula / guíça / foite / ctar / meleguismo / tidade / ondera / termodlismo / sacúra / alise-com-mice / ôdevèra / burges / ropintinismo / celúbico / túbal / pontinhismo / termostrada / lúpia / banzia / perdói / saluscrinar / anismo / rotal / meiro / eão / sânzio / criso / oiro / e / toiro./
A ORQUÍDEA.
A ORQUÍDEA LANÇA.
A ORQUÍDEA LANÇA SOM.



A ORQUÍDEA LANÇA SOM

Alabastrino corrépio dengoso
tura fura marveloscrastia.
Tia crispa fôro puro gozo
além-da-vilha-púrpuramaquia.

Sempótotal? Ão, que redilharga.
Corpora tur sengue derredor.
(A vida é maila vez amarga.
Pão transpira, são, mui ressuor.)

Tento. Língua e tento.
Mélia voj górpe alindritrista.
João Manuel dos Alves Baptista.
Arreguenunquilhofazporsóssustento.

Pó total?
Ão.

Aqui quieto, na antemão. Sábado, 14. Canal do Panamá, excelsa-magna-obra-de-engenharia. Conhecimento-de-ouvir-falar. O meu peito todo marinheiro em doca-seca. O diabo da breca. O meu amor contra certas coisas. A voz da tinta. (A ninguém o digo, mas penso já formalmente a carta de desped(e-v)ida.) Fevereiro. Lígure. Portenho. Havana abana. Fev’reiro: outro em meu corpo. Sustentáculo e cós das calças. Ser ainda. Nascer voluntariamente. Ser de tinta. Não se compadecer-me. Ser-me ainda. Atirar nozes de um balcão de sardinheiras. Íntimo do frio, tu-cá-tu-lá com o gelo. Tárctido. Robentoso. Mágico de uma tristeza crestomatiável. (Mas amável.) Olha o Berno! Olha o Salústio! Mínimo cálice de floração.
Ão.

13/02/2009

Rosário Breve nº 90 - esta semana nO Ribatejo - www.oribatejo.pt

Cinzas


Desconfiei sempre da folia organizada. Isto é, da folia institucionalizada e respeitável, cujo calendário pode implicar (e geralmente implica) consequências e cinzas tão graves como Alberto João Jardim.
O Carnaval deve começar por ser minúsculo. Ou seja: pessoal e intransmissível como a peça de roupa que algodoamos entre partes e calças. Já há folia suficiente nas minúcias com que levamos a vida.
Exemplos: quero um isqueiro amarelo, apesar de todo o arco-íris faiscar; prefiro enquadrar palavras cruzadas a cruzar palavras com gente quadrada; transporto no bolso um livro que não vou acabar de ler porque ando a fazer os possíveis para ser atropelado numa passadeira.Em suma, não alinho em carnavais alheios. Chega-me bem conseguir adormecer em autocarros e almoços, de garfo hirto numa mão que treme. O meu carnaval individual é quanto (me) basta para perceber que a loucura é séria de mais para ser partilhada. Não me estou a rir.
Ainda por cima, antigamente os dois dias da vida só ficavam a perder por um para os três do Carnaval. Agora, o Carnaval tomou conta do resto dos dias com suas noites. A Tragicomédia do Rei Momo por aí grassa sem graça: é ligar o televisor, é ler o desaforo e o assanhado da Câncio, anti-Crespo, a defender o indefensável: o mais-que-tudo-dela, naturalmente. Sim, a folia implica coisas que tais: está na cara das pessoas sem rosto.
Para me proteger das usuras folionas com artistazecos tuga-brasucas empoleirados em tractores alugados pelos parolos dos municípios, releio em clausura o meu santo Eça, redescubro o Canadá pela mãos dos historiadores da Nova França, pondero o meu Rilke, reaprendo português com Antero de Figueiredo e não dou confiança a engraçados boviniformes pelo lado pior da vaca.
E assim farei até que a vaca tussa, que pelo menos a jardim da Madeira nunca chegarei.

