30/01/2008

A Noite em Breve – capítulo 17

Casa de Manuel Fardinha e de Augusta Rendilheira sem Manuel e sem Augusta ,
Pedrulha do Campo, Coimbra, tarde de 25 de Dezembro de 2007.
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A NOITE EM BREVE – capítulo 17
ou
Coruscações no Imo de Sombras
(uma portugalidade delével)


17
Caramulo, entardenoitecer de 31 de Agosto de 2007

Tivemos em casa o Adelino, a Adelaide e o João Correia: uma tarde feliz.
Na pastelaria, pelo entardenoitecer do último dia do último Agosto deste ano, assisto a uma cena formosa. Éramos só dois clientes, cada um em sua mesa. Aos vinte para as oito, começou a final da Supertaça Europeia: Sevilha vs. Milan, um encontro marcado pela homenagem ao recente falecimento de um jogador da equipa andaluza, Puerta. Já era formoso e comovente os jogadores de ambas as equipas usarem no braço um fumo negro e, nas costas, abaixo dos nomes individuais e dos números, o nome do malogrado rapaz. Comentei isso com a patroa da pastelaria, Mónica. Voltei à minha mesa e sentei-me para dividir a atenção entre o que vos escrevo e o jogo. Foi então que entrou no estabelecimento o irmão do outro cliente. São meus vizinhos, moram no rés-do-chão. Cumprimentaram-se beijando-se as faces: que bonito!
Lembro-me de ter, outrora, escrito:

A minha vida é menor do que o mar.

Confirmo isso todos os dias enxutos. Também é menor do que a montanha – e do que a rosa: viver. Uma braçada de azevinho colada ao peito, o perfume das leituras, a mulher nua em palco, os acidentais amores de banco traseiro de automóvel – tudo, apesar de tudo, menor do que a rosa, a montanha e o mar.
Recordo a tarde em que o meu irmão Jorge me franqueou os bastidores do, antigamente, Teatro do Príncipe Real, depois Avenida e agora nada, em Coimbra. Ele desenhava e pintava, por pouco dinheiro, alguns reclamos publicitários que a gerência contratava e mandava agravar ao pano de palco. Nos bastidores, em salas esquecidas por tudo e todos menos por ele e pelo pó, demoravam os restos mortais de uma escola conimbricense. Havia arquivos entre os despojos: relatórios, onomásticas então (quando?) jovens e agora (quando?) extintas; havia répteis sorrindo em éter os sorrisos dos homens enfrascados como aquele em me tornei, lagartos nadadores do hialúrgico oceano dos frascos de ciências naturais; carimbos; lápis (que recolhi); e pó. Também o meu irmão Jorge está hoje no éter – mas não nos bastidores, que eu não deixo: o Príncipe Real verdadeiro é ele, carago.
O Tempo. Seu consumo de ar-árvores. Seu consumo de teatros, príncipes, cidades, dias. Noites. Seu consumo. Sua consumpção. Sua mortal beleza mortífera e rediviva. Chamar eu a um dos muitos seres – e entre eles, enquanto.
Lembro-me de ver chover num lago: água aceitando água. O berlinde azul, aveludado pelos grandes frios fixadores de constelações, aceita miúdos como nós, para serviço de formiganço e perplexidade. Formiguei – e formigo – como toda a gente: vendo água chover água. Havia mesas fixas em torno do lago. Bancos fixos, também, à terra. Vazias, vazios: as mesas, as casas. Recordo a eternidade efémera da minha visão. Recordo a eternidade não efémera das águas. A gente pode destruí-las quimicamente, que elas retornarão a água sem nós. Em éter se refarão as águas que estragámos – digo eu, que nada sei.

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Canzoada Assaltante