31/08/2008

Spray




Texto: Viseu, domingo, 17 de Agosto de 2008
Foto: Viseu, tarde de 28 de Agosto de 2008

Não preciso de abrir a boca para te falar
do meu comovido país que entristece
em cada pessoa como um cheque ao portador.

Os olhos levo fechados para te dar a ver
as pastelarias fechadas nos fechados domingos
sonhando cruas segundas-feiras no passado.

O ríspido matraquilhar dos ranchos folclóricos
desmantela-me os ossos dos ombros, assim
como as quadrilhas de falsa etnografia

cheias de professoras divorciadas e
de tesoureiros das juntas. Não preciso
de nada disto, mas aqui vivo para

ter que te dizer sem que boca e olhos
abra, nem domingos. Vive-se insecticidamente
do lado errado do spray, digo-to.

30/08/2008

Anjo em Aveiro

Hoje,
sábado, 30 de Agosto de 2008, pelas 19h00,
na Bertrand do Fórum, em Aveiro,
há sessão autógrafa de
Terminação do Anjo.

******

Noticiaram-me entretanto o falecimento da minha Amiga Lucínia Baptista Azambuja (esta noite, durante o sono).
Vou levá-la comigo a ver o mar, hoje.

Lugares-comuns para Maria


Crónica nº 66 da série Rosário Breve, in O Ribatejo (www.oribatejo.pt) de 29 de Agosto de 2008

Fotografia: © Sandra Bernardo, Feira de S. Mateus, Viseu, 27 de Agosto de 2008

Até que a vaca tussa, estaremos feitos ao bife: o bacalhau está pela hora da morte e a pobreza já nem postas de pescada arrota. Ser português parece-se cada vez mais com a sopa de cavalo cansado. E dizer mal das coisas redunda mais e mais na marmota de rabo na boca.
Já ninguém se atreve a dizer alto lá com o charuto. Somos (ou não somos) todos umas marias que vão com as outras? E todos pensamos (ou não pensamos) em dar às de vila diogo antes que se faça tarde? Sim. Porque ficar é pintar o sete no diabo a quatro: e o abril de sete quatro é o trinta e um do costume.
Também não lembrava ao diabo ser português toda a vida. A morte faz a colheita, que até o lavar dos cestos é vindima. Já nem quem meus filhos beija minha boca adoça, que a casa não é pia, vai tu com a outra, Maria.
Aqui não há gato: há cão que não ladra e caravana que não passa (da cepa torta). Morta depois de rainha melhor seria que rainha depois de morta: faz Pedro de cepa, faz Inês de torta.
Sigamos porém para bingo, que nada vingo em outro incomum lugar que não o da extrema atenção ao lugar sensível da nossa vida-agora: mesmo sem dinheiro, por que (falta de) razão nos putificamos tanto? Por que somos só isto, estes, esta gente, este País? Oitocentos e cinquenta quilómetros de praia, quadrados na província, oitocentos e sessenta e cinco anos de foral de nacionalidade, fado-futebol-fátima-e-saudade: e somos só isto?
A vaca já não tosse Jorge de Sena. Nem Martim Codax. Nem a provável dignidade de D. Dinis. Mas já tivemos Nuno Bragança, não o da dinastia marialva mas o d’ A Noite e o Riso. E Raul Brandão, que nos legou gebos e sombras e pescadores. E nós já fomos. Não sei bem o quê, mas já fomos.
Se ainda formos alguma coisa, ao menos que vamos a tempo de ver passar a caravana rodeada de cães sem mudez e de vacas sem tosse, Maria lavada em água de malvas.

27/08/2008

24/08/2008

www.raspadinha.lete

(Crónica nº 65 da série Rosário Breve, in O Ribatejo - www.oribatejo.pt, edição de 22 de Agosto de 2008)
******

Não sei quem terá sido o caluniador que me bufou aos remotos “masters” da internet, mas é que todo o santo dia recebo na minha caixa de correio electrónico uma carrada de propostas farmacêuticas para aumento volumétrico do meu, digamos, “coiso”. E não só. A farmacologia da www. teima, ainda, em convencer-me a enveredar pelo azul: ou seja, pelo viagra, como se “isto”, afinal, já não fosse uma irrecuperável miniatura.
Está certo que devo ao Fisco, de momento, coisa de cento e picos euros. Mas também não era caso para isto. É verdade que na Lete do Central tenho um “cão” de quatro ginjas, dois bolos de bacalhau, meia grade de minis e um bilhete de raspadinha. Mas não era coisa que me fizessem.
Antes das novas tecnologias, a vida era muito mais fácil e muito mais gira e muito mais bonita. Era. Antigamente, a história só tinha duas hipóteses: ou era antes de Cristo ou depois dEle. Agora é tudo durante: durante www., que não sei o que quer dizer porque é letra que não aprendi em nenhuma cópia-caligrafia da minha primavera marcelista particular.
Sou um semi-órfão já madurote de 44 anos. Ainda não, portanto, me assaltaram nem o des-hastear da bandeira nem o falso azul do céu químico. Nã-senhor. Tenho feito o meu papel, geralmente nesta página até. Informo-me, oriento-me, frequento bares de gente desquitada, vou a apresentações de livros e a inaugurações de pintura, não me rio alto, quase nunca, sempre que algum presidente de câmara fala ou escreve: tudo na linha, cá comigo. Portanto, não merecia tanto entulho. Como diria talvez Hergé, faço o meu tintim. Não merecia era isto do correio electrónico, nem mereço nova oportunidade alguma para coisa, ou “coiso”, nenhum(a).
Que comigo, raspar por raspar, ou raspadinha por raspadinha, só se for na Lete da Central.

23/08/2008

Isto

Viseu, noite de 23 de Agosto de 2008




Isto de não ter dinheiro para ir à vida.
Isto de ter vida e não ter escolhido o dinheiro.
Isto tem não tem tem não tem tem não tem
que se lhe diga.

22/08/2008

Anjo em Viseu


Hoje,
sábado, 23 de Agosto, pelas 17h00,

na livraria Bertrand do Palácio do Gelo,

em Viseu, há lançamento de

Terminação do Anjo.

Entrada livre e saída também.

Vemo-nos (por) lá?

21/08/2008

Trinta e Seis Peças para uma Reconciliação com a Realidade

Viseu, fim da manhã 21 de Agosto de 2008


1

Duas gotas de leite feitas fruta e carne:
ao peito das mulheres.

2

A boca fechada:
um livro aberto.

3

O bater do coração:
as palavras antes da garganta.

4

As asas da ave:
as duas razões para ela.

5

O pedinte de rua:
o país à mão.

6

As asas da ave:
ela duas vezes mesma.

7

A sombra de um menino:
augúrio.

8

Mesa e cadeira:
caderno e lápis.

9

Musgo e pedra:
mês e milénio.

10

Marido velho, esposa moça:
arte e manha.

11

Pedra:
prece.

12

Água:
súplica.

13

Terra:
istmo.

14

Fogo:
idioma.

15

Fruto na árvore:
palavra cumprida.

16

Fruto na árvore:
palavra da árvore.

17

Frutos na árvore:
asas da árvore.

18

Mãe:
pergaminho.

19

Pai:
pergaminho.

20

Mãe e Pai:
claustros.

21

O menino à sombra:
premonição.

22

O sono:
profecia.

23

O nascimento:
o pranto.

24

O nascimento:
o grito.

25

A existência:
o eco.

26

Alegria:
corpo todo.

27

Tristeza:
além do corpo.

28

Uma cabana cheia de mulheres:
um pombal.

29

Uma cabana cheia de homens:
uma cabana cheia de homens.

30

Prédio de quarenta apartamentos:
mas nem uma casa.

31

Farmácia aberta na noite:
luzes acesas em casa.

