03/06/2008

Exercício I

Gravura Sonora a Lápis Amarelo de Homem
– um exercício porassindizer literário –

Viseu, Cafés Paris e Avenida, tarde de 2 de Junho de 2008



Cara de homem munida de olhos que não olham: bolsas de água roxa escoltam as pupilas muito baças. Colarinho verd’escuro amolecendo ao pescoço rubro de muitos vinhos-do-lavrador-petiscos-caseiros. Argêntea auréola de santo pobre arcoìrisa-lhe a cabeça quase caucasiana de Homem-de-Tollund. Descendo um pouco, mãos vermelhas: rugosas, inexplicáveis como todas. Um colhedor de lírios não botânicos. Sobre a boca, a hemomancha de palavras pisadas, anteriores de mais para que recordadas. Na estatuária móvel do gesto, o porte ainda do furriel-miliciano, colonial tomador de cervejas geladas ao vento abrasador da assassina mocidade patriótica. Ao canto da boca (que não canta), uma verruga em silhueta de meia andorinha com asa de pêlo inteiro. Nas costas das mãos, as sardas irrevogáveis do envelhecimento. Na barriga dos pulsos, a harpa de cobalto das veias a cortar com também irrevogável gilete. A brisa no cabelo fixada pelas lacas do Tempo e do gravador. Lateja-lhe ainda nas têmporas o falhanço no curso de medicina, nilo que às margens da vida lhe abandona o aluvião pútrido da fertilidade da incerteza – isso e o hábito do bagaço matinal. Uma certa tristeza em tudo isto, mas adoçada pelo ócio dos que vêem chover: não olhar não é não ver. A gravura tem predelas, naturalmente: tatuagem flanqueando o alto branco (branco de galinha cozinha) do braço esquerdo, o do lado do coração: Amor-de-Mãe-Angola-1967; a morrinha perpétua de recordações que nem são dele; os pés nus de tantas-mulheres-uma-só-nenhuma; um clarão de gerânios num sonho ou numa cidade desconhecidos; um cheiro a óleo de fígado de bacalhau numa sala de escola primária toda feita de madeira como uma floresta ou um barco; uma ânsia toda marinha pelo mar; a súbita calma perante a evidência dos animais; a lucidez subterrânea dos animais empurrando os cotovelos da pessoa para gestos manuais; a fundura dos sabores da infância na boca envelhecida; e uma estatueta flúor-coruscante da senhora-de-fátima entalada no soalho para equilibrar um psyché coxo. Derredor da cara do homem, o ar riscado de andorinhas como uma cal de respiratória empena. Assomando sobr’ombros, depenados ângulos de asas de ângelos. Este retrato de este homem gravei e digo hoje, fora de toda a bela-arte, em a cidade de Viseu, vinte minutos faltando para as sete da tarde, que é como quem diz noite.

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Canzoada Assaltante