12/07/2009

UM POUCO ANTES DE AMANHÃ (16)

"Tenho meio século menos cinco anos."



16

Pombal, tarde e entardenoitecer de 10 de Julho de 2009

O que passa por mim deixa marcas que não são de água
e um dia há-de poder ler-se o que ficou.

Assim escreve João Camilo em O Preto e o Branco, 2, poema quinto de Na Pista,
Entre as Linhas (INCM, Dezembro de 1982).
Está certo.
Estará, terá estado, certo para ele como para muitos de nós, que não sei quantos somos.

Há muito trabalho à espera, fora do corpo.
A estratégia é manter vivo o corpo, embarcá-lo nas naus do trabalho, velejar com a brandura possível no quotidiano.
Deveria talvez ter trazido o casaco.
Arrefeceu, não é Julho como os julhos d'antigamente.
Esta manhã, conversei com brevidade sobre Portugal, este rincão que não ladra nem morde.
O mundo continua ali ao virar da esquina.
Noto movimentos de carrinhas com géneros frutícolas, especiarias embaladas em plástico, valores e documentos judiciais, carangueja a azulibranco um carro da polícia, meio bando de pombas debulha um pão à bicada entre uma bicicleta e uma criança de cabelo muito-amarelo-quase-branco, o outro meio soslaia de pés agrafados a um beiral da chuva, um frufrú de saias de senhoras enganadas no século e no milénio, um odor a água fria por toda a raia do crepúsculo.
Tenho meio século menos cinco anos. A maior parte do meu tempo, cumpri-a com a atenção posta no detalhe irrelevante - quase todo o detalhe, quase toda a irrelevância: 45 anos disto.
O mesmo, por outras palavras (mas as mesmas, afinal):

a árvore por assim dizer pessoa vegetativa,
o rio mais de corredor tempo feito que de água corrente,
o apeadeiro ferroviário entre incertas partida e chegada a que terá baixado parte substancial do meu coração,
o animal único de todos os bichos que tive-tenho-terei a vida toda,
o amor único a esse único animal múltiplo,
os cidadãos cenográficos que fazem viver o filme da atenção do meu olhar
(ou do olhar a que pertenço por escrito),
as cidades mentais e as aldeias físicas e os lugarejos mentais e as metrópoles físicas,
os cálices de mau porto emborcados em jejum nas manhãs muito enxovalhadas durante as que só a amargura me parecia limpa,
as enumerações como esta través as que tentei-tento-tentarei abarcar o inabarcável,
coruscações de louça em salas lunecidas e mais pretéritas até do que a memória mais esquecida, o tal coração do apeadeiro outras vezes cenografado como casarão senhorial debandado de frufrús e de outros fantasmas, a textura têxtil de certas flores silvestres para sempre e para sempre indomesticáveis,
a música madeira-osso-pedra das mãos do cavalo calçado na calçada londrina,
a fulguração (marmórea até) dos nomes-datas (muitos nomes, muitas datas),
a percepção sempre linguajável e linguajada sempre,
algumas ocasiões o Amor maiúsculo como uma vinda do vento ao rosto,
num sítio com mar esse vento e essa vinda e essa vida maiúscula,
a ciência/a paciência/a consciência da Morte também maiúscula toda ainda que minúsculo todo o seu recipiente individual,
a autoria do pão de cada dia,
um determinado campo agrícola num ano só de novembros,
as muitas águas que pude contar mas não conter
(entre chuvas e olhos),
a posse de mais retratos alheios que de moedas próprias,
o ter-sido fundamental do Eu-meu-Tempo,
o carácter cósmico da vida celular,
o paradeiro também cósmico dos idos brinquedos perdidos da ida perdida infância,
a nudez gloriosa da terra,
a modéstia imperial do céu,
o verso da água,
a exaltação astral do fogo,
os números com que a humanidade tem logrado lograr-se quanto à inumerabilidade dos objectos de atenção,
as sardas de um rosto coroado de ruivo,
a consciência-vídeo de uma mulher num quarto à espera mas não de ti nem de mim,
clarões de cinema-mente a pretibranco com riscos rápidos de cinza,
a arrumadora-cine de Hopper,
os (giras)sóis de Vincent segundo Bataille,
famílias novas no bairro chegando de carroça atulhada de móveis pobres,
o sol muito-amarelo-quase-branco da manhã dessa chegada,
a companhia das palavras como um circo incansável,
as bandeiras-múndi em galeria policromática como as maravilhas do fundo do mar,
a nação dos peixes,
as águas continentais,
a quimera das neves eternas,
Jack London sobrevivendo até aos 90 anos com direito a cabana e a lobos mansos,
Thor Heyerdahl navegando ao Mar-Tempo da História-Possível,
a morte recente do Rendilho Três-Dedos (54 anos) telefonada pelo meu irmão Fernando (54 quase 5 anos),
o dia de ontem quase todo dedicado à figura e à obra de Leni Riefenstahl,
como a de uma baba a segregação verbosa da minha vida passiactiva,
a sassaricação estandartística dos idiomas estrangeiros
(também belos mas menos, ou de outros modos não alcançáveis pelo que nasci),
as tremendas rosas vaginais que as mulheres são a parir,
a ocarina da voz das crianças,
a deflagração ossobucal do limão no alto-pimenta do sabor,
a indestrutibilidade de certos versos de uma beleza dura mais que a do diamante,
a LuzazuL da Riefenstahl,
lembro-me tão bem do Três-Dedos na minha infância toda tida,
e como não chamar "cuneiforme" à escrita das gaivotas deixada pelos areais?,
amador sou-serei-sempre-fui das mais irrelevâncias minúcias,
profissional a tempo inteiro da desimportância,
da anticarreira,
do futuro mesmo.