32

O telefonema:
filho do telegrama.

33

Os olhos:
frutos na árvore.

34

O corpo:
a árvore.

35

O olhar:
fruto dos olhos.

36

O bater do olhar:
as palavras depois da garganta.


20/08/2008

Casa


Foto: © Alfred Stieglitz - Equivalent (1930)
Texto: Viseu, 20 de Agosto de 2008




Que esta casa madure e à queda não receie
como tudo cai quanto amadura.
Um homem seja dentro dela e dentro dele uma mulher.
Que nela caiba a dignidade dupla de animais e plantas.
Tenha muitas janelas, mas uma só luz.

E dentro da luz o homem e dele a mulher.

19/08/2008

SAUDADES DE PORTUGAL, ESTANDO TODAVIA TODA A VIDA CÁ - I

SAUDADES DE PORTUGAL, ESTANDO TODAVIA TODA A VIDA CÁ - I
(uma geografia estapafúrdia como todas as pessoais)

Foto (maravilhosa) colhida desta fonte:
I
Tondela, tarde de 18 de Agosto de 2008



Outrora em Lisboa eu descia muito ao metro a aprender como será isso de estarmos pessoas dentro da terra. Também o fazia para encontrar o meu Pai e o meu Irmão Jorge e o meu Cão Amarelo, que reencontrei muitas vezes e com quem partilhei amistosas viagens no silêncio, entre africanos vestidos de azul-curandeiro e chefes-de-família rezando o breviário do jornal desportivo e raparigas com o ar e o olhar de quem sonha com a fama-TV e professores de ginástica aeróbica com o aspecto todo de viverem à custa de mau sexo com cinquentonas administrativas estúpidas como jibóias e grossas como jibóias e jibóias como mulheres enroscadas em professores subterrâneos e anaeróbicos de metro. Hoje mesmo, esta mesma tarde, a minha mulher perguntou-me se, oportunidade havendo, eu entristeceria de mais em Lisboa. Eu não lhe disse logo que sim porque, de nós dois, é ela a única com futuro, a única de nós duas pessoas que tem saudades mas é do futuro, não é ela felizmente como eu sou, isto que por todo o lado continua atrelado ao Cão Amarelo e ao Irmão e ao Pai.

Peniche era outra coisa. Tinha pescadores, que eram formosos e escuros e tristes e violentos e alcoólicos como eu tudo isso, excepto formoso. Quantos passos errei por aquele istmo queimado pelo sal e pela saudade contemporânea de si mesma como a música de um fado é coeva de sua mesma letra? Peniche foi antes de Lisboa e depois da minha vida. Eu tinha 22 anos, depois 23, agora já fiz 44 e a vida é uma porra que só tem que se lhe diga quando a poesia deixa. Peniche é a cidade onde li Ruy Belo, que foi quem andou em Peniche a ler Alexandre Herculano, que não sei se alguma vez foi a Peniche documentar-se sobre esse monumento árabe que é o mar português.

Em Coimbra, saltei na Avenida Bissaya Barreto para arrancar dois malmequeres que havia altos numa vivenda de médico, em Coimbra todas as pessoas ou são médicas ou doentes, é por assim dizer a indústria local. Os dois malmequeres eram para uma namorada que tinha 18 anos como eu e era formosa e morena e trágica e piscatória como eu isso tudo, à excepção de formoso. Chamava-se ela, ai como é que se chamava.

Não sei em que ponto do nosso Portugal foi que estive mais de uma hora a chorar num banco de madeira, desses verdes de jardim onde os velhos se arrependem da vida e injuriam a Segurança Social. Foi algures, só pode. Não recordo as razões de tanta baba & ranho, talvez alguma mulher perdida como uma concha na praia, ele há tanta praia, tanta concha, tanta mulher. Eu não sei tudo, mas ainda sei chorar.

No Porto, certa ocasião, um amigo deu-me duas coisas, que foram um livro do Herberto Helder e um almoço de bifes de cebolada, desse tipo de livros e de almoços que fundem a chumbo o cu de uma pessoa à cadeira, no caso éramos dois cus. Depois, esse amigo foi à vida dele – e eu, por já então não ter vida aonde ir, vim-me embora do Porto e nunca mais lá voltei. À vida, quero eu dizer. Ao Porto sim, mas poucas vezes.

No Algarve é que era porreiro. Eu tinha 12 anos, nenhuma dívida e um princípio de educação que ainda hoje se reflecte na minha ortografia e no meu atravessar as ruas pelas passadeiras. A água marinha era caldosa e as raparigas francesas eram mesmo francesas, diziam jemápélélène êtuá comã tu tápéle?, que era quase tudo quanto eu podia perceber da língua helénica porque aprendi pelo Je Commence, que era o livro do Robert e da Nicole, que tinham um cão também francês chamado Patapouf, mas também só fui para francês porque a professora de inglês tinha engravidado e naquele tempo as professoras não eram tantas como são hoje, até já comi algumas e também vos digo que elas NÃO SÃO TÃO insossas assim. Mas isso foi depois do Algarve e de ter 12 anos.

Em Tondela, esta mesma tarde (agora mesmo), gostei muito de ouvir rir uma mulher. Era um riso bom, feito de simpatia pela vida e de boa situação financeira. Tinha o cabelo de raízes negras quase todo pintado de amarelo, o que lhe fazia da cabeça uma espécie de camisola do Beira-Mar, que é o clube de Aveiro e já ganhou uma Taça de Portugal, que é o nosso País, mas agora está na Segunda Divisão, como o nosso País. Gostei muito de a ouvir rir porque gosto muito de ouvir o riso das mulheres, que são seres com futuro, ao contrário de nós, os homens pescadores de Peniche, mesmo que não sejamos de Peniche e tenhamos perdido o mar logo ao nascer direitinhos à Segurança Social.

Em Setúbal, adormeci numa conferência de imprensa. Tinha dormido muito mal, depois fiz-me à estrada na noite parecida com uma caverna, um vórtice glaciar, no hotel onde era a coisa havia folhados de carne e café de marca italiana, na altura podia-se fumar, não era como agora que os higienistas e os gays e os judeus e os sportinguistas estão todos no poder a proibir tudo. Fiz bem em adormecer porque aquilo era tudo à base de economistas chamados BDO e de judeus e de gays e de sportinguistas muito higiénicos. Mesmo assim, consegui escrever um texto, que é uma coisa que ainda hoje consigo, saiu numa revista de economia qualquer de capas muito verdes e muito gays e muito BDO, shalom.

Em Viseu, fiz amor contra a minha mulher com um poema cheio de chuva como uma chávena de água do mar. Ela é de olhos azuis, que sorriem antes da boca. Porta consigo por todo o lado uma pele de louça flexível que entontece, naturalmente, os filhos-da-puta dos outros gajos que eu não sou. Quando ela se ri, é à beira-mar que recolho, mas não como aquela da cabeça do clube aveirense.

Em Ílhavo, nada a ver com isto. Em Ílhavo, conversei com um homem antigo de muito bom idioma. Como todos os viúvos, vivia num rés-do-chão. Ele gostou de conversar comigo, disse-me que eu ia morrer de velho porque sabia bem o meu português e as minhas maneiras e atravessar as ruas pelas passadeiras, só se enganou nisto, apesar da ortografia e de ter tido 12 anos no Algarve e noutros sítios do nosso País, que é Portugal. Tenho saudades desse homem, que se chamava Carlos e tinha saudades da mulher, que se chamava Maria do Amparo e o desamparara morrendo apesar do amor dele por ela, que ainda eram vivos, ele e o amor por ela.

