30/01/2009

PERANTE O PÁTRIO AFUNDANÇO, DIZ-TE, NÃO SEJAS MANSO

TÁBUA

I. NOTAÇÕES PARA UMA PERI(QUI)TAGEM DA GRAVE CRISE ECONÓMICO-SOCIAL DE PORTUGAL PARA EXEMPLO LÁ FORA – em forma de carta de amor à minha mulher

Souto, tarde de 30 de Janeiro de 2009

II. DO PATRIOTISMO E ARREDORES

Pombal, entardenoitecer de 21 de Janeiro de 2009




******


I


Os cavalos cegos enlouqueceram,
querida,
julgo que de vez,
querida.

Usam botas que encontram no lixo,
levam para casa tudo quanto é garrafa de plástico,
prospectos de dietas milagrosas, restos de corda,
escovas desdentadas, info-reportagens autárquicas,
rodas de carrinho-de-bebé, cotos de lápis.
Que faremos,
ternura minha,
destes animais
a menos?

Estão em promoção as grandes derrotas da humanidade
dos cavalos cegos,
querida.
Estandartes de azul-vermelho tiracolam altos prédios de vidro,
a vida comercial embebeda-se de fria festa sem gente.

Quem diz os cavalos, diz os periquitos,
querida.
Lembras-te de serem mansos e domésticos e solteirões
os periquitos,
amor?
Eram todos de primeiro andar, as donas não
eram viúvas ainda, os senhores Monteiros maridos
delas estavam empregados todos e tinham todos
fim-de-mês,
ao domingo ia tudo, periquitos e tudo, à Caparica ou a Espinho
com arroz-de-tomate e bolos-de-bacalhau a ver
a chuva a dar no mar e os barcos da Marinha
parados como sonhos de chumbo na linha
do horizonte,
querida,
que então horizonte havia ainda,
amor.

Quem diz os periquitos, diz os bêbados,
amor,
que não eram alcoólicos por falta de estudos,
para mais era só vinho o que bebiam,
e quem estava vivo até se ria,
e se alguns nas mulheres batiam,
era da Bíblia,
querida.

A roupa enxuga em máquinas, não ao vento.
Pode ser que sobre cartões sequem ainda em pátios
algumas mãozadas de pevides, mas os tremoços
são de estufa, são pequenos, duros e não sabem
à carnação vibrante do sal em camisa de película
desdentável,
querida.

Cavalos, periquitos, pevides e tremoços concorrem
para uma despatriação pungente e pingente
sem gente dentro,
amor.

Pelos chamados corredores do poder, os passos são
mais que nunca perdidos.
Proliferam os enlouquecedores de cavalos, os agiotas
que agem, os idiotas
que ideiam, os versados
que cevam, os cevados
que versam,
querida,
ternura minha.

Só a morte transigirá alguma piedade,
fechadas as bibliotecas escolares,
encerrados os parques de merendas,
queimadas as maternidades,
estiolados os salões de baile,
embolorecidos os conventos,
roídos os tremoços,
plastificados os cabedais,
fritos os jaquins,
descascados os amendoins,
despedida a função pública,
exacerbada a assadura dos cus,
oleada a rótula de platina,
anelados de bodum os prepúcios,
coçada a virilha,
raspada a axila que se diz sovaco,
amor.

Temo tenham enlouquecido de vez os cavalos patriotas,
querida,
cegos que eram para as evidências até meteorológicas
da Pátria.
São mais rigorosas agora as invernias,
amor,
sabe-lo como ninguém tu,
que nunca foste de periquitos
nem de primeiro andar,
mas rés e chã
e portuguesa.



II

O patriotismo é a fórmula que o inconsciente colectivo encontrou para amar a merda.
Posso dizê-lo de outra maneira – e tenho-o feito – mas fica esta: amar a merda.
O inesgotável filão de imbecis desta puta-pátria tem o seu quê de transcendente, de quase divino, por tão humano e imanente e imbecil.
Eu deste país de merda só queria meia dúzia de oliveiras, talvez nem tanto.
Manhãs rentes ao mar, ele há muitas noutros países.
Isto é tudo tão merdoso, que nem me cansa.
Para me cansar, teria de correr – e estes paços não merecem um passo sequer.
Falo a sério, chiça.

Os insuficientes mentais da rádio-televisão, a quadrilha dos bancos, as seitas evangélicas, os poetas, os de Braga, os actores, os engenheiros, os anais e os menstruais, os cancerosos, os que alugam barcos, os à esquerda da direita e os do avesso da esquerda, os solícitos solicitadores, os abstémios, os não-fumadores, os de Setúbal, os filhos-da-puta em geral e as mães deles em particular, os sindicalistas que não fazem boi e os bois que vão para sindicalistas, os bulímicos, os químicos, os de Abrantes, os que usam cachecol, os que usam o Estado, o estado do uso, o estudo do abuso, os coimbrinhas, os que só dão o cu mas aparecem de piça à lapela, os tónico-capilares, os bic-laranjas, os rosa-cristal, os ciganos e os cigmeses e os cigsemanas e os cigdias e os cigminuto-a-minuto,, os lopes, os palopes, os motores, os promotores, os disto e os daquilo, os reformados, os reformistas, os reformadores, os formadores, os dores, os de Beja, os taxistas, os utentes, os entes, os doentes, os hirsutos, os mansos e os brutos, os anémicos, os da Pampilhosa, os que tossem, os que rumorejam, os do cinema de produção nacional, os nacionais de produção teatral, os que cortam árvores, os que rotundam, os que se arredondam, os que vendem a salvação em brasilês, os que dizem é-assim de cinco-em-5 segundos, os que dão aulas e os que faltam às aulas, os que superbockam, os que acham bem tant’auto’strada entre nenhures e sítio algum, os que amocham com o andor nas procissões, os que mesmo não sendo mulheres não têm colhões, os que tendo mulheres as deixam ir a pé a Fátima ou sabe-se lá aonde, os de Leiria, os cabeleireiros mais fêmeos do que o elástico dos soutiens, os que já redigem sutiãs, os que se pudessem não deixariam ninguém poder, os suinicultores, os que mexem nas partes dos netinhos, os netinhos, os de Tavira, os que mordem a haste dos óculos, os que bebem o vermute com o mínimo esticadinho até à unhaca de tirar cerume dos pavilhões capiloso-auditivos, os dentistas, os aut(omobil)istas, os que têm o cu virado para África, os que nos venderam a Bruxelas, os que estão em Bruxelas a vender-nos ao resto da Bélgica, os que estão em Bruxelas mas voltam, os que rogam por-obséquio, os que pedem tenhamos-a-fineza, os que nunca leram o Nuno Bragança, os que lêem o Torga, os que vomitam, os que crocitam, os que caganitam, os que gritam, os que se vêm mas não se vêem, os que compram nos chineses camisolas para levar à manifestação contra o desemprego, os secredromedários de Estado, os mais altos camelos da Nação, os do Porto, os do FC do Porto, os que têm cataratas no olho-do-cu, os que têm dois-olhos-do-cu na cara, os que fumam mentol, os que dizem cagalhão com boquinha francesa, os que estão sempre a falar no exílio de Argel, os que expectoram pescada, os das poupanças-reformas, os pais-natais, os meninos-jesuses, os das rifas, os do vê-mazé-se-te-abifas, os do torrão-de-Alicante, os de Nelas, os da tropa, os da Europa, os que põem as filhas no ballet ao dispor dos pedófilos que dão Religião & Moral, os que põem os filhos na heroa, os que dolcegabanam e os que só abanam, os que confundem os canhões de Navarone com a ponte do rio Kwai, os que são mágicos, os trágicos, os que são marítimos, os histamínicos, os cómicos, os noz-vómicos, os da Covilhã, os que trocam a rata da mãe por duas embalagens de bacalhau pré-demolhado, os que são trocados pelas mães, os de Bragança, os de Silves, os do Funchal, os do Pico, os de Cantanhede, os de Viseu, os de Peniche, os de Évora, os de Aveiro, os de Pinhel, os de Newark, os de Portalegre, os de Goa, os da Trofa, os de Sacavém, os de Berna, os só-de-taberna, os de S. Paulo, os de S. Paulo de Frades, os de Oliveira de Azeméis do Hospital de Frades do Bairro, os que paulocoelham, os que siddhartam, os que se peidam que nunca se fartam, os que dizem ámen e os que amenizam, os que vertem e os que entornam, os que tornam, os que se encornam, os que se autorretratam e os que nunca se retractam, os que vêem o telejornal, os que já viram ovnis chamados ufos, os bufos, os tartufos, os alecrínicos e os manjerónicos, os que blogueiam, os que bloqueiam, os que manoeldoliveiram no pátio das cantigas, os que nunca se movem, os que se comovem, os que bradam, os que ladram, os que votaram neste cabrão mas agora juram que não, os não foram eles, os que são outros em vez deles por não ter sido o pai deles a foder a mãe deles, os que mandam nas urgências, os médicos, os que têm tétano por profissão, os que fazem do tédio negócio e os do ódio ócio, os ósseos, os seminais, os seminaristas, os sacerdotais e os chupistas, os que foram às urgências para morrer em casa, os que nascem em ambulâncias, os que nem casa têm onde cair mortos, os de Alenquer, os sibaritas, os hermafroditas, os foditas, os jesuítas, os juristas, os naturistas, os que chupam cabeças, os da bandadalém e os que ficam sempre aquém, os de Sintra, os da Madragoa, os porteiros, os parteiros, os excêntricos, os teocêntricos, os dos amanhãs-que-cantam-quando-a-galinha-tiver-cáries, os de Pombal, os que anoitecem de manhã, os que tonycarreiram, os que encarreiram, os que encarneiram, os do poder local, os do foder boçal, os que vendem meias a paraplégicos, os que ladram Deus ao domingo, os que arrolam testemunhas na esquadra de Jeová, os holocáusticos de David, os do tremoço e os da pevide, os que não comem carne de porco sabe Deus porquê, os que dão sangue mas só o do fim da borbulha, os do Estoril e eu também – tudo merda.

Tudo.