Até à meia-noite, tempo ainda para chamejar mais faúlhas com a atenção.
Cores vermelha, preta, azul, verde.
Ilimite da contagem, não do contador.
Cabeça sideral, armilar.
Coração tudo idem.
Fantasia e pão.
Ervas de chá e ervas de chão.
O cedro descomunal da Escola Secundária.
Vulcanismo e cartografia.
Podografia e municipalismo.
Criadas-de-servir e polícias-de-giro: uma dialéctica.
Sextas à noite (1981) e bosquejos de historiografia portuguesa por António Sérgio e por Joel Serrão.
E os meus brinquedos, o meu tesouro titular:
o Caso Profumo, o Dossier Odessa, o Arquivo de Alexandria, a Operação Barbarrossa, o Código Enigma, o Clube Panamá, o Almanach Bertrand, o Almanaque Borda d'Água, o Tesouro das Aldeias, o Segredo das Sombras, a Caverna Platão, a Insígnia Amarela, o Item Noruega, o Retábulo da Manchúria, o Ícone Cego, o Quadro Stevens-Born-Wallace, o Parnaso Manchego, o Pátio das Cantigas, o Leão da Costa, a Estrela do Castelo, o Véu Maugham, a Enfermaria Munthe, o Modelo Prussiano, o Sarcófago Futuro, o Expresso Árctico, o Canal das Sedas, o Mapa Lírico, a Carta Magenta, o Rubi Alvo, o Kit de Areia, o Campeão das Províncias, o Diário do Governo, a Casa Única, a Trilogia de Ardenas, o Forte Knox, o Catálogo Genebra, a Flor do Absinto, a Hora Toulouse-Lautrec, o Circo de Roma, o Obelisco Khamar, o Tigre da Malásia, o Episcópio do Magrebe, a Frente Polisário, o Círculo Vermelho, o Projecto Diamantino, a Transparência Elgar, a Compra Knorr, a Arca da Avó, o Macaco Copta, a Visão Aramaica, a Gaivota Cuneiforme, a Vista Assíria, a Colecção Burgomestre, o Índice Grego, o Manual Breve, o Rosário da Sãozinha, a Torre Woolf, o Fim Montana, o Index Notre-Dame, o Plebiscito Romano-Torres, o Diaporama Regicida, a Imagem Vernácula, o Hotel Bragança, o Pedinte Furioso, a Tábua Rasa, a Rosa do Nome, o Cardápio Leicester, a Gramática de Clarke, o Instituto Posológico, o Arco Poseidon, a Montra de Sirius, a Mina de Salomão, o Amor Maiúsculo, a Bíblia dos Cozinheiros, o Flipchart dos Genoveses, o Portugal dos Pequeninos, a Quinta da Machadinha, a Óptica Lourenço, o Salão Brazil, o Café Paraíso, o Cinema Paris, a Crestomatia Arcaica, o Breviário do Taumaturgo, a Gnose do Hermeneuta, o Estudo em Escarlate, o Fantasma dos Baskerville, a Catedral da Chuva, a Guerra Relâmpago, o Alcorão dos Carpinteiros, a Tora dos Onzeneiros, a Cerca Trânsfuga, o Império do Sal, o Corvo da Ilha, a Execução Sumária, a Beleza Negra, a Puridade do Escrivão, o Anel Joyce-Proust, o Mago de Gales, a Helena de Setúbal, a Graça de Coselhas, o Álibi de Mourato, a Raça Nuba-Semita, a Ementa Nagasaki, o Principado Telémaco, o Diário de Ernesto, o Acto Banal, a Dupla Morgan-Carson, a Recoleta de Madagáscar, o Esgrunho de Mogadíscio, o Mandarim das Dúzias, o Motel Verdun, o Crime Expiatório, o Juiz Bode, a