Em Pombal, embebedei-me furiosamente contra o facto inexplicável de nunca o Nobel da Literatura ter sido atribuído nem a Camões nem a Cesário Verde. Pombal é uma terra muito cómica onde as pessoas choram, sobretudo em bancos de jardim. Os cães tossem peixes, as pombas parecem gaivotas bastardas, o sol é branco como um melão caído ao chão, os olhos das pessoas parecem pintados à mão – mas é lá que tenho amigos que não morrem, mesmo os que já morreram.

Em Santiago do Cacém, fiz a mijada mais maravilhosa da minha vida. Mas isso fica para outra ocasião. Agora, au revoir, como diriam o Robert e a Nicole e até o Patapouf.

17/08/2008

MAIS ANO MENOS ANO, MAIS FEIRA MENOS FEIRA, MAIS SANTO MENOS SANTO, O TEMPO É UM ÓLEO DE FRITAR MENINOS


(estrofes-farturas para uma Feira de S. Mateus alternativa)

Viseu, nas imediações da dita, tarde de 16 de Agosto de 2008



O ourives e o homem do lixo são irmãos, juntaram esta tarde as respectivas descendências para um almoço amerendado, é sábado, troa lá em baixo a feira anual do santo.

Rondam os meninos como aves de entardecer no bico, as árvores frestam alto papéis amarelos feitos de luz rápida como pensos de ciganos, é sábado e é a vida, a vida ao lado da gente na rua como uma pessoa que passa pela gente.

Nos cabos pousam os corvos como notas de música, não, como pausas de música: ouço-os com os olhos enquanto planeio comprar um chocolate, ou um frango, ou um vaso. Eles adejam luminuras de feira, os corvos.

Rulotes parecem-me cristais, não sei porquê. Os meninos do ourives e os do lixeiro incandescem de corridas na gravilha sem ira e sem obrigação. Cheiros materializam-se como defuntos incapazes de readormecer.

Agora já não se fala nisso, mas tempo houve de as pessoas não poderem vir à grande anual do santo, tolhidas nos casebres das aldeias pelo sono em fome dos animais da criação. À luz do azeite, a fruta colhida ourejava contra o desespero.

Ouro e lixo. Meninos e corvos. Sábado e vida. Corvos e rulotes. Chocolates e frangos. Árvores e papéis. Corvos e olhos. Merendas e descendências. Pessoas e gentes. Cheiros e corridas. Corvos e corvos.

Aqui não soa o bramir dos cargueiros, aqui não raspa o mar as madeiras de ancoradouros nenhuns, há uma língua ribeirinha traduzida em fragmentos de lixo, plástico mormente, que as pessoas dizem à vida lateral do santo anual.

E os casais movidos a óleo alimentar bambam pelo recinto suas coronárias de média tensão: delas, o rego mamário farfalhando celulilaranjas; deles, os calções de alcooatletas acima das sandálias atiradoras de unhas grossas, amarelas. E as filhas já namoram nos bancos de trás de viaturas de matrícula francesa.

O ourives e o homem do lixo e eu somos todos irmãos – e todos quase amamos quase muito o país anual, o santo de feira, o galo escarlate e a couve roxa – e os meninos, já agora.

(Que ao menos a língua me não negue o que a vida não tem obrigação de me dar. Se, por exemplo, por aqui não houver vinhedos e trigais cabelando a terra, que triguedos e vinhais à terra cabelem, frestando-a de rápidos papéis amarelos, verdes.)

Pelas pedras que calçam a cidade, não riscam já chispas de eléctrico ouro as mãos dos cavalos, a bordo de que defuntos capitães reviveriam o corso dos saques, o terror dos conventos, a devoção capelista das malcasadas e os versos de cordel a prègar na feira do santo.

Alteram as massas meteorológicas os estados espirituosos. Flui bem a aguadilha dos suores, nem todos frios. Ressuma o sarro interdigital dos pés amorteirados de vianda e ossos porosos da perfuração porcívora. Ladram os altifalantes a espúria euforia emigratória. E cães de ninguém tossem esganas e espinhas.

Relvaram, ainda assim, uma margem pedonal. Um súbito pinheiro resina resignação contra ninguém: morto ou vivo. Rapazes de cinquenta e picos peidam-se de pêras de vinho, de arroz de frango e de aleijões de farturas. E uma espécie de ternura digestiva desce ao lugar em lugar do santo e em vez da gente.

Os meninos vão ser homens (de ouro, de lixo) mas não o sabem, não ainda. Agora sossegaram um pouco, aturdidos de química framboesa gelada e de cuspo de manga laboratorial. É tudo, como sempre, no poço-da-morte, mas em vídeo agora, dá no mesmo.

E se uma pessoa a si mesma lesma uma baba de versos, que prosaica se salvar venha, aqui ao monturo de cascas de fruta, de roídos entrecostos, de corvos churrascados, altos, numa baixeza de papéis e frestas.

Os meninos agora têm vidro, ou frio, em suas carcaças ambulatórias. A eles pertenceria o súbito pinheiro, se dele pudessem aperceber-se em retina, rotina, uso, hábito e idioma: mas o mais é altifalante, é óleo alimentar.

Lixo e ouro. Junção de vielas e transversos. O trigo subido de uma cabeça loura, a cujas faces presidem duas esmeraldas azuis: e a que subjaz uma ganga apertadora de febras, fímbrias, fiambres: alguma das filhas, irmãs mais velhas dos meninos expostos em ronda e derredor.

Toca-me de bolos uma venda de pano branco em tabuleiro de vime. A madrugada pode urdir assassínios domésticos e de alternes, mas por ora dá-se tão-só o doce urdume do sol em malvasia, isso tão português do entardenoitecer, atentos os meninos do lixo e os do ouro a seus pais e a seus versos corridos a prosa de cordel.

A fonte rotunda-se ainda, rapazelhos-clones basculam cãs prematuras e tardios telemóveis, ciganos rendem-se ao cristianismo esmoler dos pensos-rápidos, há até portugueses na ronda dos expostos. Entretanto, o santo.

Já decano, o ano emoldura-se de maravilhosos esquecimentos. Os preços, os estendais de roupa, os balões inquietos de hélio, os vinhais, os vinhedos, os trigais, os triguedos, as mulheres capelistas ante defuntos bandoleiros capitães acavalados, as cidades dos séculos XIX e XXI apenas isto, secular apenas – e apenas anual, santa embora, embora de ouro, de um lixo de meninos, irmãos todos, nós, meu santo.

16/08/2008

PODE, PODE

Viseu, 16 e 2 de Agosto de 2008



Hoje, 16, está a chover, é quase meio-dia.
Vejo daqui duas, três, quatro árvores no sábado.
Tenho de vos mostrar uma colecção nova de palavras ouvidas na tarde de há dois sábados, nesta mesma cidade, este mesmo século XXI.
Eu estava a demorar a minha brevidade ali muito perto do Café Isabelinha.
Há por ali morcegos diurnos que me interessam muito.
Quando as vozes cá dentro se misturam, é muito interessante – e eu passo um bom bocado a dar-lhes tinta.
Não sei se os gajos e as tipas do pequeno comércio marroquino e colombiano gostam dessa estapafúrdia figura do Redactor em Progresso.
Não sei nem me interessa.
A vós, espero que vos interesse saber este, mais do que uma charla, poema deles.