12/02/2009

Julio Cortázar sempre!


Passam hoje 25 anos sobre a morte (física apenas) de um gigante: Julio Cortázar.
Para visitar o Cronópio Maior, http://www.juliocortazar.com.ar/

11/02/2009

Até a Dina gosta, claro



Esta e outras fotografias muito (mesmo muito) boas em http://edeuscriouamulher.blogs.sapo.pt/

Na Ronda Columbina de hoje, ora escutemos



E também e ainda Joe Jackson, Duran Duran, Buika, Djavan, Uxía, Rosa Passos, Carlos Cano, Hiromi, The Beatles, Fausto, Nick Cave & The Bad Seeds, Jeanette, Aldina Duarte, Niña Pastori e Screaming Headless Torsos, entre outros.

Em 87.6 FM
e/ou
www.radiocardal.com

(Hoje não há Zé Cid, mas ele volta, ameaço.)

Nos 80 anos do Tintin, para o jornal lousanense O Trevim (suplemento mensal BronKit - coord. de Zé Oliveira)

LEITE DOS SANTOS - 2



Mais 77 do que 7

Pode ser que, como tantos outros miúdos hoje velhos como eu, tenha desejado, aos 7 anos, ser como o Tintin. Pode ser. A verdade é que, rumo aos 77 anos (idade final do meu Pai), estou cada vez mais parecido com o Capitão Haddock: bebo as minhas garrafosas, digo os meus palavrões e tenho a nostalgia do mar na doca-seca da terrena vida de todos os dias.
Para mais, acho o Hergé um bocado pró racista: belga francófono, piadético de “pretos” e de “portugas”, etc. É verdade que o senhor Georges Prosper Remi, de seu nome completo, está para a BD como o Comandante Costeau está para os oceanos filmados. É verdade. Mas devo confessar que o Tintin me interessa cada vez menos. E tudo por causa do Matt Marriott, meu verdadeiro herói dos quadradinhos.
A criação de Tony Weare (insuperável criador da ilustração da tinta com aparo) e de James Edgar cativou o meu coração a partir dos tais 7 anos, idade que me parece hoje inverosímil. Os meus irmãos liam o Matt Marriott, eu praticamente aprendi a ler na cartilha do Mundo de Aventuras que no-lo trazia.Tintin? Tonnerres de Brest! Fichue espagnolette!Mille milliards de mille sabords! Tortionnaire! E por aí adiante.
É verdade também que de vez em quando, sobretudo no Inverno, com os ossos à lareira, me deixo levar pela desintelectualização da vontade e embarco nas aventuras do repórter que não escreve uma linha que seja para os jornais. O traço e as cores de Hergé levam-me pela mão, sem esforço, à minha primeira idade, como decerto faz a tantos milhares de leitores por esse mundo fora, com a provável excepção dos Estados Unidos da América, onde consta que nem conhecem grande coisa do jovem colonialista, perdão!, repórter de ruiva poupa.
Associo-me pois, por amigável encomenda do Zé Oliveira, a esta efeméride. Sem esforço. Ao Tintin, prefiro o Zé Povinho. De longe. O Zé Povinho, a Mafalda, o Torpedo 1939. Ao Hergé, prefiro o José Vilhena, o Comès, o Eisner, o Edgar P. Jacobs e o F. Caprioli.
Ao Tintin, prefiro, enfim, o Capitão Haddock: uma mão lava a outra, hélas!

09/02/2009

Elis Regina - As Aparências Enganam (um poema perfeito, de uma simetria fabulosa, para uma música única) - Composição de Sérgio Natureza/Tunai



As aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam
Porque o amor e o ódio se irmanam na fogueira das paixões
Os corações pegam fogo e depois não há nada que os apague
se a combustão os persegue, as labaredas e as brasas são
O alimento, o veneno e o pão, o vinho seco, a recordação
Dos tempos idos de comunhão, sonhos vividos de conviver
As aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam
Porque o amor e o ódio se irmanam na geleira das paixões
Os corações viram gelo e, depois, não há nada que os degele
Se a neve, cobrindo a pele, vai esfriando por dentro o ser
Não há mais forma de se aquecer, não há mais tempo de se esquentar
Não há mais nada pra se fazer, senão chorar sob o cobertor
As aparências enganam, aos que gelam e aos que inflamam
Porque o fogo e o gelo se irmanam no outono das paixões
Os corações cortam lenha e, depois, se preparam pra outro inverno
Mas o verão que os unira, ainda, vive e transpira ali
Nos corpos juntos na lareira, na reticente primavera
No insistente perfume de alguma coisa chamada amor.