Crónica nº 88 da série Rosário Breve - esta semana, nO Ribatejo - ww.oribatejo.pt

Coisas do caruncho local

Aqui pelas várzeas, berças, gândaras e charnecas continuamos todos a criar o pau carunchoso que é a vera riqueza nacional de que se fazem os santos.
A Lurdes do Ernesto dos Melões mostra ao peito uma medalhinha muito benta que era para ser de prata-de-lei mas, como a comprou àquele senhor do Banco que agora está preso, afinal deve ser só de casquinha, por mais santinha.
A Isaura do Loureiro da Venda não tem medalhinha nenhuma – se a teve, deve-a ter perdido dalguma vez que se portou mal ou com o carteiro ou com o homem das águas da Câmara.
O Felício da Ros’Amélia das Couves anda inconsolável porque não há direito dizer-se tanto mal do senhor Presidente, o da Junta daqui, não é o de Lisboa, e não “lhes” (isto é, a “nós”) acontecer nada, nem prisão, nem multas, nem problemas.
O Ricardino, que foi cabo miliciano em África e voltou sem um olho, sem pensão e com um cantil furado à bala, não acredita nem em nada disto nem em ninguém, e ainda no Natal passado quase foi preso por ter partido o televisor do Loureiro da Venda à cabeçada com o capacete da motorizada posto.
O filho do Jeremias dos Fogões, diz-se que abafa a palhinha.
O Manel da Gervásia dos Frangos também diz que o filho do Jeremias coiso aquilo da palhinha, mas que ele se calhar é que tem razão porque desde a implantação da República sempre os houve, até por isso é que trocaram o Rei pelo Gay.
Eu por mim acho estas coisas todas muito tristes, mas não me ralam nada, valha a verdade, porque o meu já cá canta, que eles em França mandam sempre a “retrete”, que é como eles chamam à reforma não sei porquê.
Modos que é assim, cá se vai desandando para a cova o mais devagarinho que se pode, uns dias chove, outros dias bate sol, como nesta história toda do Dr. Dias Loureiro, que não tem nada a ver com o homem da Isaura apesar do nome, e se calhar com o do Banco das medalhinhas também não tem, não sei.

29/01/2009

Mais Três Coisas Inconsequentes




TÁBUA

I. Dísticos também Pluviais

Souto, tarde de 29 de Janeiro de 2009

II. Não deste Lado

ibidem

III. Dois Sítios

ibidem


******


I. Dísticos também Pluviais

Souto, tarde de 29 de Janeiro de 2009




Como os gatos são alguns olhos:
perfeitas máquinas de brincar e de matar.

As nuvens pelo chão, pelo céu as folhas:
muito gosta de espelhos o deus sem rosto.

Uma pastorela, sete barcarolas, uma bailia e duas tenções:
tão pouco de tanto que foi um tal Martim Codax.

Não gosto de poetas pela cidade:
sujam tudo de água e de sal.

Disciplina, rigor, nenhum ardor e esperança alguma:
uso eu em prol do inconsequente.

Esta mão:
estrela desconectada.

Placenta:
medusa por terra.

Agora eu furto cores:
e sou alvinegro agora.



II. Não deste Lado

Ibidem



Estou do lado do rio onde a piedade não medra.
A minha cidade é uma laranjeira,
as luzes da minha noite são-no se laranjas,
não deste lado medra já a piedade.

Colecciono fotogramas ferroviários.
A minha língua é de ferro.
As mãos, de arame.
A piedade não move.

Já não pergunto, muito menos questiono.
Morre-se no inverno, nascer é no outono.
Pode de outros ser o verão a condição.
Deste lado, não.

É como trazer o vento às costas:
é como levar aos ombros um cão de prata:
é como suportar na cabeça o olhar:
o desejo.

O que é como contar as ondas com as mãos?
O que é como separar estrelas de rosas?
O que é como unir irmãos desavindos?
É não nascer.

Estou do lado do rio onde a piedade não medra.
Urdumes e prosápias, tenho muitas.
Faltam-me moedas, isso sim.
Não deste lado medra já a piedade.

O meu amigo trazia os braços tintos de sangue.
Não lhe perguntámos do que vinha nem de onde.
Trazia-se tinto de sangue e não falava:
tinha de novo nascido.

Deste lado da minha vida as laranjas, luzes nocturnas.
Os cães magros unindo as topografias, deste lado.
As crianças insones cujos nomes repetem os criadores.
Deste lado da minha vida o barco, as vias de vidro.

Olhos que semelham sons ou bandeiras
– conheço.
Olhos como ele os tinha na manhã
– conheço nenhuns mais.

Os magarefes de cavalos sabem do que falo deste lado.
Falo de rotas da seda, da pimenta, do marfim
nenhumas.
Quais rotas, quais carago.

Nenhuma piedade e esperança alguma,
não deste lado, onde as crianças e os cães de prata
suportam a condição do alheio verão,
a autoridade outonal dos deuses da chuva.

Pelas encostas os casais gizam ardósias,
o mais que podemos é o milhafre, não a águia,
nem do sul o condor ou o albatroz do belo norte,
onde a lavanda lava por dentro o ar frio.

O mais que podemos, é tudo deste lado, onde
piedade nenhuma, embora algum idioma.
Das gentes carregadoras de ventos e pianos,
o lugar do lume, o barco, as veias do vidro.

As nuvens ladrilham o chão em charco,
revoam pelos ares as folh’aves outonais.
Isto agora só era preciso um barco.
Um só barco, nada mais.

Não, deste lado, a piedade
não.



III. Dois Sítios

Ibidem



1. Bruxelas

No Outono de 2002 isto já era assim como vos conto:
as coisas olhos adentro.
Éramos já quase todos os últimos, que tão poucos são os primeiros – em qualquer coisa, de uma coisa qualquer.
Cheguei, o hotel era limpo, a cidade pareceu-me tão boa para morrer como para viver – qual qualquer outra.
Estava frio, fazia sol, ruas e avenidas eram limpas, o comércio funcionava, a língua era estranha e bárbara e cheia de esquinas.
Comia-se caro e não mal, também o mais eram quatro dias, não mais.
Foi onde por acidente nasceu o argentino Julio Cortázar.
Comprei umas coisas para trazer para casa com a ideia de lá ter estado, fiz mal, podia ter poupado o dinheiro, bastava ter escrito isto para ter lá estado.

2. O Meu Cão

O meu cão chamou-se Canino Rapazita dos Santos Abrunheiro.
E foi o lugar mais humano onde até hoje (até sempre)
vivi.

Cenas da Vida Pluvial

© Roger Fenton
Cloud (study, 1859)




I. Uma Vez

Souto, manhã de 29 de Janeiro de 2009



Deve estar a chover em Londres e nós aqui.
Uma criança olha de dentro da mercearia o que chove no pátio, ave engaiolada a cristal pobre.
O pinheiro mais alto lava a cabeça primeiro do que os outros.
Cheira a café e a sabão.
Os telhados parecem sangue de novo fresco.
Uma vaca serve de escala a um prado breve.
O homem do Volkswagen, é pena ter morrido.

Hoje não há azul.
Um prédio amarelo-canário acinzenta-se na bátega.
Um cãozito castanha defeca perto da vaca.
Insólita para sempre, a palmeira da aldeia sonha com o Sol.
Os gajos do saneamento lutam contra uma tampa.

A criança é de cabeça vermelha e olhar coralino.
Aquela criança não precisa de Nicholas Blake, só de que não chova.
O que chove, amortece a autoridade daquele sinal de trânsito.
Dão à criança um pacote de bolacha-baunilha, fazem-lhe uma festa na cabeça,

uma vez por chuva,
uma vez por festa.



II. Um Verso de Visita

Pombal, entardenoitecer de 28de Janeiro de 2009



Hoje não fui ver o mar, fiquei por casa.
Entardenoitecendo, saí a rever a terra.
Negrejei pelo subúrbio da vida como quase sempre tenho feito.
Hoje não fazia tanto frio, as bocas não atiravam vapor.
Numa pastelaria, esperei que um verso me visitasse, aquele verso que há tanto me procura e eu não encontro.

Torno-me avoengo, eu sei.
Benedigo, enfim, os aparatos mudos da melancolia, isto que faz de um homem uma espécie de árvore,
uma palmeira da chuva.
Pássaros são acontecimentos de tinta
– e eu só posso lápis.

Tomei café, comi laranjas, fiz um soneto, bocejei.
Andei e desandei.
Esta noite reverei o mar quando, dormindo,
puder quase não pensar.



III. Cantiga Tida ao Sol

Pombal, manhã de 20 de Janeiro de 2009




Estive ao sol da manhã na praça
como se fora um homem de antigamente
numa praça de antigamente
a um sol de outrora.

Faltava-me na cabeça o chapéu preto de Afonso Duarte, príncipe poético da Ereira.
Faltava-me ter tido colocação na Companhia Nacional de Navegação há 70 anos.
Vale-me não me ter faltado o sol, à falta de sal e de navegação e de mar.

Cortei o pão com gentileza, usei bem as mãos.
Sou o homem que quero na pior das hipóteses: um cavalheiro pobre que cheira a sabão.

Devo ter tido outra vida, mas as casas de artistas não pensionam metempsicoses por aí além.
Devo ter sido outra vida.

(E então a música torna-me devagar, vê:)

Um coração na gaiola
Um passarito na mão
’ma cravelha de viola
Um rebento em floração

Uma tricana cantante
Um direito a ser feliz
Uma promessa adiante
Um dizer que se não diz

Uma garrafa de anis
Um vizinho adoecido
A esperança de um petiz
Ex-mulher de ex-marido

Um peixe que luz de prata
Na figuração anil
Quem mui vive muito mata
Mata cem e mais de mil

Quem tem credo dorme junto
Quem não tem é só que dorme
Trinta quilos de presunto
Vêm de um porco enorme

Cantigas tidas ao sol
Entre a passageira gente
Com chapéu de aba mole
Triste e preto, antigamente.



IV. Integral com Navegação e Banda

Pombal, manhã de 20 de Janeiro de 2009



Agora não desejo já o que aliás não poderia ter.
Uma colocação na Companhia Nacional de Navegação.
Um diploma rápido e falso em Literaturas Africanas.
Uma semente maligna.
Ou uma vida mais ainda que esta digna.

Devassei em meu interior tempo lareiras arrefecidas.
Cheguei tarde a quase tudo, a começar pelo nascer.
(Mas não se deve passar as terças-feiras culpando as segundas
e as primeiras.)
Só quis ser navegável como uma floricultura idiomática.
Isso – e nunca ter chumbado à matemática dos idiotas.

Quem viesse do lado do mar, haveria de estranhar-me.
(Olha este gajo ainda por aqui etc.)
Perdoa nos outros os teus erros,
digo-me eu a ele.
Perdoa aos outros os teus erros,
anda.

Aos domingos de antigamente, no coreto a banda.
Ourejava da fliscornista a mansa cabeleireira,
negritava retintamente o bigode do bombeiro,
o tarola rufava anda-não-anda,
dia de funeral é dia de bebedeira,
já só desejo ora o meu tudo por inteiro.



V. Desimport-Export

Pombal, manhã de 20 de Janeiro de 2009




Uma das coisas mais formosas que me aconteceram, juro, foi ter vindo fazer a barba e aperceber-me da completa, total e inegociável desimportância de tudo: barba, gilete, espelho, coisa e poema e formosura.