NÃO PODE SER UMA NOVA VIDA ANTIGA

– Botava fogo a isto tudo.
– S’ele fosse um corno bravo, ninguém se metia co’ ele.
– Quais dois lados?
– Se queres fazer uma vida com uma pessoa nova, não pode ser uma vida antiga.
– Mas qual é que tem razão, caralho?
– Tu tens uma mulher há cinco anos, é um supor.
– Ela está em casa, não estou lá pa’ ver, não dá dinheiro, não dá amor, isso é muita gente.
– Isso é ofender todo o mundo.
– Quando ’ tá bem, é tudo dele.
– Costumava ir ali àquilo, o casino.
– ’tás a ver, olha aquilo.
– Pá, deixa o homem.
– Nova Iorque é amor.
– Fica mais barato.
– ’ t’abituar mal ou o carago.
– D’ ez em dez anos.
– É um supor.
– Na cara dele.
– Olh’ aqui aquele pa’ te chamar.
– No cabo da escolta.
– Bom fim-de-semana, ’tá bem?
– Ninguém faz mal, mas vêem fazer mal a uma pomba, é o carago logo.
– Têm de deixar as novas, limpam as velhas e têm de deixar as novas.
– Oui.
– Pas de coeur, je m’emmerde.
– Vivi em Coimbra, sei o qu’ é isso.
– Se ’tivess’ aí o meu irmão, levav’ igual.
– Ya.
– E há.
– I, A.
– Dez euros e meio, carago, não foi isso qu’ eu disse, já todo fodido, posso levar fort&feio, não sou daqueles de pegar no telemóvel e começar a cortar-l’ um bocadinho.
– Um bocado do olho, tira isso.
– Não havia hipótese, tirava sempre alguma coisa.
– Oxida ao ar, uns momentos e morre.
– Acabaram com o cavalo, mas depois começaram a ressacar e veio, depois veio, não estava era ninguém pa’ pagar um copo.
– Vêm de bicicleta, não foste cobrir hoje.
– ’bração, fica bem.



Ainda está a chover, mas parece que menos. É meio-dia e 13. As árvores etc.

Alguma Sombra para Alguma Luz – conclusão (II a V)



Viseu, tarde de 13 de Agosto de 2008

II

A poesia é um artefacto que me interessa dada a lentidão
com que me oferece a equivalência do mercedes ao tubarão,
a mim que não fui nunca senão pela mão da mãe do mar.

Isto é particularmente interessante nos tempos que correm
e, ademais, nos tempos que morrem.

Eu sei falar de sombras como um perito preto.
Tive um amigo de bom coração que vivia de pastelaria congelada,
isso já me aconteceu e eu não vou tirar desforço.

Eu agora sei falar e nada tenho de particular
a dizer, excepto versos.
(A sombra é azul nos urinóis de mármore,
mas, também, por outro lado.)

Uma avenida por estes lados corre a mesma
irrepetível manhã
na noite de putas,
isto do colonialismo brasileiro tem
que se lhe diga.
Uma senhora tem uma amiga,

com que chaleira conversas de gatos e naperons
que tossem virgens-de-fátima e padres-cruzes
(canhoto),
fecha-se a água e desligam-se as luzes.

A poesia é uma arte que me interessa de facto.



III

Todos nós temos alguma responsabilidade
na memória de ouro dos laranjais, algures antes

na vida. Eu tenho as minhas ínsuas tangerineiras,
corria para morrer perto um rio, além-verde

nos anos que me responsabilizam
antes vós, por voz.

Nunca fui muito de mais não ser do que isto.
Havia as vizinhas, o cheiro a comida das casas,

as nespereiras enferrujando pepitas ácidas,
os cães aguentando a eternidade devagar.

Leite e carnificina eram produtos de pai & mãe,
onde o entardecer tornava fulvos os prédios pobres.

Grécias e mármores juntavam-se fundições
celeradas no primeiro alvor de papel: "– Não leias! –"

nunca me disseram: e eu sou triste
porque dou ’inda esses poemas lentos,

eu que nunca tive um mercedes,
eu que ’inda tenho mãe mas mar não,

senão certas vezes ao entardenoitecer,
quando, sombrio, me lembro de tanta luz.



IV

A beleza das mulheres é ainda algo
que me causa repetição:

tem o seu quê de cabra, seu quê de mãe,
seu algo de chefe de repartição.

À luz da tarde, luz sua ínclita luz
a brutalidade carnal das mulheres de Portugal,

mas também seu chinelante noivado perpétuo
(essa branca viuvez) a mulher de Gervásio, a de Adérito.

Luz e sombra concorrem vida e esse outro nome
dela, isso a que um eu chama tu.



V

Mas mais que tu a vida extensa é a dor
a outros deixada em legado por tua não vida.


15/08/2008

Um Bonsai Português a 15 de Agosto

Viseu, início da tarde de 15 de Agosto de 2008



Os meus pulmões andam mais doentes, mas o meu
coração ainda é um bonsai.

Como águas nocturnas de rio, assim me brilham
escuramente os olhos, ainda.

A vida é o sítio onde nada acontece, excepto
agora, que a escrevivo.

É-me possível explodir miríades de abelhas,
apicultivar o mel triste dos candeeiros de ouro

ao traço das avenidas enegrecidas de árvores,
putas, prédios e farmácias que vigiam a dor.

Uma ida às dor-douradas lixeiras da modernidade
pode ser uma incursão olímpica de valor.

Registo o lento cão, a pomba crucial, o manso louco
que há quarenta anos trabalha na sapataria

enquanto pela milésima vez adia
a emigração de seu bonsai.

Noruegar é possível ao melancólico utente
da luz deste país comido por dentro

do cancro da idiotia ungida de fé
e de fadobol. Nada senão a deflagração de abelhas

é importante, mesmo que como no caso
seja 15 de Agosto, dia em que a minha maravilhosa

gente estúpida atulha de chinelos e cáries
os restaurantes e os palheiros do poder local.

Não viver mas escrever
é o que mais me interessa de Portugal.

Alguma Sombra para Alguma Luz - I

Viseu, tarde de 13 de Agosto de 2008




Para a minha muito querida Amiga
Lucínia Baptista Azambuja,
que está doente.




I

A tua sombra habita já a terra,
deitada amante que a teu corpo aguarda.

Entre o teu corpo e a sombra a que ele pertence,
há um amor que se alimenta de invencível luz.

O alto sol branco a vós três desenha escuramente,
corpo, sombra e isso a que chamas eu.

Nenhum corpo deixa, à luz, de batalhar nas sombras,
suas luas tarjadas de preto e de cometas.

Quantas vezes isto a que chamo eu foi, fui,
treva travada em equinocial drama

de luz a mais outonal a pleno junho
– e sol e sacrifício e solstício?

Tantas vezes, vozes tontas. Drama colectivo e humaníssimo,
drama do pintor ante suas cinzas de color idas.

E sempre vindas, a sombra pelo chão derramada,
tanta pretidão oculta em branco, o sol alto.

A tua sombra como se uma mulher te falasse
ao ouvido tecnicamente: trabalho de músicas

urdindo os anticristos do silêncio, lá onde a
gonorreia e a fome e as agências de viagens.

E as de virgens, ao sol, num botequim
esconso como o coração, o sol todo de repente na rua.

O sol de repente todo na lua, subindo a montanha
a escalão de chuva, o gosto maior da morte na boca.

E a língua toda louca, entre sombra e corpo,
o homem pequenino comprando flores e rebuçados,

a enorme quarta-feira da eternidade, a cosmogonia genital
das mulheres, o transístor pasodoblando janelas cristaleiras.

E os bancos de pedra sob a tabuleta de telefone e selos,
na aldeia íntima do coração, num país sombrio

e solar como um susto de criança ante o poder
do pai, a vilegiatura da mãe e os limoeiros

que tossem ouro citrino contra o azul invencível
de que se alimentam corpo, sombra e eus e deus.

Cosmos e agonia – e rebuçados e flores – tudo
baba sua aranha negra, sua branca sombra de pomba e escombro.

Uma tarja verde oficializa o morto vegetal,
esse que transportamos em cafés e cigarros.

Convocas de pés no chão como mãos caídas
a humidade solar e terratenente do futuro, agora.

