30/06/2007

Baile no Parque



Por esta não estava este most sincerely yours à espera. Quero dizer, escrever e publicar, hoje, o mais quer-que-fosse. Levantei-me antes das sete da manhã, trabalhei alguma coisa, passei e bloguei os textos anteriores – tinha o dia, se não ganho, pelo menos não perdido de todo. Coisa das dez, dez e tal da manhã, eu e a minha veciclete fomos tomar café à pastelaria e, depois, ao minimercado, onde, não sem certa glória, adquirimos verduras, uma gasosa de dois litros e onde, ainda e também, encomendámos um frango assado para o almoço. Frangámos num parque mínimo e alternativo deste Caramulo formosíssimo onde depositámos, há um ano e sete dias, as almas e os esqueletos. Tudo fino, portanto. À tarde, sofámos com distinção perante um televisor povoado das americanices beócias do costume.
Por alvores da tardinha, porém, deu-me para sair, no intuito desportivo de assimilar umas dinamarquesas no centro da vila. Assim fiz. Fui, cheguei, assimilei – e deu-me para isto: havendo, a pretexto de S. Pedro, baile marcado para o parque em frente de minha casa, calhou-me a Musa escrever uma coisita qualquer assim a modos que de raspão à coisa. Escrevi. Era um poema, olha a novidade. Mas depois veio-me a ideia de chamar-lhe Cartaz. Foi uma porra. Desatei a escrever canções para um imaginário baile clonado do real. O conjunto chama-se Baile no Parque. Por esta não estava eu, o mais sinceramente Vosso, à espera. Mas pronto. Está feito. Siga o baile.

Baile no Parque
– canções para a festa

Cartaz

Há baile no parque.
É a última noite de Junho.
Vinho e sardinhas chamam os poucos vivos.
A música é uma atracção irresistível para
as décadas de mortos da Tuberculose.
Não irei ao baile.
Ouvirei o baile.
Não por receio dos fantasmas: vivo deles, afinal.
Não vou por melancolia.

O sol do dia resiste como pode ao
vento que empurra o céu pelas costas.
O nevoeiro cai de peito na vila.
Testes de som tossem electricidade
além do arvoredo.

Uma questão de vila e de morte.

As horas agrutam de música o coração.



Canção nº 1
(cantor mais saxofone-tenor, acordeão de botões, bombo, tarola & pratos)

Lembra-te, Aninhas, do mal o bem
que vivíamos, apesar e porém,
do muito que tossíamos,
lembra-te, Aninhas.

Dedo a dedo as mãozinhas,
passo a passo as perninhas.

Dois dias nos separaram,
fulgor breve da hemorrosa,
adormecendo consagraram
eternidade maravilhosa,
ai Aninhas, maravilhosa.

Dedo a dedo as mãozinhas,
passo a passo as perninhas.



Canção nº 2
(cantora mais guitarra, contrabaixo e reco-reco)

A sardinha é tão bonita
seu dorso é tão azul
seu perfume nos incita
a ser povo norte a sul.

Nosso vinho com franqueza
alegria é sem rolha
luz e cor da nossa mesa
santa parra santa folha.

Nosso pão o mais honesto
que um dia alguém serviu
quem não goste seja lesto
vá na puta que o pariu.
(Atenção: no caso de o público instante inchar de severa percentagem geriátrico-católica, o último verso deverá ser: "volte à mãe de que saiu".)



Canção nº 3
(cantora e cantor mais trompete, órgão e tarola de gaiteiro)

Ai há quanto tempo a alegria
de nossas faces descorava
quem na chamasse de dia
’inda ela à noite tardava.

Ai quantos anos meus amigos
faltam ’inda a passar
vida é casa sem postigo
só se a morte a iluminar.

Ai eu quantas tantas horas
por ti tristeza esperei
que viesses a desoras
não vieste bem no sei.



Canção nº 4
(cantor mais clarinete, bombardino e tuba)

Dá-lhe a chupeta
se não põe-se ela a mamar
papas da tua cabeça
até ela se fartar.

Dá-lhe a maminha
se não põe-se ela a chupar
a cantar-te a rã-caninha
só p’ra bem te enganar.



Canção nº 5
(cantor mais pífaro, ferrinhos, cântaro & abano)

Diz lá tu ó Madalena
se co’ Manel vais casar
não casas não tenhas pena
tens bem mais p’ra enganar.

Ó riqueza destas eiras
viras ó moço a cabeça
casa com quem te apeteça
ó princesa das solteiras.

Rapariga moça
de vento na saia
nunca te descaia
vintém nem tostão
Moça rapariga
juízo é preciso
que a falta de siso
’inda te castiga.

Diz lá tu Maria Rita
s’ isso com o Zé é sério
dos olhos com qu’ ele te fita
ou igreja ou cemitério.

Não lhe ponhas tu na testa
duplo par brancos chavelhos
só por ti ele vem à festa
nem que fosse de joelhos.

Rapariga moça
de vento na saia
nunca te descaia
vintém nem tostão
Moça rapariga
juízo é preciso
que a falta de siso
’inda te castiga.