VI. Descrição de Existência(s) em Casa de Pasto

Pombal, manhã de 20 de Janeiro de 2009



Lombo assado no forno e feijoada de chocos, meias-doses individuais.
Copos camélia-forma, armàriozinho de galheteiros.
Portas de saloon-cowboy dobradiçando lavabos.
Cozinheira absolutamente reumática mas sorridente.
Toalhas de papel, naturalmente.
Chão ladrilhado a mosaico 30 x 30.
Pratos de parede de louça grossa.
Fragrância forte a cebola e a vísceras.
Um guarda-chuva verde esquecido desde ontem no coiso de latão.
(Fora: vizinhança comercial de drogaria, advogado, camisaria, pastelaria.)
Às quatro da tarde, fígados de aviário em pires-frango: cominhos e pimenta laváveis em vinho branco.
Até à noite: uma paciência portuguesa,
uma terça-feira.



VII. Estas Coisas assim Pessoais

Pombal, manhã de 20 de Janeiro de 2009



Às cinco e um quarto da manhã, trovejou e granizou com fartura, mas ele há sempre razões para esperança.
Carreiram formigas a negrito pelo lado enxuto da terra.
Dardos de sol alvejam a amarelo lances e esquinas.
Passa um homem de avental branco explodido a vermelho como se Pollock a carregar meio porco na longitudinal.

Depois de almoço, entristecemos todos de melancolia digestiva.
Isso é normal, até porque às cinco, mais coisa menos coisa, uma quase euforia ganhará alforria própria, como um menino recente respira sem pedir ar a ninguém, sequer à respectiva mãe.

A sociedade pode ser uma coisa maravilhosa, amestradas as almas.
(Tem-se apenas de não sofrer de mar nem de mais os cinzentos, os prédios em blocos.)

Eu muito naveguei e navegarei entre bons-dias que o não foram.
Eu muito aprecio ainda e cada vez mais
os quintais
que foram, são e serão
países internacionais
para a criança
que os povoa
de estádios.

Estas coisas assim pessoais.



VIII. Surf

Pombal, manhã de 20 de Janeiro de 2009



Uma onda de água mia e tsunamia os olhos das pessoas de todo o mundo por todo o mundo.
Não há nada a fazer, é a força da natureza, é a força da água.

As pessoas doem-se muito, umas porque são mães, outras porque são pais, outras porque são filhas,

tem ondas.

Dois Sonetos

I. Soneto com Chuva e Chá

Pombal, entardenoitecer de 28 de Janeiro de 2009



Uma tinta aguada plasma a vida destes dias,
pelas ruas cachorram as gentes a existência.
As farmácias pulsam mui árcticas, mui frias.
Parece-me que chove até na consciência.

Ao longo da avenida, a vida desce – e pensa-se
a si mesma qual espelho breve de turvas águas.
Um cavalheiro cachimba e uma dama dispensa-se
de comentar das outras as chitas e as anáguas.

Apesar de o mor pesar, isto é bonito.
Uma loja de chá atrai um pequenito
à montra, onde fulgura um cesto de doçarias.
A mãe do petiz, olhar debruado a negrito,
entra e compra ao seu pequenito
um doce que adoça a vida e seus dias.



II. Soneto talvez Verdadeiro

Pombal, tarde de 26 de Janeiro de 2009



No futuro teremos sido amados e esquecidos,
deitados ao mar, atirados das pontes,
insolados de luar, fendidos e ofendidos,
sublinhados a poente doente de horizonte.

Ontem as mães terão tossido placentas,
invocado a cosmética e a solidão dos pais,
cozido a pescada e riscado sebentas,
sonetado a preceito no peito, onde dói mais.

Hoje eu amo a vida, amanhã não sei,
como ontem também aliás não soube.
A vida é tudo o que tenho, sou o rei
apenas da parte que me coube.

Estas coisas, tal como os sais, os cristais e os brometos,
podem, Gedeão, não ser verdade – mas dão sonetos.

Terceira CRIATURA sai em Abril que vem


28/01/2009

Um Poema por causa do Amor e Outro por causa do Frio

© Sandra Bernardo
Cabanas de Viriato,
8 de Setembro de 2008




TÁBUA

I. Por Amor ou Coisa Assim

Pombal, tarde de 26 de Janeiro de 2009

II. À Queima

Souto, tarde de 21 de Janeiro de 2009



******


I. Por Amor ou Coisa Assim

Pombal, tarde de 26 de Janeiro de 2009


Espera-me um pouco onde não chova,
vou morrer mas tenho tempo, espera-me
nem que seja por delicadeza ou amor
ou coisa assim.

Já fui ver o mar onde a terra começa a ser céu,
já alimentei as aves e os peixes e a nobreza dos gatos,
já trabalhei duro e fundo, já andei no mundo,
agora já não.

Tem paciência comigo, por favor.
Às vezes entristeço como respiro, vou ver as pessoas
e como elas sou pouca gente parda e parada
no Inverno portátil do coração.

Eu tenho uma vocação de ti por natureza,
ainda não tinhas nascido já eu te pertencia,
como às pedras pertenço e à poalha azul do ar,
quando o Verão nos perdoa a submissão.

As coisas principais estão se calhar nos gestos,
não nos livros, não sei, tento saber mas desconhecer
é se calhar a vera missão do coração,
aquele que pensa além do corpo, ante o mar

e a segunda-feira,
dia em que espero que me esperes.




II. À Queima

Souto, tarde de 21 de Janeiro de 2009

O frio destes dias queima-os.
Estamos todos sozinhos, cada um com seu frio em seus dias.
Emolduro a vida com a minha boca.
Boca e mão direita cercam a vida de palavras duras:
frio, saca, autocarro, café, placa, matrícula, janela.

Haveria de pegar-te na mão e levar-te ao futuro da infância.
De frio, os pés roxos como cardeais.
Na infância, os amados animais
atirando palavras terríveis:
eternidade, clínica, fronteira, monte, marco, tarde, frio.

Se era o Verão a nossa maior condição?
A essência vivia porém no Outono,
festim da nudez e do abandono.
Não, não era o Verão a maior condição.

O teu pai envelhece sentado temendo a Deus,
esse passador de passaportes para a lama
que mais castiga a quem mais O ama.
E também a Ele e a ele os dias queimam o frio.

Se tudo o que um homem pode, é um poema – está
tudo lixado nesse homem.

Pode ele ter sido rapaz, fresca voz ao vento,
inumerável e incontado, pode ter sido – agora,
queima-o o frio do eterno Inverno.

Emaranhada de silvas a cristã cabeça,
engolidora do fogo das laranjas a gelada boca,
pátrias do mijo os ossudos pés – onde raio
se terá metido o olímpico corpo
que todos alguma vez fomos no futuro da infância?

Um homem ama a mulher a que chegou
por via de insuspeitados esforços – e
tal mulher compreende mais a vida do que ele
pode – porque de poemas vive ao frio,
não de decisões.

Chão, terreno, esse homem é um de nós-homens, voz
picotada pelo que chove, par de braços esmaecidos,
mariposa rumo à vela irresistível.

Pando, bolinador, homem cercado de rio por todos os lados,
de trementes flancos, coleccionador de calendários de bolso,
comedor de bifanas frias algures no Sul,
nostálgico de um árctico Norte a que nunca foi nem irá.

Passeia à noite cães invisíveis,
o temente-a-Deus, o alma-do-Diabo.

Bicho inumerável e enumerável,
lítio sopesando seu coração repeso,
dele é a maravilha do esquecimento,
nem me lembro de quem te falo.

Pega-me tu na mão, leva-me a conhecer o (f)rio,
as bandas militares, a efusão das rosas municipais,
os bailes absínticos das nubentes cor-de-rosa-municipal,
a tragicomédia da língua portuguesa nos preçários dos bufetes,
a meia-dose que a alegria é,
feitas as contas,
leva-me,
anda.

Mais nos valera a obstinada estupidez da religião,
o umbilicalismo idiota dos messias-de-si-mesmos,
a opaca obtusidade dos moralistas-de-cagalhão,
a córnea intemperança dos que nunca-amaram-só-foderam.

É frio até o sol destes dias, como químico é pensar.
Volteia em torno a álgida noite que de manhã começa,
propiciadora de uma caligrafia tudo menos solúvel,
como solúvel é a cevada (20 % de café) na caneca romba.

E no tanque os queimados meninos nada sabem ’inda
do frio que aí vem, nem do futuro que para aqui veio.

26/01/2009

Crónica nº 87 da série Rosário Breve (O Ribatejo, www.oribatejo.pt)

Da Maria Absoluta e doutros insectos

Somos um país de insectos. Como insectos, somos esmagáveis com uma facilidade de chinelada.
Vem a imagem lepidóptera (mais a ver com traças do que com borboletas) da tragicomédia em que esta terra se volveu.´
É o tremendo sr. Sócrates a requerer a “Maria Absoluta”, essa gaja tenebrosa.
É o inenarrável sr. Madail, ao arrepio das finanças nacionais, a encomendar o Mundial da Bola 2018, depois do fartote pato-bravo que foi o Euro 2004.
É a “benesse” ético-coisital dos casamentos gay (com adopção ou sem adoção de meninos?).
É o desbocado sr. Policarpo, cuja religião não permite sacerdotisas, a dizer aos papás que livrem as filhas de casamentos com aquela maltosa que passa férias em Guantánamo.
(E já que a crónica mete o Cardeal ao barulho, pegue-se na Bíblia, encontre-se o Livro dos Provérbios e leia-se este apotegma: “Por três coisas se alvoroça a terra, e a quarta não a pode suportar: pelo servo, quando reina; pelo tolo, quando anda farto de pão; pela mulher aborrecida, quando casa; e pela serva, quando fica herdeira da sua senhora.”.)
A “senhora” em causa é, claro, a Maria Absoluta. O “tolo” é quem casa com ela.
Assim andam e desandam as coisas cá pelo “reino cadaveroso”. A canalhada mandante é vil. A desvergonha atinge foros de paroxismo. O saque é geral. A perspectiva é nula. A expectativa é magra. O “poder local” deveria levar “h” depois do “p”. O bacalhau sabe a tainha. O vinho das cooperativas é todo igual ao litro. E a traça nunca será borboleta.
Agora, que o meu leitor volte a cabeça de repente e para cima: vê? É o chinelo.

20/01/2009

Atol Matizado


© Sandra Bernardo
Teatro Viriato, Viseu, 3 de Setembro de 2008


Casa, Souto, madrugada de 20 de Janeiro de 2009



Pensei que o homem de que falávamos era poeta
por me terem dito que misturava tudo,
mas parece que a coisa, afinal, é do foro neurológico.

Ainda assim, julgo-me capaz de o perceber quando
ele me falar.