Os aviões choviam no escuro patrioticamente
a fundamental incompreensão da batalha. Era o idioma

nascendo seus cogumelos maus em vastas praias
como os sonhos e as mortes das mães.

E as coisas de que se outonam os versos
– e as pequeninas alegrias do sexo e dos rios,

quando as andorinhas fecham os olhos
e voam à maluca, riscos pretibrancos no céu azulealuz.

Esse tempo de árvores fruteiras que perdemos
na infância, lá onde a última cal e a primeira sombra.

A natureza alimentícia das casas pelo chão,
onde os cães botaram mãos de pintura e mijos.

A natureza mortal da beleza, isso a que a cada eu
ensina o tu demasiado vasto do que se perde

mais nascendo do que morrendo. E a ternura de prata
feita talher que alguma mãe guarda contra a perda

e contra os retratos, na linha de sombra que
deita olheiras ao sol. Assim de repente, assim

claramente, na noite que os outros tornam nossa
naquilo a que chamamos invencivelmente eu.

(E tudo depois
como nunca antes,

a sombra dos comedores
aos pés dos restaurantes.)

13/08/2008

Pai (obrigado, Rui)



Devo ao meu Amigo Rui Correia o conhecimento desta canção absolutamente matadora.
Chet Atkins canta para o Pai dele.
E para o nosso também, claro.

Um Poema de Antonio Gamoneda

A minha amiga Lídia já me tinha falado neste senhor, Antonio Gamoneda.
Olhai que maravilha:


******


Ha de llover
Hay sequía en la luz y la ceniza llora,
como mi madre, sin lágrimas.
Ha de llover.
Ha de llover hasta que se levanten los maíces sagrados y sea posible la
celebración de la muerte.
Ha de llover.
¿Por qué no? ¿ Por qué no ha de llover
en la tiniebla intestinal y en las hirvientes médulas?
Ha de llover
en los niños frenéticos y en los adoradores nocturnos
y en los ancianos extraviados en la música.
Ha de llover
en el aire poblado de ausentes y en la felicidad ensangrentada.
Ha de llover sobre esta piedra enferma
donde, en la noche, cunde un resplandor
procedente de astros inservibles.
Ha de llover. Tiene que llover con dulzura
sobre los suicidas del amanecer.
Ha de llover
en la superficie cristianizada por la industria. Ha de llover
hasta que aúllen las alondras y,
bajo las catenarias, en Vega Magaz,
los ferroviarios se desnuden
y detengan la máquina que llora.
Ha de llover en la extremaunción
sacramentalmente perversa. Ha de llover
en el interior del hierro y en el pensamiento
de los cianóticos y
de los niños prematuros.
Ha de llover
sobre las secretarias parturientas,
sobre los tísicos y los asesinos,
sobre los comandantes y las monjas.
Ha de llover en los prostíbulos
y en los ministerios incomprensibles
y en las fístulas eternas. Sí,
ha de llover. Y las serpientes
aprenderán a silbar con dulzura
unas seiscientas melodías olvidadas. Son
reconocibles por su olor a sombra
y a sustancia inguinal. Dichas serpientes
han de silbar en las cajas de ahorro
y en los urinarios y en las tumbas.
Ha de llover. Hoy es martes
de salvación. Hoy resucitan
los fusilados de Villamañán.
Ha de llover en las grandes letrinas
notariales hasta que aparezcan los títulos
de propiedad de la luz y de la tristeza hipotecaria
y las cartas de amor de Francisco Franco.
Ha de llover, ha de llover dulcemente, sobre las niñas que abortan
en octubre y
sobre los padres invisibles.
Ha de llover en la agonía de Jorge Pedrero
y sobre los visitantes clandestinos.
Ha de llover. Causa analógica:
se sabe que los agonizantes son felices
rodeados de llanto.
Ha de llover,
ha de llover sobre los huesos de Felipe Segundo
y de los Caídos por Dios y por España.
Agua para los prostáticos
y su dolor universal, agua también
para los sifilíticos y los curas.
Agua para los Borbones,
y para los mendigos y las mujeres desnudas
que gritaron los gritos amarillos
de mil novecientos treinta y seis.
Ha de llover.
Ha de llover en los pantanos
rebosantes (se dice) de fascismo y de
melancolía azul. Han de existir
poderosas razones ecuménicas
para que llueva en los pantanos. Ha
de ser físicamente necesario a causa
de la prosperidad del incesto y de los cuchillos
olvidados en las iglesias. Ha
de llover.
Ha de llover, sí, pero no han de olvidarse
los manantiales del odio ni las acequias
secretas de los monasterios ni
la humedad de las sociedades anónimas.
Ha de llover jamás y siempre. Con
desesperación agraria. Ha de llover
hasta que enloquezcan los metales
y el sílice y las inmensas madres
del Barrio de la Sal.
Ha de llover.
Ha de llover ya.
¿Está lloviendo?
Sí, está lloviendo. Las madres,
bajo la lluvia, van
al penal incesante. Son blancas y locas,
llevan fuego y amor.
Ah de la lluvia,
ah del amor, ah del fuego.
Llueve
en mi pasado y en mis venas. Va a llover
también en mi desaparición.
Ah de la lluvia
sobre las madres locas. Ya arde, bajo el agua,
San Marcos con amor, ya están ardiendo
dulcemente los juicios sumarísimos.
Ah de la lluvia.


Antonio Gamoneda

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Fonte: http://lafogonera.blogspot.com/

12/08/2008

Dias há que são


Pombal, manhã de 12 de Agosto de 2008


Dias há que são países nocturnos.
Comigo anda a clara idade dos olhos dela:
ainda é o que me salva de tanta lua escura.

Serei um profissional da tristeza: com um pouco
de estudos, serei um profissional da melancolia.

Todos os dias a noite me acontece: uma boa
garrafa de mau gin, os retratos fechados em gavetas,
a palavra queimada na boca como um papel
qualquer.

Vale-me que amo: a loucura é portátil: vale-me isso.
Esta manhã, subi a uma varanda alta
a ver a simultaneidade dos carros.
Amo estas formigas vivas na cidade já estranha.

O meu amigo dormia cantando, acordei sozinho.

Eu agora posso ser isto: um organograma da memória.
Tropeço em vidros, em anjos: todos os
dias.

Conheço a mutante sombra: a lua mútua dos tristes.
Vi um cavalo: sua solidão de couro alta na erva baldia.
Conheço o dia.

Vi a boca de uma mulher falar fora da cara.
Vi tintas correndo paredes: assim algumas lágrimas
cromáticas me correram já, outrora.

Tudo isto é apenas humano, apenas coisa de gente
vestida de preto entre áleas e áleas e áleas.

Vi uma senhora sentada num banquinho de campismo
ante tremoços, torrão-de-alicante, chupas de pegajoso
caramelo, na cidade já estranha.

Perguntei a um homem pela mulher dele,
disse-ma doente, enlouquecida entre os limoeiros do pátio.
Não quis saber mais.

Frigiam carne a um canto.
Um cão passou cantando.
De manhã, tinham de acender as luzes para morrer.

Depois, eu toquei a velha garrafa de dois dias.
Os limoeiros enferrujam na clara idade: era talvez a morte,
as notícias iguais na luz negra, os prédios todos para venda,
as criancinhas minúsculas como bicicletas, como bicicletas
muito magras as crianças antigas.

Antes, eu tinha tocado um coração sensível: e um amor
cavernoso como um órgão de igreja, fundo na treva.

Eu podia dizer isto para sempre.
Eu digo.
Agora, é outro dia.

Eu digo: sou outro no mesmo dia.