07/02/2009

HABITAÇÃO E POVOAMENTO DE POMBAL (1 a 3)


HABITAÇÃO E POVOAMENTO DE POMBAL
um catálogo de miudezas e de notações meteorológicas, humanas, animais, vegetais, minerais e cosmo-agónicas


e diz, servindo, o que acontece.

R. M. Rilke
Muzot, fins de Fevereiro de 1924





1

Tarde de 5 de Fevereiro de 2009

Sob um apropriado céu de chumbo, o cedro da Escola Secundária é, na tarde sem vento, uma labareda que não tremula.
O frio fechou as mandíbulas, os corpos passam mordidos pela invernia. Ao tempo da meteorologia mescla-se o cronológico, que desbarata a atenção em memória do presente. Com o tempo, a memória volve-se um bacalhau a pataco, que gasto pelas ruas crepusculares. A tarde é uma ponte breve entre o fim da noite e o começo da noite. A manhã mal existe, sufragada apenas pelos galos das cercanias, clarins ríspidos no livor da alba.

2

Tarde de 6 de Fevereiro de 2009

Segue-se outro dia: o mesmo, a avaliar pelo frio. Quero apenas que a habitação seja povoamento: do dia, da rua, da cidade.
Muitas vezes me sucede o de toda a gente, isto de não coincidir cabeça com coração, como acontece quando se leva um sapato mais apertado que outro. Há uma gravidade natural nisto. Fumar um pouco menos, beber muito menos, acabar a leitura do Canadá quando Nova França, começar a que aborda a questão social para, ou em, Eça de Queiroz segundo Jaime Cortesão, sair para a cidade às cinco ou às seis ou às quatro da tarde, ir rever os catálogos humanos que subjazem às últimas árvores. Relatar tudo isso, imaginando o quase tudo em caso de escassez. O cedro de ontem, por exemplo.
Vi o cedro antes e depois de comprar tinta na papelaria. Era uma presença lúcida: um ser de Inverno. Derivei mais devagar que de costume por causa dele. Julgo tê-lo fotografado, sobretudo com palavras. Surgiu-me insurgindo-se-me. Bicho alto, escurecido de seiva, corpo do frio resistindo ao frio e à materialidade da geral condição.
Depois, mais ouvi do que falei em três, quatro conversas com gente destoutro centro do mundo. Não precisei de desejar a noite, que por estes dias dura o dia todo além de si mesma.
Agora, um casal de velhos crocita em francês a um dos balcões locais. Ela é portuguesa, ele parece alsaciano, misto de franco-alemão com destino lusitano.

– A morte pode esperar –

ouço dizer à senhora, que quebra as sílabas portuguesas com um martelinho gaulês.
Então, exactamente agora, um raio de sol brevíssimo acalenta tudo: fita de ouro presa a um gorro de chumbo, fugaz epifania do Verão, logo (agora) desvanecida, caída ao chão, solvida já em água fria.
Maravilha: passa uma avó de netinho pela mão. Leva-o preso pela asa – como se arrastasse um periquito. O miúdo lembra-me uma dessas aves inverosímeis: é pequenito, muito verde, a cabecita solta do resto do corpo por causa da liquidez apreensiva do olhar, um olhar como o meu, que muito olha o mundo e pouco dele entende. A visão, como o sol de há pouco, é breve. Mulher e menino desaparecem numa das esquinas com que as ruas brincam aos legos.
Agora, preparo a expedição de final de tarde. Decerto, ocupação de mesa na Casa de Pasto A Social, depois ou antes de passagem pelo Ilídio da Cardigo. Se o Adelino Leitão não der à costa por a zona do Pelourinho, sossego e redacção nA Social por coisa de meia hora. A noite há-de entretanto ter aberto a boca, há-de ser preciso ir receber o Edgar Domingues à rádio. Pode ser que alguns versos me encontrem nesse entretém que a minha vida usa para se parecer consigo mesma.