Manhã muito cedo, integro a fila dos cantoneiros contratados
à hora.
Havendo trabalho, trabalho.
Não havendo, vou aos chineses comprar lápis e indago
o foro neurológico deste lado da vida e da avenida.

Tenho trabalhado muito nisto, graças a Deus.
E posso dizer que a coisa tem dado resultados, ’inda
no outro dia o Felismino,
que também tem um blog como toda a gente,
me disse
Eh pá, porreiro, passa pelo meu blog que eu também
escrevo poemas e versos e assim.


Agora, do que gosto mesmo muito é

da trovoada nos olhos,
da assumpção matriarcal das compradoras de peixe,
dos senhores que abrem as gabardinas como cortinados nus,
dos cãezitos que trotam como vírgulas ao dispor do pessoal,
das camionetes carregadinhas de mato com uma forquilha em cima,
das agências de viagens carregadinhas de sol fotografado,
das helenas com bandós e melenas,
das madalenas em riquexós e outras cenas,
do Camões Lírico fluviando ainda e para sempre,
do Carl Sagan ter sido baptista metodista graças a Deus,
das cremalheiras das motas como dentições de óleo,
dos pintores municipais,
dos poetas municipais,
dos neurologistas municipais,
do preço das romãs em época de dióspiros,
das sucessivas traduções de Rilke,
da prestabilidade dos manetas nas passadeiras com ceguinhos,
dos esquilos que farruscam de ruivo a palidez do inverno,
das capas dos discos do Fausto Papetti
(Viggiù, 28 de Janeiro de 1923 – San Remo, 15 de Junho de 1999),
do senhor que vende bananas e latas de cera ao pé do quiosque,
da filha desse senhor, junto a quem o milho perde a bondade,
do rir-me sozinho,
de cagar de manhã a horas certas,
dos poemas que batem tipo 30 e tal por cento certo,
das passadeiras com ceguinhos e manetas atrás,
das cordas do sangue atando as sacadas de linfa,
da tundra e da taiga,
dos decotes pulsando banha,
das sextas-feiras à noite no baile das velhas,
dos rótulos mil-e-uma-noites das garrafas de ponche,
dos posters do Sporting nas carvoarias de antigamente,
da escrita da condensação nas vidraças,
do SG Gigante a preço de 1981,
das chávenas azuis que a minha mulher comprou não sei onde,
da vilegiatura lunar de foro neurológico,
de esparguete com azeite picado de alho,
de electricistas com opinião,
de taxistas mais salazaristas do que o Papa,
de crimes de guerra mas só depois da vitória do Manchester United,
dos teus olhos molhados como algas que olham,
da rosa-dos-ventos que o coração fundamentalmente é,
das mãos do meu Pai,
do carácter completamente velocipédico da vida,
dos cinzeiros atulhados de falangetas roídas,
dos cagalhões boiando à vista em dia de visita do Ministro do Ambiente,
do Yukon,
de sapatos verdes e vermelhos,
do substantivo atol,
das cicatrizes que o Tempo tatua nos cantos mais íntimos,
do Código do Notariado,
das putas que assessoram e das assessoras que putificam,
do outono,
dos alumínios entre máquinas agrícolas,
de vermute,
de saber o preto-e-branco de cor,
de queijo de cabra aspérrimo,
de pêras-de-inverno,
de senhoras consabidamente,
de alperces, de gatas e de alpergatas,
de não morrer no sono,
de dormir a vida,
de horários de carreiras para os lados do mar,
de perceber tudo ali na hora,
da munificência dos dicionários,
das capas dos discos de Ray Conniff
(Attleboro, Massachusetts, 6 de Novembro de 1916 — Escondido, Califórnia, 12 de Outubro de 2002),
de quando dá à minha Mãe para a galhofa apesar-das-dores,
da árvore do funcho das garrafas de anis,
do adjectivo matizado,
de máquinas verdes como periquitos,
de Alexandre Herculano,
de sítios onde coçar as virilhas não é índice de iliteracia,
da CIA não,
de Henry James sim,
da cidade de Paris pelos olhos de Maigret,
das preposições que regem ablativo,
das casas amarelas,
da elegância anelar de Saturno,
de lápis Viarco,
de tomar banho contra a corrente de jogo,
do olhar dos burros encontrando o meu coração,
de flores furta-cores,
de pensar que um homem é poeta,
das capas dos discos de James Last
(nascido Hans Last a 17 de Abril em Bremen),
de sardinheiras escarlateando varandas de mansarda,
de sardinhas de lata,
da Rocha Conde d’Óbidos,
de saber datas e nomes completos de cor,
da música imanente,
do Quarteto de Alexandria,
de Demetrio Stratos
(Alexandria, 22 de Abril de 1945 - New York, 13 de Junho de 1979),
de incursões oblíquas em outras possibilidades de sentido,
de palavras fulminantes,
de certa barra de chocolate comida em 1970,
de 1970 em geral e desse Julho em particular,
de desgraças que dêem mais livros do que de fazer,
de arrumar a biblioteca,
de quando está frio mas é possível escrever lenha,
de cafeteiras de esmalte azul,
de orelhas grandes atirando pêlos,
de pomadas de lavanda para os pés,
de plásticos com bolhas para rebentar

e de arranjar trabalho manhã muito cedo.

Gosto.
Não há cá misturas.

Quando um Gajo Merece, não Tem que se lhe Aponte

Casa, Souto, madrugada de 20 de Janeiro de 2009



Mereço a manhã, mereço a agonia, mereço o novo dia.
Tenho feito alguma coisa pela vida, por estes dois dias
que ela é.
Já não sou um dos bichos do carnaval, lamento.
Não vou posicionar-me sobre qualquer alteração viária.
Um gajo é apenas um gajo, uma instituição onomástica,
um cadastro mecanográfico, um príncipe em casa, um cão
na rua.
Não tem mal nenhum que assim seja.

Agora os ventos, é outra coisa.
Os ventos são importantes a ponto de se lhes associar uma rosa.
Os ventos são o sentido mais alto dos moinhos, que já de si
não são nada baixos.
Todo eu dou folhas quando me dá o vento.
Dou folhas de rosa – e mais não sou maricas.
Eu digo estas coisas porque elas são necessárias na hora.
Depois a coisa passa.
Vai no vento.

Mereço a manhã, mereço a agonia, mereço o novo dia.
Tenho trabalhado muito em prol da sociedade mais larvar:
corpo-saco que do sofá perora para o mundo certos transes
versilibristas por graça.
Do rol de cartões nasce gente hirsuta, toxicomental, gente só.
Quando morava em Lisboa, saía à noite a ver as galerias do
Teatro Nacional, onde os actores do abandono apresentavam
a produção.
Para disfarçar que os via, disfarçava que via os cartazes dos bancos,
o juro à ordem, a Europa toda ao alcance de uma moeda e de um
cabrão dum yuppie qualquer.

Hoje compro lápis nos chineses, que os viarco estão
pela hora da morte.
Saio de manhã muito cedo e espero que os chineses abram,
eles abrem, compro-lhes os lápis e toca para o café a
escrever a rosa-dos-ventos do costume.

Mereço isto, se calhar mereço isto.

Música que Veio de Noite

Casa, Souto, madrugada de 20 de Janeiro de 2009



Vim trabalhar para a música e ainda não voltei a casa.
Uma pessoa perde-se, o que não falta é bosque:
madeiras e sopros, lobos escuros como notas na neve pautada.

Agora não sei como hei-de fazer, embora saiba o que.
Às sete da manhã, vou ali ao café, há pacotes pequenos
de bolacha-baunilha, a malta reúne-se lá a discutir a última
jornada e as estrofes mais recentes do nosso mundo e o que
veio de noite enquanto as mulheres dormiam.

O problema é que depois
se vai tudo embora nos respectivos camiões,
tenho de voltar sozinho para o bosque, sopros nas madeiras, passaritos de apogiatura tilintam no cimo dos cedros,
a mulher da erva sente-se através,
não tenho fósforos, tenho pó de café, tenho cafeteira e tenho lenha,
mas esqueci-me de comprar fósforos no café para o café.

A meio do concerto, não dá para telefonar, os músicos irritam-se,
há que respeitar os músicos por dentro, eles tocam dentro,
se uma pessoa prestar atenção acaba por não pensar tanto em casa,
consegue suportar a manhã, o gelo que vitrifica a respiração,
o vago pânico de ter vindo trabalhar por conta das sereias.

À falta de fósforos, fuma-se vapor, o garruço descido aos olhos,
os pés de pedra na tumba das botas, as mãos estalando como galhos,
mas ainda assim dá para trautear aquela inclinação a verde,
o ponteiro do pinheiro que verga a verde na lividez do ar,
e não é preciso tirar um curso superior para se saber que perto
o ribeiro percute peixitos, breves, a compasso do que tenha
chovido.

Vim para a música ver se distingo de vez tristeza de graça.
A melancolia é apanágio das árvores, mas uma pessoa em bosque
acaba por lhes solfejar a íntima batida – todo o cuidado é mouco,
portanto.
Vejamos: isto é a tristeza, aquilo é a graça.
Nisto, o sino canta a meio caminho entre nós e um alegado Deus,
que, a existir, só existiu para Bach.
Vale-me que não tardam aí os madeireiros: clarinetistas quase todos.
Pode ser que um deles traga fósforos e o mapa de retorno a casa.


Segunda Passagem / Terceira Passagem

Segunda Passagem



Casa, Souto, tarde de 19 de Janeiro de 2009




Quanto temos – é quanto nos basta:
os olhos dos animais, portais astrais
que explicam a terra e a vida e a passagem.

Hoje, quantas vezes a nossa vida como se vivida
em outra vida,
além de ontem, para lá do que é fragor e passagem.

Nos olhos dos animais os vestidos vermelhos das mulheres.
Verificar isso sem problema nem solução, só passagem.

As crianças todas líquidas nos olhos dos animais.
E portas tão altas, que devemos chamar-lhes janelas
noutra língua, idioma que sobrepassa dentro dos pais.

Temos, os filhos, os filhos e este casaco, esta cafeteira,
este cesto de limões, esta colcha de embrulhar avós,
os mapas siderais em musgo pelas paredes,
pelos olhos dos animais.

Somos a passagem – agora a temos de ser, com a licença
de nossos pais.



Terceira Passagem




Pombal, tarde e noite de 19 de Janeiro de 2009



Sento-me e recordo-lhe as mãos.
Eram, digo, um par de coisas outonais.
Não eram mapas do futuro, eram madeira outonal.

As mãos antecipavam esse homem recordado.
Um arroio pulsava perto, emoldurado de arvoredo.
Ido tempo – e homem ido.

No pátio, o vento falava no pessegueiro.
Patos, pombos, cães, gatos, pardais – tudo nos olhava,
do profundo além líquido da Criação,
a esse homem e a mim, que começava
para que ele pudesse acabar.