Licença Bond, o Protocolo Harum, a Lei B de Runner, a Pélvis de Costello, o Tendão Van Basten, o Amigo do Povo, o Correio de Salavisa, o Pacto de Berna, o Bando dos Quatro, a Efígie Maluca, o Pórtico de Portalegre, o Questionário Quintela, o Castelo de Rilke, o Monastério dos Albinos, a Pensão Rosa, o Cabeleireiro Ivone, o Éter Goebbels, a Data Westminster, o Ministério Marriott, o Ficheiro Anil, o Dito e Feito, o Templário de Beja, a Nau dos Corvos, a Corneta do Diabo, o Jugo do Senhor, o Pomo de Eva, o Maná do Céu, a Maluquinha de Arreios, o Glossário Pax-Tecum, o Anexo de Piaget, o Folheto Lótus, o Documento Terminal, o Relatório de Brodie, a Cassete da Aninhas, o Cravo de Ferro, o Estigma do Êxtase, o Agente Laranja, o Bife de Mármore, o Carapau de Prata, a Senhora das Limpezas, o Écrã de Suez, a Pista Lindsay, o Voluntário de Alcarraques, o Modelo Continental, o Saco de Orelhas, a Lex O'Neill, o Problema Calvino, a Didáctica de Gusmão, o Infante de Legos, a Estrutura Funcional, o Processo Histórico, o Dilema Zamora, a Arte Robótica, o Brandy Mosca, a Camisa Rosa-Negra, a Cibernética Para-Todos, o Porto Sandeman, a Casa das Colheres, a Colina Eólica, o Armazém Leonino, a Banda Gástrica, a Placa dos Dentes, o Metro-e-Meio, a Banha Tokalon, a Regra Filipina, o Recurso Uterino, a Enciclopédia Hirohito, o Miasma Possidónio, o Elemento Brel, o Programa Carioca, a Perspectiva Zé-Eduardo, o Magazine Adalberto, o Facto Alhado, o Cômputo Geral, a Vila-Diogo, a Face Rosicler, o Clérigo do Mal, o Folhetim Eça, o Verdugo Arrependido, a Hora São, o Voo do Jasmim, a Ordem Zero, a Classe Normanda, o Oriente de Faro, o Eco de Pombal, a Formação Quadrúpeta, a Equipa Nua, a Acção Nacional, o Mastim Dourado, a Informação Dúbia, o Danúbio Azul, a Magna Tarte, a Besta Suave, a Situação Limite, o Estágio Carambola, o Corpo ao Manifesto, o Almocreve das Petas, o Bufarinheiro Slade, o Centro Católico, a Comarca de Arganil, o Evangelho de Vil-de-Matos, a Presença do Chiado, o Basicamente-É-Assim, o Módulo Belga, a Vez Derradeira, a Opção Cacho-de-Uvas, o E-Learning de Vidro, o Dínamo de Kiev, a Gravação do Bagarroz, o Pleno Inverno, a Maneira Certa, a Direcção Assistida, o Feto Alaminuta, o Irmão do Maio, o Pé-de-Feijão, a Convenção de Sevilha, a Azinhaga de Gravilha, o Canal Soez, o Tango do Bandido, a Ópera do Malandro, a Idade do Jazz-band, o Auto do Colorau, a Farsa de Inês, a Osga de Pedro, a Súmula de Sancho, o Mistério Cervantes, a Agatha em Telhadezinco, o Parteiro de Neruda, o Reverso da Medalha, a Oportunidade Pedida, o Sistema Longjohn, o Ábaco Dióniso, a Tróia-R-Us, a Tramóia do Morgado, a Lei Ão-da-Selva, o Esplendor da Nataliúde, o Logotipo Qualquer, o Negrito Itálico, o Rómulo de El-Alamein e o Amanhã-Há-Mais.




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