10/05/2009

MENOS UMA HORA NOS AÇORES




Souto, Pombal e arredores, 28 e 30 de Abril e 10 de Maio de 2009



Tenho por estes dias procedido à angiografia da minha vida.
Gosto de recapturar as linhas opacas, intestinas, cerebrais da minha vida.
O pensamento faz de banda sonora non-stop do nosso filme.




Os campos passam de oliveiras perfumadas de terra
o rio atira pássaros aos beirais do vento pluvial
o comboio leva o olhar aos sem-fins do céu caído
a maior parte das pessoas aperta o casaco mental
a tristeza desenha jardins com pedras macias
florões de ferro guardam gatos e laranjeiras
operários crepusculares rondam os cafés frios
a velha dos sacos monologa cabisbaixos lixos
máquinas sós profetizam o acordar dos sonhos
o amor oxida como um limoeiro de quintal
meias palavras juncam reclamos avariados
a cidade repete-se alta na planície estelar
as pessoas são únicas como a lua
gruas perfilam o anoitecer e a solidão
em celas de cristal bocejam as cinderelas de pano
um homem velho lê prospectos de agência de viagens
animais pensam com o corpo todo na sombra toda
estradas de terra ligam pinhais desertos
os mortos esperam vivamente a revisão dos nomes
uma palavra azul procura uma boca vermelha
a alegria borbota antigamente
escusado trocar o coração por uma ideia.



Ou então



Somos de nós mesmos as margens opostas ao rio do tempo.
Alguns somos amados pelo barqueiro, que não termina
de retomar a vau a travessia. Creia-me, menina,
que de nós somos nós mesmos a todo o momento.



Nos sonhos decorrem as redes de espionagem, as coisas orientais do inconsciente aparelhado de lucidez e de amargura e de pequenos dispositivos fotoangiográficos radiopacos, tristes contrastes etc..
Tudo trabalha para o mármore.
A banda sonora é esporádica, a vida não é esporádica, o filme é esporádico, o cinema não é esporádico.
Nós numa península, ist(m)o que somos.
Somos, vamos, estamos indo, entes, sendo.
Sendas do sendo, ondas do indo.
Índicos, pacíficos, ocidentoccipitais, posteriores, monofásicos.
Marinheiros.
Trabalhadores por conta.



Nos quintais trabalham em vigilância os cães-securitas
só os lobos não passam recibo verde
as rolas explodem de patitas electrogrudadas, altitensas
por mim folheio as horas
sempre gostava de saber que fazem as mãos no sono
as pastorinhas de vidro nos fontanários de diamante
um dia isto não ser Portugal mas um café de aldeia
digo: um dia isto não ser a vida mas o mármore
o telefonema que repõe o futuro o fato cinza o feriado
a volta ao bairro onde os amigos se volveram avoengos
de neocrianças latejando lácteas pelas mãos velhas
o painel das almas azulibrancas purgado a Bach e a lixívia
e a cândidas infecções nascidas todas da bactéria de viver
contrasta no céu plúmbeo a eucaliptação nefelibata
mordedura de café-com-leite-pastel-de-nata
os sábados expressos plásticos burguesinhos horríveis
e a farmacologia e os combustíveis
sou de pequenas súbitas alegrias
a chávena que duplica o café
Dickson Carr e Carter Dickson serem o mesm’único
como idem Cecil Day-Lewis e Nicholas Blake
a teoria do caos na aparente loucura do fumo do cigarro
o prumo a nível do rio pedreiro
as tainhas como tiros de esponja na água dos barcos
tudo isto angiograficamente.



Java e Sumatra e Abrantes e Valladolid. Os camiões como lançamentos internacionais. As estradas esfregadas asperamente, os polícias de trânsito como pirilampos de óculos escuros. Gosto disto, enquanto vivo, em trânsito, entre lobos, vigiado por cães. Nemésio, Sena e Belo, idos em 1978, ano em que Cortázar estabelece subterrâneas correspondências bestiárias, seja isto o que for, em trânsito angiográfico, há uma hora como há três décadas, o mesm’único. Cofragem, betão, a foz do rio oceânico, a ponte, os apanhadores de isco, a madrugada embevecida, as palavras larvando cá dentro, a potência explosiva da bexiga, a nossa vida filada, filmada, propedêutica, mortal, Aspen, Malcolm, Montana, Avintes, Burg bei Magdeburg, tantas vozes, tanto mármore. Eu agora. Sexta-feira fiz 45 anos, sábado fui de carro a casa do empreiteiro receber o salário, adentrei aldeias e freguesias completamente portuguesas, profundamente portuguesas, feias e tristes e portuguesas, para lá ouvi Rossini, para cá ouvi Nick Cave, chovia cinza no ar cor-de-coelho, vi o aparato quieto de um desastre de viação sem feridos graves, voltei cedo para casa, Dickson Carr à noite, Os Crimes da Viúva Vermelha (1935), nº 24 da Colecção Vampiro, o sono aconteceu como uma manta de pálpebras, hoje à tarde vamos domingar ante a película Dogville, à noite vamos jantar a casa de um casal amigo e ovolactovegetariano. Cada vez que se escreve, inscreve-se o que é poesia no momento, amanhã será ou não, não faz diferença, não tem importância, por agora é (o) que é, mais dia menos hora.

3 comentários:

Manuel da Mata disse...

Lido. Abraço.
PS: vou lançar os poetas populares.

Anónimo disse...

gostei


cg

DonaRosa disse...

Perdi-me envolvida, mergulhei nas sensações etimológicas e noutras também …

Somos o que comemos, dizem, e no meu misticismo, (espero que) pueril: creio.

Alegria é poder ler bem e comer bem, ambos com prazer.

Canzoada Assaltante