Estou sentado num dos veios da tarde.
A noite mana já da cabeça, esta flor escura.
Estou a ver-lhe as mãos, a vê-lo nestas.
Outono-me sem dor nem recado.
Lanço as minhas redes às águas cantoras
muito frias.
Espero para trás.

******

Os calcanhares do coração roídos pelo relógio
– também fazem parte dos corpos,
os sentados como os recordados.
E o que faz parte nunca parte.

Sento-me perto dessas mãos de novo vivas:
de novo vivas para que eu possa ser antigo.
Vejo-as que tocam papéis de Paris, do Rio de Janeiro, de Londres,
de Coimbra.
Vejo-as de penar.
Vejo-as de pensar.
Vejo-as pensar a vida fora do corpo que antecipam:
formosas estrelas, cabeças de ouro, couro, ossos:
ajuntadoras de destroços.

Eu agora também recomponho papéis: liceu, aniversários,
fotocópias de Pierre Nordon sobre Conan Doyle, fadas e banshees,
anjos e motociclistas, hagiografias e gliptognosias,
transparências cromadas à maneira da oftalmologia infantil,
recordação de mãos que trocam de esquerda e direita
em espelho:
estas minhas já nas dele, quando ele.

(E em tudo isto, naturalmente, claramente,
o mais puro amor murmura.)

(E o coração faz-se rola – e arrulha
o mais puro amor.)

Vejo tais mãos de aqui,
aqui sentado.
Celebro (como elas celebraram) a glória humilde dos animais.
O vento no pessegueiro, nos álamos, nos robles, nas oliveiras.
Patrocino a espera, a demora – e nem ânsia uso já, mas
demora e espera.

******

Pulsar de estrelas concatenadas em vísceras:
nutrição e passagem.
Fogo e trabalho – de tudo as mãos do homem são capazes.
Água e fadiga – de tudo as mãos do homem são capazes.
Capazes, rapazes.

Febris, às vezes, as mãos que de um homem,
num homem,
amei.

Eu a querê-lo vivo
manualmente.

Pulsar.

******

Sento-me num qualquer aqui igual ao do leitor.
Falo do pai profundo do leitor.
Falo dessa morte patriparticular que tocou o leitor.
Falo de um leitor de cassetes em barraca de feira
franca,
francamente
– mas sem paternalismos.

Invoco a begónia e a gardénia,
a estónia & a eslovénia.
Convoco os moços-filhos ao mato da recordação manual.
Aleijo um limão pelo lado do sangue transparente:
e o amor me assiste tão em limão quão em lesão.

Homem que ama homem.
Duas mãos quatro.
Portanto oito.

******

Mãos que mudam o outono da direita para a esquerda.
Duplos pentagramas de unhas tristes e limpas: mãos para
um catecismo de filhos sem o embuste de Deus, mãos para
um danúbi’azul só por branca recordação, mãos para
o filho.

(Agraciaram objectos-despojos-destroços, vivos hoj’inda:
cotos de lápis, pagelas, páginas de guarda, centenários
como o do Irmão Doutor Elysio de Moura, do Professor Karma
(o que casou com a cigana dos fados),
da Mansa Puta que nos Pariu a Todos
por-cristo-com-cristo-em-cristo,
a todos e a rodos: as mãos dele agraciaram-me os objectos
perdidos, naturalmente perdidos – e
secos e molhados.)

Mãos que (se não) mudam.

O tempo-térmita toca, fura, rói, escava e dói.
Não, espera!
Não tem de doer.
Diz:

******

Era então amanhã, isto de amar mãos.
Mapas afinal do futuro enfim.
Coisas outonais (como os olhos dos animais).
Estrelas de pau, ossos de pão, pato & pombo & gato & pardal
& cão.

Extensões siderais da terrena natura.
Mãos caligráficas, redentoras, tristíssimas e branquíssimas:
mãos de pão & pau & pai.
Era então amanhã que as recordava,
agora enterradas em lama,
seccionadoras de begónias & gardénias,
tontas e bonitas, estelares, funâmbulas,
coisas recordadas em meu assentamento assentido,
sentado.

A última luz sobe chuva até órgãos de igreja.
Canora é a toalha de água ligadora de céu & terra.
Um pai, um filho (mas não fiz rapazes,
Pai),
(canora na mesma,
filho).

18h55 de uma tarde indiferente ao senhor,
por graça e glória.

(A gente às vezes está entre homens e pensa no pai
mas não diz nada, coisa outonal entre coisas
outonais.)

Mas mãos caligráficas
escrevendo por estas.

18/01/2009

Livro novo de Nuno Dempster

Notícia que aprendo em - http://esquerda-da-virgula.blogspot.com/

Viu a luz na segunda quinzena de Dezembro, por iniciativa da Edições Sempre-em-Pé. Com 290 páginas e 216 poemas revistos, engloba toda a minha produção poética de dez anos, de Março de 1998 a Fevereiro de 2008, tendo rejeitado o que, não constando do livro, foi porém dado a ler neste meio até final do dito mês de Fevereiro.
Cessada a azáfama das vendas de Natal, a editora prevê que até ao fim de Janeiro esteja nas livrarias, sobretudo do Porto e de Lisboa, a seguir em outras cidades e desde já na própria editora online.
Deixo o poema de abertura:
ÍTACA

Quando partires, em direcção a Ítaca,
que a tua jornada seja longa (...)

Konstantinos Kavafis


Se ao longe imaginares Ítaca,
que não te dê saudades.
Uma ilha é um monte sem caminhos.
Descansam nela as aves migratórias,
e a gente que a povoa
gasta o tempo a sonhar aonde irão
as aves no seu alto voo
quando partirem.
E sobretudo Ulisses há-de
segui-las com os olhos,
lembrando-se de Circe.
O azul, digo-te, é uma cor volúvel,
e o céu e o mar são só desertos.

Tim Buckley cantando para a Sereia

Nenhum Há-de Escapar

Pombal e Charneca, noite de 16 e madrugada de 17 de Janeiro de 2009





Habitam os espelhos como os animais, os campos.
Dominam o olhar como as águias, as montanhas.
Fluem a atenção como os barcos, os mares.

Os mortos.

Temem os espelhos como os infelizes, os rios.
Cegam a boca como as mães, os filhos.
Exilam o corpo como as montanhas, as águias.

Os vivos.

Medina Carreira sem papas na língua

O meu amigo King George chamou-me a atenção para isto. É de facto algo a reter e a não perder: http://sic.aeiou.pt/online/video/informacao/Nos+Por+Ca/2009/1/istoeumafantochada.htm

15/01/2009

Uma crónica e uma coisa que mete caras

© Rebecca Lepkoff
Untitled, New York, circa 1948



Momento grave com amor
Rosário Breve nº 86, in O Ribatejo (www.oribatejo.pt) de 16 de Janeiro de 2009



Às seis da tarde, já noite, costumo ir amar a Pátria para um café sossegado entre praças esvaziadas pelo frio e pela economia. Fico ali coisa de uma hora a ser o contrário do mar: não faço ondas nem devolvo náufragos.
Dá-se a combustão espontânea do tempo, faz-se hora de ir radiofonar, pago e desando.
No trajecto entre o café e o estúdio, assisto à exposição permanente e universal do meu pequeno e não admirável mundo: o cabelo no chão do salão de cabeleireiro, a luz da farmácia como um clarão glauco, o erro de acentuação na placa de um solicitador, a melancolia aritmética da mini-mulher da caixa-mercado, a demanda esfregona na padaria que encerra, os polícias tão parecidos com pombos e os pombos tão parecidos com polícias, as crianças prisioneiras nos bancos de trás dos carros, o fulgor frio das letras que escrevem HOTEL a néon no céu nocturno e o frio fulgor da estação ferroviária, essa intransigente metáfora da vida que passa a ferros.
Às nove, saio do ar e sou devolvido sem apelo à terra, onde se me impõem a escolta do frio e as algemas da economia. É um momento grave. Na churrasqueira da viela, operários sem mulher e bancários divorciados autopsiam meios frangos. Passa quase sempre uma ambulância, mas calada e escura como um carro funerário. Algum cão publica um mijo convulso num rodapé de palmeira. Ciganos fordtransitam espreit’enviesando os polícias columbinos. Não se vê praticamente mais ninguém desde 1143. Então, zipo-me da zona viril à maçã-de-Adão, fecho a cabeça num carapuço que vos garante que I Love NY e decido-me por uma libação no bufete da associação recreativa menos próxima do coração e mais parecida com a Pátria.



******


Recebo na Cara Rostos
Pombal, noite de 14 de Janeiro de 2009

Recebo na cara rostos.
Vêm de frente em galeria rápida, como quando se anda de encontro, não ao encontro.
Recebo-os na cara em água, saem-me pela nuca.
Nunca me volto para trás por suspeitar que eles continuam rostos não voltados, nas minhas costas.

Esta noite, cedo ainda, subindo a avenida na graça do frio, conferi as árvores envernizadas de chuva, que durou a tarde mas não sobreviveu ao crepúsculo.
O ar era esmalte endurecido, custando-me quase tanto o respirar quanto o viver.
Conferi também a nitidez das trevas, uma espécie de claridade, como direi?, desumana, como se minha e nossa fosse a culpa dos reclamos eléctricos.

Não fui à estação ver quem espera comboios, nem quem vem ver quem espera.
Também não entrei na Senhora da Matrix a pedir por quem precisa.
Praticamente não fiz nada hoje.
Recebi rostos na cara – mas isso não é fazer, é ser, é só deixar-me ser, só.

Os velhos andam mais macambúzios que de costume.
O frio enxotou-os do parque.
Agora, como desde que nasceram, não sabem que hão-de fazer à vida.
(Suspeito de que também eles recebem na cara.)

Mais tarde, fez-se agora.
Uma orquestra desarruma partituras no coreto da cabeça.
Lavaram o mercado do peixe à mangueirada, cheira na rua a rio baixo, a peixes invisíveis.
Tenho um saco de pele com ossos dentro, dentro onde os músicos desarrumam peixes.

Não tenho algo que favorecera o não pensar o pensar.
O pensar pensa-se (mal) como o sentir se sente (mal).
Não tenho a máquina de pensar bem para me sentir melhor.
Falta-me um bocado de aeronáutica e outro tanto de fitocultura.
Não me falta tempo – curiosamente, nunca me faltou tempo, sequer para a frente (que me lembre, pelo menos).
Recebo na cara rostos.