3

Entardenoitecer de 6 de Fevereiro de 2009

Em frente à Câmara Municipal a vi. Dela, a cabeça florfluorescia como um lírio de néon. Que bela cabeça! Um halo loiro santificava o ar derredor, sobre o par muito azul dos olhos. Desceu-me uma espécie de paz beata ao coração, ou ao estômago, derivada de tal epifania.
Tive sorte, já que pouquíssimos instantes depois, em plena Rua Almirante Reis já, se me deparou outro par de outro azul: à porta de uma das ourivesarias, uma mulher desfechava dentadas em uma maçã muito verde. Belos olhos distraídos aqueles azuis, que surpreendi presidindo ao vermelho muito vermelho da boca fechado no verde do fruto.
Amo que a desimportância da vida me conceda instantes cromáticos que tais – que a beleza seja ligeira sem ser leviana, que importe sem ser vital (ou mortal, melhor), que a beleza não use ser sempre apreensiva, mas por instantes instantânea e segura e bela e distraída.
Foi então que cheguei à Social, onde me dessedentei a preceito entre comedores de iscas e de peixe frito. No televisor, ardia uma imbecilidade artístico-nacional qualquer. Mergulhei nos papéis sem sacrifício. É o que faço agora, dono de cargas novas de tinta permanente (permanente mais do que a própria pobre estética a que superintendo). Mantenho-me em paz. A mulher telefona-me a contar-me do dia dela, que partilho em transes de lealdade e gratidão. Um senhor de rosto arroxeado (um balão apopléctico, uma laranja de sangue) encomenda, e é servido de, um pires de polvo ensalsado. Trazem-lhe vinho tinto, que ele absorve com capciosa demora. Gosto de ver – ver é o meu trabalho, eu seja cego se não é.
O dia acaba, fósforo da hora. Está frio. Não aqui dentro, mas lá fora. As pedras da cidade queimam-se de gelo por dentro. A ourivesaria, sem sol, parece montra de pechisbeques. Disse adeus ao Paulo Figueiredo e segui. Quando? Agora? Outro dia de outro ano? Desimportante, bacalhau a pataco. Tenho Rilke para ler. Os senhores Raymond Douville e Jacques-Donat Casanova, também os tenho: A Vida Quotidiana na Nova França – o Canadá de Champlain a Montcalm, exemplar que (parece mentira, caramba!) adquiri há 27 anos em Trancoso:


“Trancoso (loja em frente à Barbearia S. Paulo), ao 1º de Outubro de 1981”,

reza a nota de aquisição.
Tinha 17 anos, ninguém me tinha morrido. Ia com o meu cunhado Zé Lima a caminho da aldeia natal dele, que se chama Prova e é no concelho da Mêda. Quase três décadas depois, leio o livro para viajar por dentro. Lembro-me de, na mesma ocasião e na mesma loja trancosense, ter adquirido várias obras do Somerset Maugham. Lembro-me até do preço: cada a 50 paus. O meu Pai tinha-me dado uma pequena fortuna para aqueles dias: uma nota de conto de réis. Num café, comprei um maço de Porto e outro de Ritz, tinha começado a aprender a fumar havia dias, péssima ideia. A coisa passou. Agora, finalmente, estou no Canadá. No Canadá e, para já, no século XVII. Ou então nA Social, em Pombal, século XXI.

