06/02/2008

Versos de Grande Utilidade para os Pobres (com recurso ao Borda d’Água para 2008)


Versos de Grande Utilidade para os Pobres
(com recurso ao Borda d’Água para 2008)

I

Uma só fotografia possuo do Anjo
do Relógio da Catedral de Chartres:
nada tenho, tirando
todo o tempo do perfil de pedra do Anjo.

Devolvemos à pedra o que nos esculpe
ela, não nos devolve ela o tempo
que consumimos para nos consumar.

II

A minha pobreza é tão quão a tua
de extrema dignidade. Virá a noite.
Mais somos tidos do que temos: é a verdade.
Têm-nos as folhas que o vento dança.
Têm-nos as árvores que folhas têm ao vento.
Têm-nos as linhagens: homens e mulheres
de que perdemos os nomes, que não o sangue.

Sou muito feliz na pobreza extrema
e extremamente digna.
Aluem-se-me os dentes, esfarrapa-se-me a língua:
não o idioma nem o sabor.

Espero-te enquanto espero
que te seja, felizes, feliz
a pobreza extrema.

III

Hei-de ir um dia a tua casa
tocar os teus objectos
e a tua vida simples.

Régio é todo o real,
pobre embora.

IV

Vê lá tu
quão pobremente amamos.
Amamos dos outros
nos outros
o que eles não são
o que eles não podiam
nem puderam
ser.

É tão feliz a nossa pobreza.
É tão pobre o nosso amor.

Vê lá tu
quão nos é vital
o amor
com que nos amam
ainda
os nossos mortos.

Eles amam-nos
deitados
como amantes.

Quando vou a tua casa
sou um de nós
que nos amamos
e somos pobres.

Uma só fotografia
tenho tua.
Não tenho dinheiro
para ir a Chartres
ver-te
mas
amamo-nos
vê lá tu.

V

O sistema nacional de saúde do meu país
só é capaz de organizar eternidades
como a do amor pelos mortos.
Eles vingam-se amando-nos.
Somos pobres pelas ruas
mas somos muito amados
patrioticamente
nacionalmente
sistematicamente.

VI

Dizemos tantas vezes

É a nossa vida.

Nunca dizemos

A vida é nossa.

VII

Se queres, reza comigo por
O Verdadeiro Almanaque
Borda d’Água
e contigo comigo seremos
devidamente bissextos:

um dia mais.

VIII
(palavras itálicas todas do Borda d’Água)

De natureza metódica
transplantar para viveiro
em local definitivo.
Lavoura de nascidas em Janeiro.
Propriedade de Santa Ângela de Folinho.
O ano bissexto é justificado
porque a Terra demora.
Porque a Terra demora,
foram cercados de mitos
domingo
S. Hilário
e
o amor como o primeiro
(ocaso às 17h 25m).
Gostam da tradição
acima de tudo
S. Gonçalo de Amarante
Shakespeare
alface romana
e sabóia.
Contribuinte nº 500090564:
se o escolhido não estivesse de acordo com o casamento,
era obrigado a pagar uma multa de respeito.
Epifania.
Semear.
Vacinar.
O sol nasce: o primeiro dia:
dia internacional.
Manuel, iniciando-se,
onde for possível.
Será algo melancólico,
cavalar.
Contra as doenças rubras,
S. Ildefonso.
Em 1582, o Papa Gregório XIII decidiu.
Morreu por
uma multa de respeito.
Os seus amigos com cautela: Preta,
Chumbo, Ónix, Lótus, Jasmim: em relação
a quanto tempo faltava,
Todos os Santos.
Não há luar.
Planeiam as suas vidas ao
transplantar para viveiro ou
em alfobres bem abrigados.
E não como de costume,
na Escócia.
Mozart,
sê verdadeiro contigo próprio.
Tempo húmido,
agindo sempre moral e legalmente,
tão certo como após o dia
vir a noite.

Nótula:
o poema I é da noite de 30 de Janeiro de 2008;
os restantes são da manhã de 6 de Fevereiro de 2008.

1 comentário:

Mª Jose M. disse...

Daniel,

«tão certo como após o dia
vir a noite.»

(Sem saber se estava escrito no Borda d'Água)
Fui lendo por aqui, noutras noites, em silêncio
Enquanto a insónia teimava em, importante e vaidosa, roubar horas de sono.

Hoje, consultei o Borda d'água...
Vi que era o tempo certo de dizer num jeito simples - gosto do que leio por aqui.

Um Abraço

Canzoada Assaltante