29/01/2009

Mais Três Coisas Inconsequentes




TÁBUA

I. Dísticos também Pluviais

Souto, tarde de 29 de Janeiro de 2009

II. Não deste Lado

ibidem

III. Dois Sítios

ibidem


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I. Dísticos também Pluviais

Souto, tarde de 29 de Janeiro de 2009




Como os gatos são alguns olhos:
perfeitas máquinas de brincar e de matar.

As nuvens pelo chão, pelo céu as folhas:
muito gosta de espelhos o deus sem rosto.

Uma pastorela, sete barcarolas, uma bailia e duas tenções:
tão pouco de tanto que foi um tal Martim Codax.

Não gosto de poetas pela cidade:
sujam tudo de água e de sal.

Disciplina, rigor, nenhum ardor e esperança alguma:
uso eu em prol do inconsequente.

Esta mão:
estrela desconectada.

Placenta:
medusa por terra.

Agora eu furto cores:
e sou alvinegro agora.



II. Não deste Lado

Ibidem



Estou do lado do rio onde a piedade não medra.
A minha cidade é uma laranjeira,
as luzes da minha noite são-no se laranjas,
não deste lado medra já a piedade.

Colecciono fotogramas ferroviários.
A minha língua é de ferro.
As mãos, de arame.
A piedade não move.

Já não pergunto, muito menos questiono.
Morre-se no inverno, nascer é no outono.
Pode de outros ser o verão a condição.
Deste lado, não.

É como trazer o vento às costas:
é como levar aos ombros um cão de prata:
é como suportar na cabeça o olhar:
o desejo.

O que é como contar as ondas com as mãos?
O que é como separar estrelas de rosas?
O que é como unir irmãos desavindos?
É não nascer.

Estou do lado do rio onde a piedade não medra.
Urdumes e prosápias, tenho muitas.
Faltam-me moedas, isso sim.
Não deste lado medra já a piedade.

O meu amigo trazia os braços tintos de sangue.
Não lhe perguntámos do que vinha nem de onde.
Trazia-se tinto de sangue e não falava:
tinha de novo nascido.

Deste lado da minha vida as laranjas, luzes nocturnas.
Os cães magros unindo as topografias, deste lado.
As crianças insones cujos nomes repetem os criadores.
Deste lado da minha vida o barco, as vias de vidro.

Olhos que semelham sons ou bandeiras
– conheço.
Olhos como ele os tinha na manhã
– conheço nenhuns mais.

Os magarefes de cavalos sabem do que falo deste lado.
Falo de rotas da seda, da pimenta, do marfim
nenhumas.
Quais rotas, quais carago.

Nenhuma piedade e esperança alguma,
não deste lado, onde as crianças e os cães de prata
suportam a condição do alheio verão,
a autoridade outonal dos deuses da chuva.

Pelas encostas os casais gizam ardósias,
o mais que podemos é o milhafre, não a águia,
nem do sul o condor ou o albatroz do belo norte,
onde a lavanda lava por dentro o ar frio.

O mais que podemos, é tudo deste lado, onde
piedade nenhuma, embora algum idioma.
Das gentes carregadoras de ventos e pianos,
o lugar do lume, o barco, as veias do vidro.

As nuvens ladrilham o chão em charco,
revoam pelos ares as folh’aves outonais.
Isto agora só era preciso um barco.
Um só barco, nada mais.

Não, deste lado, a piedade
não.



III. Dois Sítios

Ibidem



1. Bruxelas

No Outono de 2002 isto já era assim como vos conto:
as coisas olhos adentro.
Éramos já quase todos os últimos, que tão poucos são os primeiros – em qualquer coisa, de uma coisa qualquer.
Cheguei, o hotel era limpo, a cidade pareceu-me tão boa para morrer como para viver – qual qualquer outra.
Estava frio, fazia sol, ruas e avenidas eram limpas, o comércio funcionava, a língua era estranha e bárbara e cheia de esquinas.
Comia-se caro e não mal, também o mais eram quatro dias, não mais.
Foi onde por acidente nasceu o argentino Julio Cortázar.
Comprei umas coisas para trazer para casa com a ideia de lá ter estado, fiz mal, podia ter poupado o dinheiro, bastava ter escrito isto para ter lá estado.

2. O Meu Cão

O meu cão chamou-se Canino Rapazita dos Santos Abrunheiro.
E foi o lugar mais humano onde até hoje (até sempre)
vivi.

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Canzoada Assaltante