08/08/2008

Ruy Belo - 30 anos depois







Passam hoje, 8 de Agosto de 2008, trinta anos sobre a data da morte (física) do poeta Ruy Belo. O Ribatejo assinala a efeméride com uma edição especial. Eis algumas das matérias.
http://www.oribatejo.pt/

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A LOIÇA TODA
Ruy Belo ainda faz, 30 anos depois, tatuagens ao domicílio


Acontece a muita (afinal pouca, talvez) e a muito boa gente: Ruy Belo tatua uma pessoa.
Viveu 45 anos terrenos, durante que deixou de acreditar em deuses que não fossem da terra. Ainda andou por Roma, é certo, e até por Madrid, era vivo ainda o torcionário Franco. Deve ter amado alguma coisa ou alguém, a ponto de Diogo, Duarte e Catarina, nomes que teve de engendrar em co-autoria com Maria Teresa.
Nasceu em S. João da Ribeira, cujo cemitério tem uma torre de património. Viveu num monte chamado Abraão, topografia uma entre tantas da sua vida: Vila do Conde, Queluz, Santarém – e Natalie Wood e Marilyn Monroe, sítios também de referência, visitação e verso.
Viveu poucos anos, em cômputo por assim dizer demográfico. O gráfico é o demo, enfim (para um leitor de jornal, melhor). Mas viu acabar em foz um rio. Sabia do Cávado e de Esposende como ninguém. Ele disse umas coisas, esteve ao frio, assistiu à absolutamente inútil tentativa dos candeeiros públicos contra a noite privada.
Entretanto, dactilografou versos de que as pessoas precisam sem saber que a televisão não basta para a vida.
Nasceu no ano da ascensão de Hitler ao Reichstag. Conheceu o nome do ciclista José Maria Nicolau. Sim, ele lia jornais desportivos, que naquele tempo eram escritos em português de Portugal. Atirou a Herberto Helder aquele poema do Vat 69 que ainda hoje está para ser contrariado em língua portuguesa. Foi a Peniche com João Miguel Fernandes Jorge, a mulher Teresa subiu à contemplação da Nau dos Corvos com o outro poeta, ele ficou no carro a ter frio.
Agora a sério, a obra de Ruy Belo é perfeitamente insustentável se pensarmos ser(mos)alguma coisa em português, mesmo que suaves. Um determinado Joaquim (aliás Manuel, aliás Magalhães) isto mesmo sustentou incomparavelmente:
“A poesia deste homem caminhava entre o peso da superfície ocasional do mundo e devaneios de sentido onde o real confrontado se trespassava de mais que real, onde o mundo adivinhava e temia e recuava face a um outro mundo.
A sua poesia é o lugar do mundo, o discurso da sua palavra interior não desiste nunca de ser um diálogo com o real.”
Admiráveis palavras: um poeta suscita (sempre) admiráveis palavras a toda a gente capaz de parar para ver o movimento. E nada adianta a Joaquim Manuel Magalhães ser um poeta, ele também: Ruy já era, foi, vai ser.
Se eu fosse, por assim dizer pessoalmente, ribatejano, seria uma sombra na campina: isto é: um leitor de Ruy Belo (e de Bernardo Santareno, já agora também, que o país é curto e a manta não estica). A obra deste homem é um lapso sensorial, uma atenção à despesa dos dias e à conta da morte, que ele antecipou em versos de uma clareza que dói, até, ao olhar interior. E anterior.
Foi menino provinciano, viajou até Santarém, deve ter cheirado maçãs, a calvície afrontou-lhe o busto ósseo e alto, deve ter amado feminis figurinos, foi homem-pai de três filhos e vários livros. Não deve ter deixado mal no mundo, dívidas é que não sei, há fotografias de uma estante onde outros livros que não dele, mas dele.
Ler Ruy Belo, em Portugal, pode ser uma resistência. Uma resistência não armada. Sobretudo, não armada em parva. Até porque ele nunca foi da TV. Não escreveu TV. Não apareceu nu, cabelo ao peito, na pe-lei-bol(a) local.
A poesia de Ruy Belo, enfim, é o que não sei dizer dela. Mas é também minha, a partir do que faço a partir dela.
E só isso acredito seja a vera poesia (a ver a poesia): aquilo que se faz a partir de alguém, no caso Ruy (ou Rui), por indelével tatuagem.





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Números e Dias de Ruy Belo
(a partir da cronologia organizada para a Editorial Presença por Joaquim Manuel Magalhães)



1933- Rui de Moura Belo nasce a 27 de Fevereiro em S. João da Ribeira, concelho de Rio Maior, distrito de Santarém.
1943-1956 - Liceu em Santarém, universidades de Coimbra e Lisboa, licenciatura em Direito.
1958 – Doutoramento em Direito Canónico (Roma).
1961 – Faculdade de Letras em Lisboa, conhecimento de Maria Teresa, futura mulher. Abandona a Opus Dei. Aquele Grande Rio Eufrates (Ática).
1962 – O Problema da Habitação – alguns aspectos (Morais Editora).
1966 – Casa com Maria Teresa. Boca Bilingue (Ática).
1967 – Licencia-se em Filologia Românica. Nasce o primeiro filho, Diogo.
1968 – Segundo filho: Duarte. Na Senda da Poesia (União Gráfica).
1970 – Homem de Palavra(s) (Publicações Dom Quixote).
1971 – Traduz Borges para a Dom Quixote. É Leitor de Português na Universidade de Madrid.
1972 – Aquele Grande Rio Eufrates (Moraes Editores). Praia da Consolação, perto de Peniche: sol e versos.
1973 – Transporte no Tempo (Moraes Editores). País Possível (Assírio e Alvim).
1974 – Nasce Catarina, dele e de Maria Teresa. A Margem da Alegria (Moraes Editores).
1976 – Toda a Terra (Moraes Editores).
1977 – Despeço-me da Terra da Alegria (Editorial Inova). Regressa de Madrid. Sem cunha partidária, vê-se sem emprego. Consegue um horário nocturno na Escola Técnica do Cacém.
1978 – Segunda edição de Homem de Palavra(s) (Presença). Morre a 8 de Agosto. Despeço-me da Terra da Alegria (Presença).



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Ruy vezes cinco

Depoimentos obtidos no dia 25 de Julho de 1996, no Teatro da Cornucópia, em Lisboa, por ocasião da ante-estreia da encenação, por Luís Miguel Cintra, do poema de Ruy Belo “A Margem da Alegria”.







