16/08/2008

Alguma Sombra para Alguma Luz – conclusão (II a V)



Viseu, tarde de 13 de Agosto de 2008

II

A poesia é um artefacto que me interessa dada a lentidão
com que me oferece a equivalência do mercedes ao tubarão,
a mim que não fui nunca senão pela mão da mãe do mar.

Isto é particularmente interessante nos tempos que correm
e, ademais, nos tempos que morrem.

Eu sei falar de sombras como um perito preto.
Tive um amigo de bom coração que vivia de pastelaria congelada,
isso já me aconteceu e eu não vou tirar desforço.

Eu agora sei falar e nada tenho de particular
a dizer, excepto versos.
(A sombra é azul nos urinóis de mármore,
mas, também, por outro lado.)

Uma avenida por estes lados corre a mesma
irrepetível manhã
na noite de putas,
isto do colonialismo brasileiro tem
que se lhe diga.
Uma senhora tem uma amiga,

com que chaleira conversas de gatos e naperons
que tossem virgens-de-fátima e padres-cruzes
(canhoto),
fecha-se a água e desligam-se as luzes.

A poesia é uma arte que me interessa de facto.



III

Todos nós temos alguma responsabilidade
na memória de ouro dos laranjais, algures antes

na vida. Eu tenho as minhas ínsuas tangerineiras,
corria para morrer perto um rio, além-verde

nos anos que me responsabilizam
antes vós, por voz.

Nunca fui muito de mais não ser do que isto.
Havia as vizinhas, o cheiro a comida das casas,

as nespereiras enferrujando pepitas ácidas,
os cães aguentando a eternidade devagar.

Leite e carnificina eram produtos de pai & mãe,
onde o entardecer tornava fulvos os prédios pobres.

Grécias e mármores juntavam-se fundições
celeradas no primeiro alvor de papel: "– Não leias! –"

nunca me disseram: e eu sou triste
porque dou ’inda esses poemas lentos,

eu que nunca tive um mercedes,
eu que ’inda tenho mãe mas mar não,

senão certas vezes ao entardenoitecer,
quando, sombrio, me lembro de tanta luz.



IV

A beleza das mulheres é ainda algo
que me causa repetição:

tem o seu quê de cabra, seu quê de mãe,
seu algo de chefe de repartição.

À luz da tarde, luz sua ínclita luz
a brutalidade carnal das mulheres de Portugal,

mas também seu chinelante noivado perpétuo
(essa branca viuvez) a mulher de Gervásio, a de Adérito.

Luz e sombra concorrem vida e esse outro nome
dela, isso a que um eu chama tu.



V

Mas mais que tu a vida extensa é a dor
a outros deixada em legado por tua não vida.


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Canzoada Assaltante