04/07/2009

UM POUCO ANTES DE AMANHÃ (13)

13

Pombal, entardenoitecer de 3 de Julho de 2009

Recordo em pleno amor.
Acontece-me muito.
Esta noite, farei por merecer a brandura das coisas vegetais que emolduram o quadro vivo da aldeia.
Estarei calado na varanda, atento às estrelas de Julho, aos altos pirilampos dos aviões-correio, às vicissitudes da sexta-feira.
Ao longe, há-de pulsar a cidade seu diadema.
Os olhos cerrarei para escuro trânsito de tigres, amores, frutos e ouros, manigâncias, atavismos, sílabas.
Enquanto me não toma tal marulhante silêncio, escrevo a favor do vento.
E o amor é um dos favores do vento.
Os mecanismos trabalham na noite nova, entretanto.
O céu do Verão novo como descomunal instalação eléctrica, psicomotora, radiográfica, pró-humana.
A canalização, ossos de água das casas.
A memória habitável e difícil como um convento.
Por exemplo: vinte anos depois, retomo uma leitura.
Que outro eu serei ante esse eu-leitor de há duas décadas?
Idos e Calendas, de José Carlos González - assim se chama o livro em releitura.
Acendo o candeeiro da sala: a luz espalha-se como um perfume, halo de laranja torrada, benigna, tão doméstica como a pessoa mesma.
Então, os versos sobem à cabeça depois do inverso mergulho na água dos olhos.
O trabalho do poeta sobe a pessoa e à pessoa.
Vou estar do lado da água óptica.
Serei, sentado na noite privada da minha sala, um corpo a menos pelas ruas de bares abertos, de estrelas baixas de néon, de urgências hospitalares, de bailes-das-velhas.

Esta é a minha vida de que sou vivo.

Olhai comigo, senti comigo o rumor da sexta-feira: o teclado alto do arvoredo, o veludo em plasma da nova noite de Julho novo, tudo tão antigo e moço ao tempo mesmo, como os animais vivos e a zoologia.
González é possível, num dos planos de uma das dimensões - como Flaubert, como os defuntos que foram meus avôs, o do lado da Mãe, o do lado do Pai, como o senhor inglês que conheci no Caramulo, como a senhora do café de Molelos, como os jovens parvitos da Chaussée d'Ixelles, em Bruxelas, como a aluna de boca muito vermelha e vestido muito verde que paralisou de comoção erótica o corredor da secretaria universitária há já tantos verões na minha vida, como os cegos que desciam a Rua de Santa Marta, em Lisboa, até ao restaurante dos Ricardos galegos, como o pintainho em tijolo depois da Quinta do Canavial, entre a Pedrulha e a Adémia.

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Canzoada Assaltante