Será da minha idade, aquele homem, não há-de ter, se os tiver, muito mais anos do que eu. Encaneceu cedo, é o que é. É lojista. Tem balcão de camisaria, camisolaria, intimidades elásticas para senhoras, pijamas unissexuais. É de olhar triste, apreensivo. O porte é ponderado, mas o olhar é apreensivo e triste. Deve vender muito pouco. A loja é obscura, ardem mal as velas eléctricas que farolizam o estabelecimento ao chumbo que voltou a chover no momento em que saí para fumar na rua. Fiquei em frente à camisaria, do outro lado da rua, em outra margem da vida. Fumei. Ele olhou-me. Eu gosto muito do comércio porque sou poeta. Se fosse comerciante, gostaria talvez de poesia – ou de quem com ela falasse. É tão fácil ser o que sou: um corvo caligrafista em meio à global tempestade económica. Ser triste – é uma coisa. Ser um triste – é bem outra.
Adiante, porém.


ADIANTE, PORÉM

Cápsula no espaço-tempo da sexta-feira,
derivador de magros impérios pessoais,
conheço nesta terra a Terra inteira,
à beira das escalas siderais.


Ali o talho, ali a ourivesaria.
Além o tasco (que não é rasco, minha Maria).
Aqui a cabeça apertando a frio o coração.
Aqui a pessoa, aqui a derivação.

Em nenhum tempo, viajo a favor do pouco vento, aragem mais que força bruta, rumo ao Cardal, onde confirmo a passagem semáfora da comunidade. Não levo pressa nem vou devagar. Está tudo bem, tudo estará menos mal. É pela hora da desarmação: avós com seus netos, tipos compridos e sigilosos como ténias, polícias minerais de segurança vegetal, advogados de toga encharcada como andorinhas pluviais, quiosques que recolhem as aranhas postais, gente que arrefece. Já as padarias tocam a finados de farinha, já na hamburgueria se aquece a chapa americana.
Vou sem pressa nem devagar. Chegarei. Chegarei um dia – e será de noite, quando chegar.

06/02/2009

Crónica nº 89 da série Rosário Breve - O Ribatejo - www.oribatejo.pt

Washington, Marselha e Caldas da Rainha

Dois altos cargos da nova administração norte-americana renunciaram às nomeações por comprovada evasão fiscal. Obama assumiu publicamente um mea culpa que só lhe fica bem. O exemplo, por cá, não pega. Ministro que hoje negoceie dinheiros e interesses do erário público com mega-empreiteiros amigalhaços, amanhã, saindo de ministro, é administrador, executivo ou honorário, do ex-cliente. Corre, coelho, como diria o recentemente falecido John Updike.
Em Marselha, um chico-pouco-esperto lembrou-se de assaltar um banco. (Ainda há quem pense que um banco se rouba por fora…) Vai daí, arrendou a casa ao lado e botou-se a escavar, a escavar, a escavar. Escavou, escavou, escavou. Ao emergir do outro lado, pôs a cabecinha estúpida de fora. Era na casa-de-banho que estava, não no desejado cubículo do cofre. Foi preso, o burro. Cá, faziam-no, no mínimo, assessor. Levavam-no ao Cocorós & Contras e tudo, aposto.
Nas Caldas da Rainha, uma mulher de 90 anos (noventa, sim) anda no mercado local a tentar vender pensos rápidos. Com 200 euros (duzentos, sim) de reforma, claro que não ganha para os medicamentos nem para comer nem para a renda da casa, que partilha com um filho velho também reformado. Como a nonagenária senhora não é de uma “etnia” qualquer, paga. Como não é da Covilhã, paga. Trabalhou anos a fio numa escola. Não consta que tenha roubado nada nem ninguém. Não andou para aí a jurar bandeiras nem a esmurrar honras peitorais. Descontou o que era devido. E agora isto.
Não é o penso que é rápido: é a ferida que é lenta. A ferida deste país sem consciência, sem vergonha, sem espelho e sem remédio.
Corre, coelho.

05/02/2009

O JOSÉ Ronda, mas o CID Columbina




Ah poiZé: hoje há Cid na Ronda Columbina.
Ninguém anda aqui a brincar.

