07/02/2009

HABITAÇÃO E POVOAMENTO DE POMBAL (1 a 3)


HABITAÇÃO E POVOAMENTO DE POMBAL
um catálogo de miudezas e de notações meteorológicas, humanas, animais, vegetais, minerais e cosmo-agónicas


e diz, servindo, o que acontece.

R. M. Rilke
Muzot, fins de Fevereiro de 1924





1

Tarde de 5 de Fevereiro de 2009

Sob um apropriado céu de chumbo, o cedro da Escola Secundária é, na tarde sem vento, uma labareda que não tremula.
O frio fechou as mandíbulas, os corpos passam mordidos pela invernia. Ao tempo da meteorologia mescla-se o cronológico, que desbarata a atenção em memória do presente. Com o tempo, a memória volve-se um bacalhau a pataco, que gasto pelas ruas crepusculares. A tarde é uma ponte breve entre o fim da noite e o começo da noite. A manhã mal existe, sufragada apenas pelos galos das cercanias, clarins ríspidos no livor da alba.

2

Tarde de 6 de Fevereiro de 2009

Segue-se outro dia: o mesmo, a avaliar pelo frio. Quero apenas que a habitação seja povoamento: do dia, da rua, da cidade.
Muitas vezes me sucede o de toda a gente, isto de não coincidir cabeça com coração, como acontece quando se leva um sapato mais apertado que outro. Há uma gravidade natural nisto. Fumar um pouco menos, beber muito menos, acabar a leitura do Canadá quando Nova França, começar a que aborda a questão social para, ou em, Eça de Queiroz segundo Jaime Cortesão, sair para a cidade às cinco ou às seis ou às quatro da tarde, ir rever os catálogos humanos que subjazem às últimas árvores. Relatar tudo isso, imaginando o quase tudo em caso de escassez. O cedro de ontem, por exemplo.
Vi o cedro antes e depois de comprar tinta na papelaria. Era uma presença lúcida: um ser de Inverno. Derivei mais devagar que de costume por causa dele. Julgo tê-lo fotografado, sobretudo com palavras. Surgiu-me insurgindo-se-me. Bicho alto, escurecido de seiva, corpo do frio resistindo ao frio e à materialidade da geral condição.
Depois, mais ouvi do que falei em três, quatro conversas com gente destoutro centro do mundo. Não precisei de desejar a noite, que por estes dias dura o dia todo além de si mesma.
Agora, um casal de velhos crocita em francês a um dos balcões locais. Ela é portuguesa, ele parece alsaciano, misto de franco-alemão com destino lusitano.

– A morte pode esperar –

ouço dizer à senhora, que quebra as sílabas portuguesas com um martelinho gaulês.
Então, exactamente agora, um raio de sol brevíssimo acalenta tudo: fita de ouro presa a um gorro de chumbo, fugaz epifania do Verão, logo (agora) desvanecida, caída ao chão, solvida já em água fria.
Maravilha: passa uma avó de netinho pela mão. Leva-o preso pela asa – como se arrastasse um periquito. O miúdo lembra-me uma dessas aves inverosímeis: é pequenito, muito verde, a cabecita solta do resto do corpo por causa da liquidez apreensiva do olhar, um olhar como o meu, que muito olha o mundo e pouco dele entende. A visão, como o sol de há pouco, é breve. Mulher e menino desaparecem numa das esquinas com que as ruas brincam aos legos.
Agora, preparo a expedição de final de tarde. Decerto, ocupação de mesa na Casa de Pasto A Social, depois ou antes de passagem pelo Ilídio da Cardigo. Se o Adelino Leitão não der à costa por a zona do Pelourinho, sossego e redacção nA Social por coisa de meia hora. A noite há-de entretanto ter aberto a boca, há-de ser preciso ir receber o Edgar Domingues à rádio. Pode ser que alguns versos me encontrem nesse entretém que a minha vida usa para se parecer consigo mesma.