1. Luís Miguel Cintra (actor, encenador e director do Teatro da Cornucópia)

A poesia do Ruy Belo é muito agradável de ler. Sente-se que ele se preocupava com os sons das palavras, os ritmos, as rimas, com o jogo das sonoridades – e isso dá um prazer extra para quem está a ler. Há muito tempo que é uma poesia que me dá prazer ler em voz alta. A minha geração, que adoptou a poesia do Ruy como a sua poesia, é uma geração que está hoje nos lugares-chave, está no poder, e pensou uma quantidade de coisas que estão expressas nesta poesia. Gosto de celebrar com outras pessoas esta poesia, que é nossa. O Ruy Belo tem textos sobre a própria maneira de dizer poesia. Há uma enorme confiança nas próprias palavras que estão escritas, não é preciso enfatizá-las. Há uma espécie de contradição básica na poesia do Ruy e sobre a qual ele está sempre a trabalhar: é um poeta que está sempre a falar de alegria e sempre a falar de morte ao mesmo tempo, como se as duas ideias não fossem contraditórias e como se só o pensamento das duas ideias em conjunto fosse capaz de dar o verdadeiro sentido da vida. Creio que é um poeta que se interessa pela vida, acima de tudo, e que é através justamente do binómio alegria-morte, ou alegria-tristeza, ou amor-morte, que se constrói toda a sua poesia. A busca da alegria é uma busca que passa por um enorme sofrimento. Eu com a poesia do Ruy sinto-me muito à vontade com a poesia, de facto. É uma pessoa que conheci muito bem e com cuja poesia convivi directamente. Chegava a casa dos meus pais, quando eu ainda lá vivia, e trazia um poema que lia ao meu pai, é uma poesia que faz parte de mim muito em especial. É uma poesia que elogia a desmedida, que acho que existe no Ruy. Creio que a sociedade em que vivemos actualmente mete demasiado na cabeça das pessoas uma forma regrada de viver a que só é possível fugir como quem faz um disparate, um erro, uma coisa que é proibida por lei. A lei deveria ser a desmedida, a paixão tem de poder existir na nossa vida quotidiana, aquilo que não está previsto, aquilo que não foi ainda inventado, aquilo que mais ninguém faz, aquilo que é só nosso tem de ter possibilidade de existir na vida das pessoas. E creio que para muitos jovens isso está proibido. Não é possível ser fora daquilo que está previsto. Isto é uma coisa que eu sofro na vida quotidiana, que sinto como uma limitação que, apesar de tudo, para a minha geração, não existia, não estava previsto que a evolução fosse assim. Nós pensávamos que a vida se libertaria cada vez mais, mas duma maneira muito estranha estão a surgir e a passar para dentro da cabeça das pessoas limitações muito grandes no sentido de uma enorme “normalização” da vida. Isso não gostaria que existisse. Nós sonhamos com uma vida maior do que a que vivemos hoje. O Ruy tinha a capacidade de englobar muitos aspectos da vida, de gostar de pessoas muito diferentes, de perceber que a verdadeira importância das coisas está na atitude que se tem perante elas.

2. Nuno Júdice (poeta e adido cultural)

Julgo que há uma necessidade de contacto com a palavra. Nós, enfim, através da televisão, dos discursos e da maneira como a palavra é usada normalmente, temos uma certa perda da qualidade da palavra, do português. A poesia é uma forma que nos permite recuperar a memória da língua que todos nós temos e que nos faz viver.

3. Maria Teresa Belo (viúva de Ruy Belo)

Acho que está tudo certo: o Ruy nunca quis vender nada e eu também nunca quis vender a poesia dele. A poesia tem um lugar e neste momento já se sabe qual é. Nunca nada deve ser imposto. Qualquer obra de arte tem de ser descoberta, ninguém deve impô-la. Ele tem leitores fiéis. Há muitos rapazes e muitas raparigas que conhecem a poesia do Ruy. Fala-se nele. Acontece nas escolas, já há professores que concebem unidades didácticas só dedicadas à poesia do Ruy. Ele sabia aquilo que escrevia e acreditava nos versos que escrevia. Mas ele nunca valorizou demasiado aquilo que fez, fazia-o porque lhe dava prazer, ele brincava com as palavras como seixos na boca. Ele acreditava que a palavra tinha muita força. E as palavras podem transformar a vida, podem transformar a sociedade. Era qualquer coisa que ele tinha muito grande dentro dele, que não podia ficar dentro dele. Daí que, embora isto seja, enfim, polémico, durante os anos em que ele pertenceu à Opus Dei, ele não escreveu, havia silêncios que se impunham (e quero dizê-lo assim) e a palavra esteve silenciada. Quando ele enfim se transformou no homem que foi (em muitos homens, porque o Ruy não era um homem apenas, era muitos e foi sobretudo um miúdo crescido sempre, aliás os olhos dele, os amigos ainda hoje o dizem, o Ruy com um sorriso desarmava toda a gente, havia qualquer coisa nele de muito puro), veio cá para fora, desatou a escrever e não parou mais.

4. Eduardo Prado Coelho (professor, ensaísta e crítico literário, falecido a 25 de Agosto de 2007)

Ruy Belo é um grande poeta da literatura portuguesa. É um grande poeta da minha geração, conheci-o na faculdade. Era uma figura que nos deixa a todos uma ligação muito forte. Sinto muito a poesia do Ruy Belo como uma poesia que me atravessa a mim e à minha geração por dentro com tudo o que ela tem de positivo e de negativo. O Ruy Belo disse algumas coisas essenciais para esta geração. E, como acontece com aqueles poetas que morrem cedo, isso dá-lhes uma marca de destino da qual nos sentimos cúmplices e que queremos prolongar. Queremos estar à altura do que se interrompeu na vida deles e no discurso deles. O Ruy Belo é um dos grandes poetas portugueses do século XX, como o Herberto Helder e o Gastão Cruz são. De certo modo, o Herberto levou até um limite e criou uma espécie de lenda em torno dele, até pela sua não presença nos meios de comunicação, nas entrevistas etc., isso ajuda, evidentemente, cria uma força, e a sua obra é de facto excepcional. Mas temos o Eugénio, temos a Sophia, temos o Carlos de Oliveira, temos o Ramos Rosa, temos o David Mourão-Ferreira, tantos…



5. Arnaldo Saraiva (professor, ensaísta e crítico literário)

A poesia do Ruy Belo é de uma qualidade excepcional. Tenho saudades dos tempos em que havia recitais de poemas, hoje há-os muito menos, saudade dos tempos em que o público afluía a sessões de leitura de poesia, às vezes pelos próprios poetas (que nem sempre dizem bem…). Eu acredito na força da comunicação da poesia, mesmo até da poesia que não é toda entendida. A poesia não tem de ser toda entendida para que tenha algum efeito sobre quem a ouve. Ligaram-me a Ruy Belo laços de profunda amizade: era meu compadre. Suponho ter sido a primeira pessoa a saudar publicamente a poesia do Ruy Belo, a qualidade, a profundidade, a comunicabilidade, da humanidade da poesia do Ruy.

***********

FALA O SENHOR DE S. JOÃO DA RIBEIRA

(Re) citando Ruy Belo com palavra(s) de homem

“Ao escrever, e independentemente do valor do que escrevo, tenho às vezes a vaga consciência de que contribuo, embora modestamente, para o aperfeiçoamento desta terra onde um dia nasci para nela morrer um dia para sempre. Dou palavras um pouco como as árvores dão frutos (…)”.

“Escrevo como vivo, como amo, destruindo-me. Suicido-me nas palavras. Violento-me. Altero uma ordem, uma harmonia, uma paz que, mais do que a paz invocada como instrumento de opressão, mais do que a paz dos cemitérios, é a paz (…)”.

“Numa sociedade onde quase todos, pertencentes a quase todos os sectores, procuram afinal instalar-se o mais cedo possível, permanecer fiéis à imagem que de si próprios criaram pessoalmente ou por interpostas pessoas, o poeta denuncia-se e denuncia, introduz a intranquilidade nas consciências, nas correntes literárias ou ideológicas, na ordem pública, nas organizações patrióticas ou nas patrióticas organizações.”

“No entanto, a minha suprema ambição (…) é a de um simples mineral, com a sua impassibilidade e a sua adesão à terra, a que acabarei por voltar não só por condição como por desejo profundamente, longamente sentido e só satisfeito no dia em que a minha voz passar a ser a voz da terra, mais importante, no fundo, do que todas as palavras que me houver sido dado proferir à sua superfície (…)”.

“(…) a poesia é, ao fim e ao cabo, uma aventura de linguagem, por muito que os significantes possam significar. A arte pode não ir muito longe, mas de qualquer maneira, sempre oferecerá maior resistência ao tempo do que as ideologias, expressas sem irmos mais longe no credo da Santa Madre Igreja ou no hino da General Motors.”

“(…) morte, deus, folhas, homem, árvore, estações, primavera, pássaros, mar (…)”.

“não costumo por norma dizer o que sinto
mas aproveitar o que sinto para dizer qualquer coisa”.