Vi tantas coisas.
Vi-as mal porque as pensei.
Vi o menino juntando água na fonte.
Vi um homem atrasado para o trabalho, era de cabeça cor-de-ferrugem-de-cenoura.
Vi um cão a ser feliz sem pensar nisso.
Vi um perfil de comboio carregado de perfis de gente passageira (como toda a gente todo o tempo passa).
Vi a anáfora recorrente da tristeza.
Coração, vi o anacoluto do coração.
Vi o merceeiro descansar um pouco, sentado em caixas de ananases.
Vi uma mulher tomar vinho como uma sacerdotisa andrajosa.
Vi a capa do livro de Edmondo de Amicis em que há 40 anos aprendi o que significa andrajoso.
Vi rostos vindo, viandas de luz andarilha vindo,
indo-me
embora pela nuca.

14/01/2009

Ronda Columbina, 14 de Janeiro de 2009

A Ronda Columbina de hoje, por ser 4ª-feira, vai para o ar entre as 19 e as 21hoo.
Em 87.6 FM e/ou www.radiocardal.com (emissão online).

Contempla gente e som como:

Regina Spektor (ver e ouvir em baixo, duas entradas antes desta),
Jeremías,
Cocteau Twins,
Billie Holiday,
Dee Dee Bridgewater,
Sérgio Godinho,
Archie Shepp Quartet,
Kátia Guerreiro,
Shirley Bassey & The Propeller Heads,
Jethro Tull (a partir de tema de Bach),
Tito Paris,
Luísa Basto,
António Calvário,
Frankie Miller,
Yaël Naïm,
Paul Simon
e
Paul McCartney.

Bem-vindo/as à Ronda.

Por Falar Nisto

Casa, Souto, 12 a 14 de Janeiro de 2009

Temos de falar nisto de uma vez por todas.
Um corpo que pensa noutro corpo com uma alegria furiosa.
Um desarranjo da estrada, uma turvação do tráfico, o amor.
Uma balbúrdia.
Dinheiro para a recepção do hotel, um casaco castanho, um volume
da Agatha ou do Simenon para ler enquanto não vens de uma vez por todas.

Dizer em voz alta assim:

– Estás hoje tão bonita todos os dias.
– O que tu queres, sei eu.
– Mas no corpo da minha mulher eu amo o mar ser de ondas.
– Senhora, que guardas em casa que me possas mostrar?
– No armário tenho oiro que é o azeite do altar.
– Em casa vais, senhora, algum dia me guardar?
– Os ossos te guardarei na terra do meu olhar.


Ou então:

Que fogo e água se conjurem em vista e boca
tal que a bruma de sonhos ferva alta.


Ou então:

Somos os irmãos do meio
do ontem nascido
e do amanhã sepultado.


Dizer isto de uma voz
por todas.

Regina Spektor - Lacrimosa



12/01/2009

TODA A GENTE MONTA UM CAVALO DE VIDRO, NÃO ME VENHAM COM HISTÓRIAS - aditamentos para uma cardiologia da submersão

Casa, Souto, e Pombal, tarde e noite de 12 de Janeiro de 2009



I

Um rio de palavras abarca as margens da vida pensada.
Jogos de poder assaltam íntimo anelos.
Com o tempo, até o terror falece a tempo.
As casas resistem na composição postal.
Instintos distintos sufragam a resistência.
A harpa da chuva pizzicata a paciência.

Magnas leis transparecem das instituições magnas:
o ar, a montanha, o trânsito, a eira ao sol.
Uniformizados de luz, os frutos conciliam a cor.
Uma paleta de atitudes pinta o retrato pessoal.
Os mortos e os vivos jogam as cartas.
As tipografias trabalham por conta da memória.

Toda a gente monta um cavalo de vidro.
É preciso não desistir de respirar com indústria.
Panos relvados atapetam a serenidade.
O presépio de barcos decora a face do mar.
Moinhos celebram a solidão mais aérea.
A geologia subjaz aos ossos humanimais.

Na curva do rio, o maciço segrega sombra.
É bom tocar os elementos pelo nome, nome a nome.
Cordas de peixes procissandam veios claros.
A cabrinha canta a glória da maternidade.
Num café longe do nascimento, anotar a conta-corrente.
Racionar os apetrechos da supervivência, também.

Recordar no bosque a catedral.
Na rua, a álea.
No cavalo de vidro, o nascido e o ido.
Na praia, a História.
No cometa, a ave.
Na Lua, o Sol.

Coleccionando cidades, unir a aldeia única: a mente.
Redigir tempestades na manhã internacional.
Somar ruínas castelãs, atiçar verbos.
Sim, atiçar verbos contra o esquecimento.
Respirar muscularmente, olimpicamente.
Apedrejar sem rebuço o solipsismo estéril.

Obter pianos, festejar o andor da caligrafia.
Aguentar ainda um pouco, na seda do sono.
Na senda do outono, tocar de ouro-velho o frio.
Reconhecer aos olhos o teor de espelhos mágicos.
Borboletear pelas flores verbais, agraciá-las de mel.
E sentir sempre, pensar sempre cada sentido.

E então ver o rio e tudo recomeçar nascendo
na seda,
na senda.



II

Um pensamento, uma cidade submersa.
Adentremos a beleza antiga da senhora
que envelheceu ao balcão-contador da taberna-mercearia.
Também o coração dela tem um lado-mozart.
De quantos invernos foi ela capaz de subir à tona,
que chás tomou sozinha quantos domingos?

Uma cidade, um pensamento submerso.
Em uma churrasqueira despovoada, o último
cliente ceia a solidão de um peixe.
Cá fora, as estrelas ao frio como cães sem dono.
No coração desse homem, uma planície estelar.
A neve em sua cama: e silêncio e ossos.

Tantos príncipes, tantas princesas submersas,
tanta tão pensativa nobreza, alienados rumos
que ensinam a perdição e a coragem,
o santo cálice demandado pelo ébrio,
a prostração labiríntica do ano,
a monarquia absoluta do peixe, da solidão.

E com toda a atenção, a magia toda,
não desistir jamais do lado-mozart da vida.



III

Sendo homem, tendo mulher, ver nela a nação mais vertical
– e a mais alta domadora de cavalos de vidro.


E se em vez de versos eu pusesse mazera só aqui coisas do Bruno Aleixo é que estava bem, mas prontos

Duas Urbanas para Uma Campestre


© Sandra Bernardo
Aveiro, 30 de Agosto de 2008

I. NENHUM DE NÓS VAI NUNCA MAIS SER PARA SEMPRE
– composição urbana para ler no campo

Para o Ca’litos, nos 31 anos do menino

Café Esquina, Pombal, noite de 8 de Janeiro de 2009




Crua nua luz de farmácia,
dentro as ovelhas clínicas abastecendo-se
de pílulas de erva e poções de água de ribeiro químico,
coitadas.
Tenho muita pena das pessoas, nas farmácias como fora delas.

Sou compensado em minha vã misericórdia
pela visão de uma senhora na ponte do rio.
Alguns 60 anos bem medidos.
Roupa cómoda e quente, matizada
de castanhos graduados do claro ao escuro.

Já é escuro, claro, a esta hora.
Passei em frente à entrada traseira do tribunal.
Lembro-me de uma manifestação popular ali.
Foi há muitos anos.
Tinha havido mais um dos pobres crimes pobres
da nossa ruralidade: gajo mata esposa e suicida-se.
O povo juntou-se ali não sei para quê, o gajo
já estava morto.
Deixou saudades como a fome, o cabrãozinho.
Pus isso num livro chamado O Preço da Chuva.

Gostei de passar pela senhora sexagenária na ponte.
Houve tempos em que quis ser um velho assim:
enroupado de flanelas castanhas, sereno, bonito.
Duvido, muito sinceramente duvido.

Escrevo composições urbanas com o coração no campo.
Se me quiser furtar a isto, vou ao bar onde
os amigos e demais companheiros de fadiga tabágica
abocam cocacolas de laranja
e pirezinhos de orelha ensalsada.
Fico ali umas horas a deitar silhueta às paredes.
Hoje não.

Sempre que posso, enfuno as velas de caligráfico vento
e dou-me alas.
Dou-me azo, dou-me asas,
sio sem cio rés-vés as casas,
ponho-me na alheta atlântica,
isto de ser-se atlântico em doca seca é que é,
a vida nunca facilitou nada ao vivo,
há que ingerir carbono e gordura e vitaminas
e sais minerais da-sibéria-aos-urais.

Suave pátina de gelo nas sobrancelhas,
bafo árctico fumando a boca endurecida,
as mãos cortadas no tempo do pão,
versos escuros (lobos correndo na neve),
Jack London lido à lareira no fundo inverno,
não,
não envelhecerei sobre uma ponte, dando o rio.

Agora eu vou estabelecer regras imprestáveis
para uma loucura civilizada, triste e macambúzia
mas civilizada.
Nenhum de nós vai nunca mais ser para sempre.

Mas podemos amar uma língua,
podemos ser nacionais e de flanela por dentro,
podemos alinhar as farmácias, os tribunais,
os bares – os cartórios líricos
que nos dão
o usucapião
de nosso mesmo cultivo e amanho,
a tudo retribuindo os impostos devidos.

Sim, sim:
o coração pode ser o n.º 2 do art.º 64
do Código do Notariado.



II. NA MINHA PRIMEIRA E PENÚLTIMA JUVENTUDE

Charneca, casa do JP, Pombal, noite de 10 de Janeiro de 2009



Na minha primeira e penúltima juventude, andar com o coração nas mãos não era uma doença.
As patologias vieram depois, decorrentes daquilo a que chamamos normalidade.
Hoje, vivo de amigos, quando posso, estou sozinho à varanda a ler no escuro as estrelas eléctricas da cidade atiradas ao veludo por um deus desesperado e brincalhão.
Faço dos sábados um caderno, tenho ideias de rejuvenescer contra tudo e contra todos, persigo a cristalização do verbo em verso.



III. SEMANADA



Casa, Souto, tarde de 12 de Janeiro de 2009


Segunda-feira, a erva é o cabelo de enterrada cabeça de telúrico monstro.
Terça-feira, duas nuvens mancham uma folha de sol e giz azul.
Quarta-feira, espero-te do lado da ponte, sobre corrente calendário de água.
Quinta-feira, volto para junto do monte onde celebra a raposa um labirinto de laranjas encarnadas.
Sexta-feira, se puderes, vai-me buscar.
Sábado, paga-me uma taça de fruta, deixa-me andar nos carrinhos, evita-me o hálito, oferece-me o crepúsculo da agonia.
Domingo, se puderes, vai-me buscar.