Em compensação, também haverá

Thurl Ravenscroft
Classix Nouveaux (sim, Classix Nouveaux)
Vitorino
The Stranglers
David Sylvian
Amália
Norah Jones
Ella Fitzgerald
Frankie Goes to Hollywood
José Mário Branco
Ena Pá 2000
Roxy Music
Tony Bennett
Zeca Medeiros
Rita Pavone (sim, Rita Pavone)
e
Pat Metheny com Ulf Wakenius e C. McBride.

Em 87.6 FM e/ou http://www.radiocardal.com/

Mas há Cid, não esquecer.

04/02/2009

CARTA (MUITO) ABERTA PARA A MINHA IRMÃ EM UM ANIVERSÁRIO MAIS DELA





4 de Fevereiro de 2009



Gosto, como tu, de quando o vento levanta as saias à chuva, alvoroçando os guarda-chuvas de há meio século, quando já eras a menina em que te tornaste para sempre.

Tu reparaste, como ninguém mais que eu conheça, em como as árvores se sentam quando ninguém repara.

Como te interessa sempre onde e que ando a fazer, mais te digo que – por aqui, pensando todos os dias em ti, em coisas que vejo para te contar (faço-o muitas vezes em verso, mas é sempre contigo, de ti e para ti que falo).

Ontem (também como tu, claro), pensei no nosso Pai.
Escrevi-lhe:


Não me toma outra doçura que a de me teres sido.
Ter sido uma luz na tua sombra, alguma noite.
De ti ter sabido a doçura da doçura – e dos
mistérios simples dos azul-azulejos-1700.

Não outra doçura me torna que a de te ter sido.
De ti ter tido o amor aos alfarr’almanaques
(incluindo os marriotts e os mandrakes).
Que tonta doçura, senhora, termos sido
– e só ser, agora, sem senhor.

Julgo que isto assinarás em baixo, comigo.

O amor que temos a esse homem é de uma tristeza amansada pela doçura. Não é, minha Irmã?

Também é: uma carburação de ouro de lareira, um raspar de ramos nocturnos em vidraças de inverno, um eco de sílabas, palavras, frases e apotegmas que fizeram, fazem e farão de nós, os filhos dele, íntimas câmaras de ressonância dotadas de memória e gratidão.

Aprendi a escrever com ele, vê lá tu – com ele que nem escrevia, senão, a lápis, no verso das capas dos livros ilustrados:


“árvores ao vento, pág. 144”
“cavalos em corrida, 81”
“velhos no jardim, 77”
“rosa para a minha filha, 4”


Todos os filhos dele com ele acamparam imaginariamente na choupana do monte, onde o vento levanta as saias à chuva.

Fez-nos ele café na cafeteira azul a todos, mitigou-nos o frio, condenou-nos o coração a uma errância peregrina pela beleza do mundo.

Se hoje nos acontece recordar para a frente – é por causa dele, lá onde ele nos espera, de antigo guarda-chuva na mão, o sorriso que lhe nascia triste nos olhos bons.

Fizeste-te entretanto Mãe, pelo que és culpada de rosas.
E de tal te resulta o que a todos quantos criam e procriam resulta – a não suave esquizofrenia de ao tempo mesmo sermos filhos e pais e filhas e mães.

É um aniversário mais e teu: aos 65, és uma menina dourada por fora pela instância outonal dos anos, dourada por dentro do duro ouro de tanto amor.

Porque tens – e dela sofres – essa incurável mania de amar mais do que respiras.

Ajuntadora de tudo quanto é mínimo por máxima condenação, tropeças de choupos de aguarela, de madressilvas pontilhadas a pêlo de marta, de pentes, de retratos esfumados, de bilhetes de lotaria que só sai grande dentro, de números de nenhum resto-zero, de infindos sentidos disto que sentido nenhum faz que lho não tenhamos nós que fazer – a vida.

Nesta vida, pois, minha Irmã, conta mais anos e um só amor – o nosso de todos por ti, desta quarta-feira em diante volvendo, de guarda-sol na mão, levantando a chuva as calças ao vento que dá em certa choupana,

azul.



Canzoada Assaltante