07/08/2008

Um Solecismo Solipsista



Fotografia: © Sandra Bernardo,
cemitério de Viseu, manhã de 2 de Agosto de 2008


Viseu, casa-de-pasto A Marisqueira, tarde de 5 de Agosto de 2008

Julgo que desde menino penso na morte.
Julgo, ainda, que é por causa de um solecismo solipsista, este aqui:
a morte acontece aos outros,
alguns dos outros somos nós
e um de nós
sou eu.

Não penso na morte como um homem pensa
na mulher que deseja.
Penso nela como numa mulher
que hei-de ter.

Tudo ma evoca:
a corredora beleza das mulheres dos outros;
certos olhares de certos homens,
onde fadiga e força moram
invencíveis ambas;
as bugigangas mágicas do pequeno comércio;
o sabão azul;
as crianças pomboando ao sol;
a água tomada de sombra;
o crepúsculo de um rio.

Todos funambulamos entre as duas pontas deste arame:
uma, a incerteza do nascimento;
outra, a certeza da morte.

A certeza da morte é a morte de toda a certeza:
daí tanto nascimento.

Isto para mim já nem é triste.
É apenas humano e constante: como
um nome de rua;
uma folha levada à água pelo vento;
os despojos do falecido morrendo eles também
de desuso;
uma fábrica encerrada para sempre acordando
de manhã para sempre;
um escrito ser um papel sem palavras
colado a uma vidraça.

Um dos paradoxos mais bonitos que conheço, é o
do fato e dos sapatos novos que os mortos
vestem e calçam.

Os muitos que já vi, vi-os a todos dotados
de roupa e calçado novos a estrear
na segunda e última nudez dos ex-vivos.

(Digo nudez,
não digo mudez:
eles falam.
E desde menino que os ouço dentro dela,
a mulher que vou ter.)

03/08/2008

Recados Perpétuos








Cemitério de Viseu, manhã de sábado, 2 de Agosto de 2008

02/08/2008

Uma Volt’ ainda pelo Acampamento, Sorrindo



Viseu, fim da manhã de 2 de Agosto de 2008



Com a minha senhora
fui esta manhã ao campo-santo da mesma cidade
onde compramos coisas e cujo ar respiramos.
Era num sábado chamado hoje e 2 e Agosto e 2008.




Humilde é a altivez dos nomes que dormem
por estes dias ao sol na terra ardida.
Aqui, Filipe, ainda belo, p’ra sempre jovem;
ali Antónia, a mesma morte em outra vida.

Canteiros correm o cru acampamento,
linhas de sombra fria são quási claras.
Já tudo é agora (a)o mesmo tempo:
Raúis, Inêses, Rodrigos, Claras.

O belo anjo alto ao fundo céu
esquece, em prol da terra que vigia.
Jamais daqui saiu quem cá entrou
dormindo já a morte que vivia.

Bela tristeza da triste beleza
que um nome a outro junta para ler.
Todas estas sombras, outrora, à mesa,
serviram pão e água de beber.

Hoje ao sol dormem. Amanhã,
a noite lhes será tão matutina
(olha, ali Afonso, além Cristina)
quão nocturna nos é esta manhã.

Altiva humildade nomeada
é do vivente campo a morte ardida.
Isto é uma passagem passajada
a pontos que costura a mesma vida.

À saída do campo, a cidade
em sono ambula vias assombrosas:
e a mentira da vida, na verdade,
não vale sequer o limpo par de rosas

de plástico deixado a Joaquina
dos Anjos Pereira Cunha e Perdigão,
santinha a quem a escarlatina
esvaziou olhar e coração.

(Já entramos no hiper a comprar frango,
poema quase feito, fotos tiradas.
Os grandes tudos são sempre um tango
e fandango são os pequenos nadas.

Digo à mulher: Antónia, que é preciso?
Diz ela qu’ é manteiga, pão e vinho.
Sou belo, é bela ela e eu, sozinho,
filipo para dentro o meu sorriso.)

01/08/2008

PARA UMA CINEMATOGRAFIA DO PEQUENO COMÉRCIO DE VISEU

PARA UMA CINEMATOGRAFIA DO PEQUENO COMÉRCIO DE VISEU
– mas sem borboletas
ou
MAIS VALE ISTO DO QUE ANDAR NA DROGA
ou
ANTES QUE TUDO ARDA – II



Texto: Viseu, tarde de 31 de Julho e fim da manhã de 1 de Agosto de 2008
Foto: Viseu, Rossio, noite de 31 de Julho de 2008



Ontem na noite preta vi um homem chorar água azul.
Ele tinha parado ante uma montra do pequeno comércio.
O vidro vertical não o reflectia.
Ele chorava azul cara a baixo: pensei que ele se tivesse perdido:
ou que amasse alguém: é
a mesma coisa.
Dava-se àquela hora uma ausência total de crianças e de animais.
Nem carros parados havia: a rua era exposta ao hidrogénio da solidão, os passos faziam-se vidro na pedra, o coração congregava os diferentes frios da
hora.

Não sei o que verei, se verei, amanhã.
Escrevo isto ontem.
De olhos fechados, sinto a rusga de cavalos que rasga
travessas e vielas:
sinto e conheço.

Tenho muita pena dos homens que amam
alguém, alguma coisa.

Músculos, dentes, tapetes, óculos, pés,
camisas, sacas, matrículas, marcos, selos,
números, pires, pedras, rapazes, cães:
tenho muita pena da civilização, muita
pena da beleza da boca que diz
cães, rapazes, pedras, pires, números,
selos, marcos, matrículas, sacas, camisas,
noites pretas dadas a águas azuis,
pés, óculos, tapetes, dentes, músculos,
cavalos na rusga rasgando.

Vi amanhã o formoso homem azul:
o meu pequeno comércio é isto: sempre
é melhor do que andar na droga.

A ausência das pessoas é uma tabuleta
cravada no deserto.

O deserto:
estas casas nunca foram habitadas.

É mentira que os mamilos sejam pousados
de borboletas. Tenho moedas, mas fecharam
as lojas: o vento fechou-as, os muitos
ventos que dissolvem os oceanos.

Um dia, os manequins hão-de sair às ruas,
hão-de conseguir abandonar as lojas, darão
passos de pedra nos vidros, virão para mim
vestidos de décadas, de genitálias cortadas
cerce, suas asas de periquito adejando
bandeirinhas de nações que não há, na noite
azul, nas águas negras. Parquímetros oxidados
de tanta espera marcarão o compasso, como
nos casinos desolados que a auto-estrada
exilou, algumas fotografias de grupo isso guardam.

Festivais de marisco em reclamos luminosos
rangem guinadas alegres, analectas escolares
loam elegias aos hipoandrismos da alma-
-mater.
Sobe o sável.

Noutro tempo terei sido o meu futuro
homem.
As boas-noites vos desejo, esta
manhã.

Uma sexta-feira clara como um caderno,
fui feliz na antemão das azinhagas
(e imperadores munidos de adagas
cravejavam esbirros os mais ternos,
era noutro mesmo inverno).

Ciganos pastam caracóis e ouriços a um canto.
Um canto é tudo quanto a voz pode.
Uma senhora muito doente gargalha perdidamente.
Fui a Coimbra ao funeral de um amigo, vim de lá com ele.

Tenho o mapa das estradas nas palmas das mãos:
deltas livres para quedas idem.
Tanta estrada e nenhum caminho.
Engenheiros com conhecimentos no município
engendram passeios pedonais
a tanto o quilómetro,
o abacaxi a tanto,
um filho a estudar em Aveiro sempre dá
despesa.

Em baixo, a casa do Hilário vê passar a malta
do smoke e do drink e de Abraveses
e de Repeses.

Na Aguieira, a pérola é azul entre verdes.
Os cavalos rusgam espumas, mães também.

A minha solução é aceitar que todos durmam,
antes que tudo arda,
II.

Canzoada Assaltante