09/01/2009

Lord, I Am a Surgeon, and Music is my Knife, It Cuts away my Sorrow, and Purifies my Life



Implicação da Iguana

Casa, Souto, na madrugada de 9 de Janeiro de 2009



I. Impropriedade

A sombra de uma nuvem, como um pensamento, marcou uma área do terreno. Passei a contar duas realidades: a que se mantinha de sol e a que a sombra marcava: como um pensamento contemporâneo do corpo, simultâneo dele mas sem ser ele.
Atrás, na casa, ficaram as coisas que são a casa mas também a não são: pode queimar-se no pátio, ou não, a cómoda que define um quarto? Ficou a laranjeira, ficou a casota de cimento do cão (imita em miniatura a arquitectura da casa humana).
Todos grelhámos peixe, ninguém estava ao serviço de ninguém, houve aquela solidariedade benfazeja dos instalados. O sítio do lume era agradável, uma terceira casa, de dimensões entre a principal e a do cão. A mesa era larga, de boas ripas envernizadas. Um banco corrido de cada lado, toda a gente tinha lugar.
Mas há sempre um depois que a tudo torna antes, um fim de festa, vim-me embora a pé. Tive de aliar cortesia e firmeza para recusar boleia até à estação. Por assim dizer, vim ver a sombra da nuvem. A cidade (mas tenho tanto tempo) não é longe, fui protelando a chegada procurando água na terra, maciços verdescuros, grutas (mas não há grutas), choupanas (mas não há choupanas).
Pensei (estou já no comboio) que gostaria de dormir por ali, onde a nuvem. Agasalhado, dormir ao ar livre, ouvir a música da noite, seus instrumentistas de pena e pêlo, a percussão de algum curso de água, mínimo embora. Não o farei. Acho que nunca o farei. Habito uma cidade, os meus hábitos e as minhas obrigações justapõem-se a ponto de ser sinónimos, julgo.
Gosto das pessoas que abandono no campo, mas o meu lugar, parece, não é entre elas, com elas, para elas. Não demorou muito, a viagem. Uma hora e um quarto, para aí. Vi-me na estação de chegada como se estivesse à minha espera: este corpo avançando para mim. Agora tenho de dividir tudo com o recém-chegado: o meio-bife na casa-de-pasto, o bilhete de cinema (e o filme), o copo de vodka no bar que nunca fecha antes das seis.
Não há problema nenhum: é domingo, o dia nasce do rio, gosto de ir ver esse filme sem plateia e sem bilheteira. Também poderia escolher uma margem, um sítio decente bem tufado, de chão elástico e relativamente enxuto, dormir ouvindo a água dentro do sono. Não, claro que não.
O meu apartamento é pequeno e suficiente. É um casulo, faço de bicho-da-seda. A sombra da nuvem, agora (mas não sei que horas são) pensa-se a si mesma – e aquele terreno não me pertence, nem eu àquele terreno, ainda não.



II. Mentira

John-Joe não voltará a Kilburn.
Morreu, não voltará.
Ninguém o reverá perambulando por Grosvenor Square.
Estão-lhe interditos pontos do mapa: Gastonbury, a Isle of Wight.
Terá deixado semente em Cardiff ou a sul de Wales, em Newport?
Terá João-Zé entristecido sem razão especial em Bristol?
Diz-se que gostava dos filhos.
Por que motivo lhes não compra agora gelados em Brighton, um raro dia de sol?
Porque morreu – é tão simples.
(Os mapas são coloridos – mentem a cores.)



III. Implicação da Iguana

Pode trabalhar-se toda a noite em qualquer sentido.
Neste momento, trabalho com duas palavras:
iguana
e
implicação.
Não sei que farei delas: que tessitura, digamo-lo assim.
De qualquer modo, não estou preocupado – mas ocupado apenas.
Isto é um trabalho.
Procuro a música.
Isso é certo: procuro a música.
Ela é feita de materiais pré e pós-verbais – mas só o durante me interessa.
Interessa iguana, interessa implicação.
(Muitas vezes o som
i:
como um atrito de unha em vidro, por assim dizer.)
Também um lume (uma chispa, depois uma carburação) me resultam de gravoso interesse.
Configurar os paradoxos: por exemplo
(este exemplo é bom),
a boca cheia de saliva – e nenhum nojo, nenhuma autoagonia infantil.
Compreender além da opinião pré-congelada.
Aceitar apenas os onanismos não mortíferos:
certa rua amarela de ouro aéreo, algures na cidade ou na infância,
um olor construtivo de mercearia à passagem
(tabaco, bacalhau, fruta, sabão, café),
correios, telégrafos e telefones,
guarda-chuvas esquecidos em vestiários de teatros,
24 mulheres bonitas como uma flor cortada em fotogramas,
sequências espectaculares
(crepúsculos, frases, laranjas, cães, crianças),
fundos de guarda-vestidos com ADN não despistável,
a secreta marisqueira aromática do primeiro sexo,
a organização constitucional dos móveis da Mãe,
a canela tocando a transcendência (arroz doce de olhos fechados),
a iguana, a implicação.



IV. Situação

Qualquer eu está situado um pouco a baixo do coração, só que a perspectiva é invertida pelo prisma da cabeça.
Digo
eu.

Mas depois vem de novo o dia 12/8/73. O poeta Jorge de Sena vai a Segovia. De lá me/vos recorda os versos de Antonio Machado:

no es el yo fundamental eso que busca el poeta
sino el tu fundamental




V. Montra (e) Partida

Fui ao alpendre e olhei: névoa mundial, duas horas e oito minutos do novo mundo. Tenho de ficar aqui, não sei voar – e não falta muito para que a lenha acabe. Isto é um trabalho. Não é um ofício (eu sei, já vo-lo disse – mas é o meu trabalho).
Revoada de aves brancas como papel (noutra vida – ou então noutro lance de uma vida que não vivi nem revoarei).
As esculturas e os animais – que os funde?
Digo: funde-os a dignidade vertical.
Sempre me interesse pelo mundo involuntário (a outra dimensão) das montras do comércio: o carrito-matchbox caído de lado, o micromúsculo labial do manequim que sorri e depois e depois finge que não, os discos e os livros atirando-se de nome desfraldado à fita de água que usamos a norte da cara e se chama olhar – sim, gosto de montras.
(Nunca compro nada, mas gosto do outro mundo a que chego por elas.)

Manhã cedo, talvez tenha de partir.
Não é preciso arrumar muitas coisas, um saco é quanto basta. Depois, talvez como das outras vezes: a estrada vindo direita ao peito, os olhos acaramelados de sono, sacudir tudo isso com uma taça de café, uma chapada de água fria no lavatório do bar das bombas, contar as putas de berma-esperma ao longo da nacional-nº-tal, contar os animais atropelados, notar a transição por assim dizer idiomática da luz conforme os distritos se sucedem e encarquilham no curso da ida, da névoa, do mundo.


VI. Mr. Thompson não É Daqui

Mr. Thompson não é cá da vizinhança.
Andou pelo Vietname, sobretudo a cerca de 400 km de Luanda.
Não tem mal, agora já não faz mal.
É um major reformado, gosta de dálias e de glicínias
(e de gajas chamadas Licínia, que é o que ele chama a todas as vietcon(g)as a quem paga bitoques antes de as levar para o quarto que arrendou à cabeleireira).
Toda a gente tem os crimes, é certo, mas também as suas qualidades.
Mr. Thompson tem a qualidade de não recordar crime algum, massacre nenhum.
Isso – e não dever nada nem na loja nem em My Lai, ou lá como se chama aquele sítio perto de Nova Lisboa.
Mr. Thompson já não gosta de música daquele tempo – seja qual for o tempo a que ele, aliás, se não refere nunca (16 de Março de 1968, Mr. Thompson, filho-da-puta).
War é guerra – e ao contrário é raw, que significa cru (ou cruel).
Mr. Nixon também não é destas bandas, nem Mr. Kissinger (de quem a parva da Liv Ulmann se esqueceu o azul glacial) – vale-nos que nenhum deles há-de voltar de Kilburn.



VII. Noutro Tejo

Noutra Lisboa, fui a mariposa acossada pela friúra das luzes.
Faltou-me não o corpo que me levava mas o corpo que eu deveria ter constituído nas épocas prévias.
Nada disto tem importância: mesmo que, por exemplo
(este exemplo é bom), o poeta Rodrigues Lobo se não houvesse afogado no Tejo, o outro Tejo (o Tempo) tê-lo-ia afogado na mesma.



VIII. Capote e Outros

(Iguana.
Implicação.)

A vida fantasiosa dos poetas (não todos) e a idem idem dos séri’assassinos tem mais afinidades do que as crestomatias criminológicas e os arquivos líricos permitem supor.
Isto é assim até nos Estados Unidos, onde os poetas não puderam competir nunca com os assassinos,
a começar por Truman Capote.



IX. Licínia Também

(Três e dezanove do novo dia-mundo.
Sou que mais espaço-ser, na hora-mundo nova?)

Uma mulher (imagino-a, filmo-a, escrevejo-a) compra anéis. É joalharia barata, ela não é rica, está divorciada só há dois anos e sete minutos, é recepcionista de dentista, chama-se Licínia. Ela é como eu sou – neste aspecto: nenhum(a) fomos nunca à Noruega. E neste: também não voltaremos de Kilburn.
E no entanto barcos transitam estrelas, azimutes de leite & veludo, capazes do frio e da física e da metafísica – mas nem ela nem eu rumámos a Norte.

(De modo que três e 23.)



X. Aviso

You ought to fear the truth, Madame Thompson.
(Quem diz Madame, diz My La(d)i.)



XI. Nenhum Leopardo Foi Possível Alugar para o Chá da Senhora d’Arcy

Que bonitos, benvestidos e inúteis são os cavalheiros-figurinos que vêm ao chá da Senhora d’Arcy, verdade?
Os pássaros verdadeiros que encimam os bolos são tão perfeitos, que parecem de louça: não terão alguns deles um coraçãozinho de rubi?
Com os dedos da mão que não
escreve – dar borrões de cor à impressão do papel-tela:
para figurar no Salão de Inverno da Senhora d’Arcy, depois,
em outro século,
quando Henry James já não for lido nem esperado.



XII. Sorte

Longe da nossa vista, ferve o caldeirão dos hospitais.
Cozem a fogo-frio, que não brando, os doentes terminais.
Fora, na manhã cedíssima, geadam as flores no centro do relvado redondo.
As ambulâncias chegam com as consultas rurais.
Dentro, em cubículos passados a éter e a lixívia, olhares fixos em tectos.
Mãos transparentes, ventres finalmente miseráveis, pés já inúteis, barbas por fazer até das senhoras.
A Universidade, a Caixa, os Correios, o Café, a Rodoviária – tudo funciona, não há azar.