3

Entardenoitecer de 6 de Fevereiro de 2009

Em frente à Câmara Municipal a vi. Dela, a cabeça florfluorescia como um lírio de néon. Que bela cabeça! Um halo loiro santificava o ar derredor, sobre o par muito azul dos olhos. Desceu-me uma espécie de paz beata ao coração, ou ao estômago, derivada de tal epifania.
Tive sorte, já que pouquíssimos instantes depois, em plena Rua Almirante Reis já, se me deparou outro par de outro azul: à porta de uma das ourivesarias, uma mulher desfechava dentadas em uma maçã muito verde. Belos olhos distraídos aqueles azuis, que surpreendi presidindo ao vermelho muito vermelho da boca fechado no verde do fruto.
Amo que a desimportância da vida me conceda instantes cromáticos que tais – que a beleza seja ligeira sem ser leviana, que importe sem ser vital (ou mortal, melhor), que a beleza não use ser sempre apreensiva, mas por instantes instantânea e segura e bela e distraída.
Foi então que cheguei à Social, onde me dessedentei a preceito entre comedores de iscas e de peixe frito. No televisor, ardia uma imbecilidade artístico-nacional qualquer. Mergulhei nos papéis sem sacrifício. É o que faço agora, dono de cargas novas de tinta permanente (permanente mais do que a própria pobre estética a que superintendo). Mantenho-me em paz. A mulher telefona-me a contar-me do dia dela, que partilho em transes de lealdade e gratidão. Um senhor de rosto arroxeado (um balão apopléctico, uma laranja de sangue) encomenda, e é servido de, um pires de polvo ensalsado. Trazem-lhe vinho tinto, que ele absorve com capciosa demora. Gosto de ver – ver é o meu trabalho, eu seja cego se não é.
O dia acaba, fósforo da hora. Está frio. Não aqui dentro, mas lá fora. As pedras da cidade queimam-se de gelo por dentro. A ourivesaria, sem sol, parece montra de pechisbeques. Disse adeus ao Paulo Figueiredo e segui. Quando? Agora? Outro dia de outro ano? Desimportante, bacalhau a pataco. Tenho Rilke para ler. Os senhores Raymond Douville e Jacques-Donat Casanova, também os tenho: A Vida Quotidiana na Nova França – o Canadá de Champlain a Montcalm, exemplar que (parece mentira, caramba!) adquiri há 27 anos em Trancoso:


“Trancoso (loja em frente à Barbearia S. Paulo), ao 1º de Outubro de 1981”,

reza a nota de aquisição.
Tinha 17 anos, ninguém me tinha morrido. Ia com o meu cunhado Zé Lima a caminho da aldeia natal dele, que se chama Prova e é no concelho da Mêda. Quase três décadas depois, leio o livro para viajar por dentro. Lembro-me de, na mesma ocasião e na mesma loja trancosense, ter adquirido várias obras do Somerset Maugham. Lembro-me até do preço: cada a 50 paus. O meu Pai tinha-me dado uma pequena fortuna para aqueles dias: uma nota de conto de réis. Num café, comprei um maço de Porto e outro de Ritz, tinha começado a aprender a fumar havia dias, péssima ideia. A coisa passou. Agora, finalmente, estou no Canadá. No Canadá e, para já, no século XVII. Ou então nA Social, em Pombal, século XXI.

Será da minha idade, aquele homem, não há-de ter, se os tiver, muito mais anos do que eu. Encaneceu cedo, é o que é. É lojista. Tem balcão de camisaria, camisolaria, intimidades elásticas para senhoras, pijamas unissexuais. É de olhar triste, apreensivo. O porte é ponderado, mas o olhar é apreensivo e triste. Deve vender muito pouco. A loja é obscura, ardem mal as velas eléctricas que farolizam o estabelecimento ao chumbo que voltou a chover no momento em que saí para fumar na rua. Fiquei em frente à camisaria, do outro lado da rua, em outra margem da vida. Fumei. Ele olhou-me. Eu gosto muito do comércio porque sou poeta. Se fosse comerciante, gostaria talvez de poesia – ou de quem com ela falasse. É tão fácil ser o que sou: um corvo caligrafista em meio à global tempestade económica. Ser triste – é uma coisa. Ser um triste – é bem outra.
Adiante, porém.


ADIANTE, PORÉM

Cápsula no espaço-tempo da sexta-feira,
derivador de magros impérios pessoais,
conheço nesta terra a Terra inteira,
à beira das escalas siderais.


Ali o talho, ali a ourivesaria.
Além o tasco (que não é rasco, minha Maria).
Aqui a cabeça apertando a frio o coração.
Aqui a pessoa, aqui a derivação.

Em nenhum tempo, viajo a favor do pouco vento, aragem mais que força bruta, rumo ao Cardal, onde confirmo a passagem semáfora da comunidade. Não levo pressa nem vou devagar. Está tudo bem, tudo estará menos mal. É pela hora da desarmação: avós com seus netos, tipos compridos e sigilosos como ténias, polícias minerais de segurança vegetal, advogados de toga encharcada como andorinhas pluviais, quiosques que recolhem as aranhas postais, gente que arrefece. Já as padarias tocam a finados de farinha, já na hamburgueria se aquece a chapa americana.
Vou sem pressa nem devagar. Chegarei. Chegarei um dia – e será de noite, quando chegar.

1 comentário:

Anónimo disse...

sempre os mesmos dias a avaliar pelo frio, mas sempre melhores na leitura do que escreves, daniel. um beijo.

Canzoada Assaltante