24/09/2008

Isto não é L.

Policeman in a Dockland Alley, Bermondsey. © Bill Brandt, 1938





Viseu, tarde de 18 de Setembro de 2008

Também procuro Joanna Southcott, fora do tempo mas dentro da Panacea Society, e Jack London, quando ele andou por Whitechapel, em 1902, em demanda do povo do abismo. Isto de juntar Jack, Whitechapel e London na mesma frase, pode ser mau para a população de prostitutas. Desconheço se o sargento-detective Cribb ainda vive. Alan Dobie, julgo que sim, pelo menos desde 1932. Procuro. Vou tendo umas luzes na noite.

A noite é mais diária do que o dia. Passa-se dentro da cabeça. Uma árvore ao sol deita noite por todos os poros. Uma viela, ao contrário, pode ser iluminada pelo olhar de um gato – ou pela descoberta de uma faca ensanguentada. Estou aqui e procuro. Procuro dentro. Ao princípio da tarde, estive numa pastelaria perto dos Correios. Tomei uma ginger ale e esperei. Pensei numa história sobre um par de botas, cuja redacção iniciei.

Saí para a noite eram duas da tarde. As árvores do rossio municipal vergavam-se como anjos para os reformados nos bancos de ripas verdes. O mais era a língua portuguesa suspirada entre próteses octogedentárias. Por aqui, temos também capelas brancas, mas não são Whitechapel nem para lá caminham. São capelas portuguesas, luras pós-viriáticas, mas nem por isso viáticas, posto que não esmolam nem sacramentam. A unção é porém extrema.

Senti falta de casa. Cortei à direita, subi as pedras do Major, cujo fantasma onomástico me cumprimentou de dois dedos levados ao boné de oficial. À esquerda (ou a bombordo: eu navegava já pelo Tamisa improvável do Pavia), uma mulher vestida de negro (a noite têxtil destas mulheres na tarde) tropeçava no saquito de medicamentos. Um gato livre lavava a cara junto ao contentor do lixo. Um polícia completamente português coçava-se a nádega esquerda. Estas visões extenuam-me sempre de felicidade.

Joanna Southcott era para ter parido o Messias (ou Shiloh), pela segunda vez no caso do Messias, no Natal de 1814, mas a coisa não se deu. Ou não cedeu. Morreu um ou dois dias depois, a senhora. Dizem que deixou um bilhete de lotaria na arca das revelações. Pergunto-me se também na arca de Pessoa haveria cautela.

Não é seguro que Jack London tenha morrido de alcoolismo. O John Barleycorn pode ter resultado de um empirismo, mas as mitografias não são muito de fiar. Ainda não cheguei a casa. Compro dois lápis amarelos na loja das fotocópias. Há, em baixo, um bebedouro de água. Desço a cara e recebo esse cristal frio. Já pulsa a cruz verde de uma farmácia. O crepúsculo já borda a quarta dimensão dos telhados. Olho para longe, entre dois prédios a mancha verde da serra dói-me o mar que não há. Penso noutra coisa, mas o mar lateja dentro da fuga.

O Ripper é contemporâneo do Cribb: qual dos dois ficção, não sei. Uma criança vestida como um adulto miniatural: vejo-a lambuzar-se de gelado de chocolate, sentada muito direita no banco de jardim. A mãe gritinha interjeições ao telemóvel. Um cão muito branco boceja cor-de-rosa e negro numa espectacular amplitude de mandíbulas. Involuntário melhor amigo do homem.

Não por acaso, hoje era um bom dia para chuva. Gosto de, em plena tarde, reunir os sentidos para recepção da chuva nocturna. Havendo umas moedas, podes contemplar a massa de cor dos reclamos luminosos numa montra de pastelaria, o escarlate e o verde e o amarelo estilhaçados de água, o vapor das respirações vulcanizando as palavras que as pessoas deixam cair quando entram a fechar os guarda-chuvas. Mas faz um sol lunar, uma moeda termonuclear que reverbera de níquel e mercúrio nas cabeças, também já tão pouca gente usa chapéu, os tempos mudaram muito e isto não é Londres.

3 comentários:

Daniel Abrunheiro disse...

A linha "Saí para a noite eram duas da tarde." foi escrita com a devida vénia ao poeta Nuno Moura, autor deste verso: "Tu começaste a ir de noite para os teus dias", linha que nunca mais me saiu da cabeça, de tão boa. Vai daí, plagiei-a escarrapachadamente. Obrigado, Nuno.

Anónimo disse...

Estava ver que não aparecias. Eu preciso da minha dose diária, caramba. Fui logo ver de outros dealers.

Manuel da Mata disse...

É grave roubar versos, senhor Daniel Abrunheiro! Pode-se roubar o país inteiro; porém, roubar um poeta
é coisa muito grave.

Tenha um bom dia, meu amigo!

Canzoada Assaltante