XIII. Bandeirantes

Então – e as pessoas que parecem bandeiras?
Ele há pessoas assim, que são bandeiras.
Andam na rua – e o ar fica colorido, o ar drapeja, o ar ganha música alta.
Essas pessoas ligam a terra verde ao céu azul.
Nós nem sabemos como amar devidamente essas pessoas.
Astros, mastros – pessoas fora da série genética, parece.
Uma chamada Rebeca; outra, David; esta, Catilina; aquele, Tomé.
Pessoas que florescem no ar ao nível do olhar, gente cujo sono nos acorda e pressuriza, que de repente nos saca tapet’e’strada de sob os pés.
Quem de nós quis alguma vez nunca dar-se a uma pessoa tal?
Quem não foi senhor(a) de assim querer levar-se em bandeira?
São de olhares como inflorescências, como incêndios de milho, essas bandeiras.
Um dia, a terra não nos é suficiente.
Como nos é impossível ir-a-ver-o-mar, saímos à vila e damos com elas, as bandeiras, as pessoas-armilares, as pessoas-campos, as pessoas-brasões, as pessoas-pessoas.
Amar é terrível.
Eu aqui não digo a bandeira-tropa-pátria-clube, digo a Pessoa.
Essa que se distingue sozinha e de nós, além da gente, além de gente.
Sofia Loren é um bom exemplo, claro.
Mas eu queria dizer-vos mais terra-a-terra.
Não digo que elas bandeirem a toda a hora sobre tapete-vermelho.
Não, não digo isso.
Digo as bandeiras – se dissesse iguana, o mesmo implicaria.



XIV. Uma Força

Uma força de ir ver lagos existe aqui dentro.
Civilidade, também.
Poucas hipóteses de proceder a um escrutínio decente da vida, também.
Lançamentos de seixos à água, a ver as ilhas concêntricas animadas pela gravidade dinâmica (o susto dos peixes, coitados): uma pessoa reproduz as pessoas, os gestos paterpatrimoniais, os versos.

Se pudesse, uma pessoa reanimaria as décadas, o chinquilho, as tardes solheiras (sol e eiras) de domingo, essas a que os olhos muito azuis de Laurinda presidiam, entre rodadas de groselh’e’gasosa e dentadas tremoceiras, tendo passado a banda e dito o senhor padre
imprecações.

Sim, a vociferação existe aqui dentro, também.
Os que morreram novos sem poder justificar o nascimento.
Os que demandaram a Venezuela e voltaram com outra boca.
Os que sem terem saído daqui aqui voltaram com outro olhar.
Rapazes que gastam o dinheiro das férias em tónicos capilares.
A Lúcia no céu com diamantes.
O senhor Nardo desconfiado de Mr. Thompson, pois pudera.
E o tapete-vermelho entre a igreja e o campo-santo.



XV. H.-M. na V.

Perto de casa há um café-mercearia a que vamos a bolachas e laranjadas.
Não é que vendam lenha, mas arranjam se avisarmos de véspera.
O senhor Gervásio é homem para não largar o jornal toda a manhã.
Há quase sempre canalizadores-electricistas a beber moscatel.
O mais são horas-mortas na vida.

08/01/2009

Dinah Washington e o gin dela




Uma crónica e alguns, digamos, poemas


© Juan Pando
Arenga al más Joven Ejército Posible
Febrero 1939, Madrid




Pombal e Casa, Souto, 6 a 8 de Janeiro de 2009



Higiene, coentros e maduro
Crónica nº 85 da série Rosário Breve
nO Ribatejo (
www.oribatejo.pt) de 9/1/09

Pergunta-me um amigo se vi pela TV a entrevista do primeiro-ministro. Disse-lhe que não. Não vi por uma questão de higiene. Mental. Minha. Muito minha e muito mental. Não vi. Não quero saber. Não sou um jornalista ao serviço dele. Nem dele nem de ninguém.
À hora da dita entrevista, estava eu em casa muito sossegadinho a ler o meu dicionário da Porto Editora, escrito ainda sem a porcaria ortográfica pró-brasuca que aí vem. “Higiene mental: ramo da higiene destinado a manter a saúde mental e a assegurar a profilaxia das neuroses e das psicoses, combatendo os factores nocivos (excessos de tabaco, choques emocionais, intoxicações, alcoolismo, etc.)”. Tirando a parte do alcoolismo, percebi tudo.
Como não rimo “jornalista” com “acólito”, não assisti, nem de joelhos nem de cócoras, à tal entrevista. Tinham-me dado uma rica garrafa de tinto maduro, a mulher tinha trazido broa e bacalhau desfiado, num frasco de vidro grosso havia azeitonas perfumadas de alho e coentros em sal também grosso. Comemos e bebemos à saúde um da outra. Nem ela nem eu vimos a entrevista do senhor. Não vimos. Cheira-me que também não vamos ver a próxima.
A minha mulher também é muito higiénica. Por dentro e por fora. Foi uma riqueza que me aconteceu, a minha senhora. Às vezes, estamos na cama e rimo-nos muito. Eu digo o nome de um ministro (um qualquer) e ela desata-se a rir, contagiando-me irreversível e inelutavelmente. Depois, ela diz o nome de outro (outro qualquer) e eu desmancho-me, contagiando-a inelutável e irreversivelmente. De modo que somos felizes assim, felizes com a desgraça dos outros portugueses que já não se riem. Podia dar-nos para pior.
O amor é assim: nenhuma TV e um fio aromático de coentros cortando a espuma roxa de um tinto para esquecer.



**********


Trouxa



Não sou já uma trouxa de carne
que mulher alguma pegue, pague e leve
aos ombros
para um desses motéis de filme
surdo-e-mudo.

É que se me estragaram os dentes
e se me avariaram as gónadas.
Secaram-se-me as sementes.
Sou ora dos velhinhos nómadas

que já lá não vão.

Nem é isso que me dá tristeza.
Entristece-me o pender, sim,
mas para o verso.
A poesia é uma arte que não chega a ofício,
a não ser que se conheça alguém no Motel
Gulbenkian
ou assim.
(Mas não é o que m’acontece a mim.)

E
no entanto
fui já um(a) trouxa assaz moteleira.
Tomei de facto já o meu porto miniatural,
já atirei o meu chiste erógeno,
colhi já em campo o morango dum mamilo
(devagar, ao de leve e com estilo).

Agora já não.

Agora, dou-me mais ao nunca ocasional ocaso
da subúrbia condição.
Amanho a minha horta, pinto a minha porta,
digo bons-dias ao carteiro (que é rapariga)
e a mais ninguém me obriga.
O resto é cantiga.



Brasil, 2 – Rossi, 3



Um livor a dar para o azul-frio com barcos
é quanto vejo dentro da cabeça, fechados os olhos.
Não tenho 18 anos como tive em 1982, tenho uma
colecção incompleta do Mundo de Aventuras
e outra de anos.

Tenho um amor sem escalímetro pela topografia da vida.
Conheço vendas de fruta que perfumam a luz a quem passa,
conheço o meu Cesário e o meu Pessanha, sei com quantos paus
uma canoa vai ao fundo,
conheço o mundo.

Em 82, o Paolo Rossi deu cabo, praticamente sozinho,
do melhor escrete que já vi jogar: o Júnior, o Cerezzo,
o Sócrates (não era este daqui da Covilhã, era um doutor
mesmo), o Zico, o Falcão, caramba.

Eu hoje estou praticamente sozinho no ataque como
o Paolo Rossi – e como ele
a dar-me cabo.



A Guerra do Uruguai



Dá-se algures na casa ainda e para sempre,
nalgum dos livros que não relerei.



Parelhas



Fiambre e rosa.
Ciúme e perfume.
144 e grosa.
Couro e curtume.

Tacho e macho.
Vou e não volto.
Cão e irmão.
Solto e não solto.

Tacha e taxa.
Toscânia e Praga.
Guimarães e Braga.
Ter racha e tarraxa.

Meu Pai e Mãe minha.
Irmãos e sobrinhos.
Viver e vida:
hei-de ter netinhos.



Declaração de Rendimentos em Poemas e Morais




Casar com uma ex-estrela porno
deve ser como andar de lambreta
na auto-estrada.

A tristeza é o vero produto nacional
bruto.

Santana Lopes é uma realidade portuguesa.

(O velhote da mesa ao lado tem um filho deficiente,
nenhum dos dois faz barulho, o senhor lê o jornal,
o filho olha embevecidamente para ele,
está-se bem aqui.)

Um fiapo de nuvens acama por cima a avenida.
Entardenoitece, carros frios, primeiros faróis ligados.

(O filho deficiente diz
Então, pai?).

Estou sozinho, espero que a minha ela venha do trabalho
para tomar um chá de casca de limão,
para a minha vida prometida aos bichos,
os meus versos às larvas-parvas-palavras.

(É de olhos azuis como o pai,
Então, pai?,
tem alguns 50 anos,
o pai é senhor para 70 e muitos.)

Preciosa, cristalina: pedra de água atirada ao pano do ar,
frase toda música, Paris em 1911, Coimbra em 1917,
garça que por graça grassa no algodão memorial,
fico por aqui por agora.



Outro Dia



Toda a tarde em ronronante solidão.
O sol de inverno é franco na varanda.
Há rumor de casas afastadas: crianças, cães.
O cedro, muito cervical, labareda-se muito verde.
Agradável, viver.

Preparo uma expedição a Coimbra para breve.
Ver a Irmã, trocar uns livros no alfarrabista, ir
ao parque da cidade
consultar o rio como um baladeiro sem voz,
subir alguma calçada, descer alguma catacumba,
permitir-me a essência íncola de ali ter nascido.

Arrumo na boca as graçolas líricas que quase
me impedem de estar vivo e pensar ao mesmo tempo

e
então
deixo fluir:

a graça toda luz do ar emoldurando o pinhal,
o formigueiro automóvel do género humano,
a poça de água fria despertada de sol entre erva,
a munificência idiomática da minha pobreza pessoal,
o tiro de longo alcance de um telefonema por fazer,
a efervescência trevo-mijona de um verso exacto,
um gato alheio em estrangeiro quintal olhando para aqui,
o Denzel Washington e o Russell Crowe às 4 da manhã,
o torno mandibular do frio apertando o corpo,
os óculos na cara como uma aranha fria,
a suficiência futura dos livros ’inda não lidos,
uma espécie de amor, uma espécie de música,
a quinta-feira dourada de suas mesmas cinzas,
um prato de salada-russa meio consumido,
a guerra do Uruguai e a selecção do Brasil/1982,
a infelicidade das pessoas muito suave, muito diária,
a explosão láctea da taberneira perto da rotunda,
os apartamentos que clonam a quarentona e o adolescente amásio,
a erva-de-cheiro de uma frase bem dita,
as pedras glandulares no tabuleiro do metabolismo,
o cálculo-cinismo da má poesia,
o florilégio da boa,
o sortilégio da muita boa,

o tempo há-de melhorar,
outro dia.



Telefonema



Um dia hão-de telefonar-te de muito longe,
de quase tão longe quão certo rosto perto
do teu.

Dir-te-ão da condição
interurbana
que tive para contigo,
eu, logo eu,
que daqui não saí
nunca.

Canzoada Assaltante