30/06/2009

UM POUCO ANTES DE AMANHÃ (9)

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Pombal, entardenoitecer de 26 de Junho de 2009

De ter atravessado árvores, o ar chega purificado à respiração.

É de capitosa brandura e doçura especiosa.

É, também, a mais transparente bandeira do País.

Consigo sem esforço amar a indiferença das ruas, a flor azul-clara daquele prédio, o cedro descomunal da Escola Secundária, as ancas estreitas da mulher com ar de professora afastando-se para oriente.

A minha camisa é de estampa azul-quadrada-branca. Levo-me em sapatos castanhos. Ouço vozes sem gramática, sinto eflúvios de padaria, registo a realidade de uma rapariga de cabelo muito preto. Lá vai ela à (v)ida dela. Depois, uma chávena de café muito quente num estabelecimento sossegado de bairro. No jornal, os crimes nacionais e a morte mundial de Michael Jackson, que quase oblitera a de Farrah Fawcett.

De onde quieto viajo, folhas de jornal e folhas de árvore vista pela vidraça. A estas, treme-as o ar bom do fim de tarde. Esvai-se o sol em uma serenidade que contagia o par de cães públicos, a velha dos sacos, a ciganita que come um gelado de morango e a escrita que posso.

Ganhei o dia ouvindo jazz e consultando publicações antigas. Fiz comida, tratei das gatas. Antes de sair à rua, passei-me por água morna e atendi o telefone antes de me meter na camisa azul-quadrada-branca.

Mantenho as cartas do passado. Tenho-as aqui. Mensagens festivas da senhora Júlia de Santa Luzia. Uma missiva extensa ao senhor que foi irmão de Maria, José, Joaquim, Alberto, António, Arménio, Serafim e Laurinda. E outras mais, outras ainda. A magia destes papéis envelhecidos. Os mortos que os escrevem, os mortos que os lêem. As vidas dos vivos atravessando as dos mortos: como o ar, as árvores. Os vivos, leitores de cartas: epistolares, astrais, de jogar. Tenho aqui as de que me apropriei. Toco-as como a flores, a lenços de perfumar. São monumentos frágeis e obstinados. Também são, por si mesmas, o Tempo. Vão rareando, substituídas pelo correio electrónico e meios afins.

Veludos fátuos que a noite veste. Comedores de bacalhau descalços em casa. Cordões de água atando as sombras das matas. Crianças que vão flanelamente adormecer. Açucaração polvilhante de pálpebras, de estrelas na toalha hirta do firmamento. Humanidade das ruas esvaziadas, cães rápidos, igrejas todas face dura. Estampas chinesas de folha aérea, seda respiratória. Atenção da Lua às suas coisas. Mundialidade da solidão. Cidade e noite, noites e aldeias uma a uma: um dia de cada voz. Trabalho vertical das árvores, dos postes, das ameias, das estátuas. Rumor druídico dos objectos da casa. Floresta ideária dos sonhos. Cama, rua, castelo, cómoda, cão, tapete, Lua, bacalhau. Tradução em pedra de floresta. Levitação dentro do coração. Ar têxtil, benévolo. Matrocínio metafísico do chão. País comum a cães, mansardas, faces, crepúsculos, cartas. Cores voadoras, altíssimas, venturosas. Comunidade das plantas de vaso espreitando para baixo quem passa. Formigar biológico da comida de reserva. Consecução por vida de cada livro de reserva.

1 comentário:

xana disse...

Sempre bons momentos para «flanelamente adormecer», como as crianças...

Merci.

Canzoada Assaltante