(Intervalo para os músicos irem ao bufete;
oportunidade para versos sérios como os do cartaz:)

Versos Sérios como os do Cartaz

Não bailam os mortos senão em
lembranças.
Algumas crianças:
para elas, não
houve clero ou pneumologista
os suficientes.
Vivas ideias, mortas gentes.

No baile do parque, rondam de novo
os antigos chapéus-sombrinhas, as
celibatárias gravatas de militares
demasiado novos para morrer sem
ser na guerra.

Carros negros, pesados do dinheiro
das famílias ricas, doutores e futricas,
ânsias e saudades as mais
premonitórias: donas Jacintas,
Gencianas e Gregórias,
senhores Alvarez, Durães ou só
Santos.

Só aos desatentos são estas ruas
vazias,
este parque fundado num
húmus chamado memória.

Os livrinhos de Mercedes Blasco,
escritos em pleno desemprego da actriz e
depois da morte do filhinho na Bélgica,
onde ela se vira sitiada pela
I Guerra Mundial,
tiveram por aqui muito sucesso,
sobretudo nas mãos transparentes
das tubersenhoras e dos
hemocavalheiros celibatários
que recitavam sonetos
a si mesmos,
no parque.

Por isso não bailam.
Dizem sonetos como se ouvissem música.



Canção nº 6
(cantora mais violino, violoncelo e fagote; atenção: canção-lembrançomenagem dos tuberculosos que foram a saúde financeira da vila sanatorial; a cantora canta como se fora um deles)

Borboleta dias voa
três ou quatro nenhum mais
traz-me o amor de Lisboa
mais linda das capitais.

Pardalito lusitano
vem trazer-me à cabeceira
semente do novo ano
para a minha vida inteira.

Voadores filhos de Deus
aos céus vós anunciais
vida e morte adeus, adeus
adeus até nunca mais.

Oh mariposa nocturna
não te queimes nessa vela
queimas-te se fores diurna
só de noite tu és bela.

Gaivota desencontrada
minha saudade do mar
praia mais petrificada
na montanha vens achar.

Voadores filhos de Deus
aos céus vós anunciais
vida e morte adeus, adeus
adeus até nunca mais.



Canção nº 7
(cantor e cantora em marchinha para piano solo)

Que entrem todos / nesta marcha de encantar
passo firme é a vida / que morrer é tropeçar.

Bem-vindas todas / solteirinhas e casadas
todas as horas são bodas / alegres e festejadas.

Mesmo que o Junho acabe / vai ser nossa salvação
Julho seu filho é que sabe / todo cabe no Verão.

Esta noite não tem fim / fim tem quem não começou
vou por ti vem tu por mim / pois só por ti é que eu vou.

Marchem também os defuntos / que daqui nunca saíram
todos juntos somos muitos / que os cegos nunca viram.

(Voz extra: “ e que os surdos nunca ouviram!”;
gargalhadas mistas de vivos e mortos.)

Nossa terra linda serra / serra mais linda não há
já fomos a muita terra / guerra a quem ach’ esta má.

Mesmo que o Junho acabe / vai ser nossa salvação
Julho seu filho é que sabe / todo cabe no Verão.

(Repete e acaba; primeiros sinais de bebedeiras e bulhas; mulheres e mortos desandam embora; eu também, que nem lá estive: não há mais versos para ninguém; a partir de agora, e até de manhã, só cassetes.)


Caramulo, tarde, arrefecendo, de 30 de Junho de 2007

Duas Tardes ao Touro de Ouro


O Pessegueiro.
Pátio da Mãe,
Pedrulha, tarde de 23 de Junho de 2007

Foram-me boas, as tardes de 28 e 29 do Junho que hoje acaba. Muitas palavras (porventura demasiadas) acorreram-me querendo, elas, viver em verso(s). Deixei que sim.
Na tarde 28, organizou-se, praticamente sem minha ajuda, a I de duas sequências de 33 quintilhas. Na tarde 29, veio a II. Era
O Sul da Chuva
: uma coisa bífida de 330 versos (mais um, o entreparentético final). Mas não só.
Concluída a dupla sequência, entrelaçaram-se mais quatro poemas breves:
Sonetesmo, Santo António não Percebe nada de Sardinhas, Fala o Gajo de 4Quatro4 Anos e Rosama-me a Cores
. Começo por vos dar estes. Depois vem a tal enormidade de 330 versos + 1.
A tudo isto, a memória fará o favor de esquecer. Mas anoto que, às 6h58m da manhã de hoje (sábado, 30), não chovia como previsto. O sol é um touro de ouro.




Sonetesmo

Mais lindo verso sucede a esmo
na mente do fraco desgraçado
que descurando som a si mesmo
se vê em verso sonorizado.

Porra pa’ isto. Já é secura.
Andar um homem, dia por dia,
lunando o sol de cada dia,
adiand’ ele quanto procura.

Não é por mal. Mais bens terá
o que cruzinhas risca, pisca – achará.
P’ra concluir louco soneto
(que todo o dia nisto mesmo a esmo me meto)
vou cerrar agora, disto, isto mesmo:
Mais lindo verso sucede a esmo.



Santo António não Percebe nada de Sardinhas

Falando de sardinhas, estabelece-se o Verão.
Os pobres acorrem dos lados frios.
Eles ouviram-nos falar do Verão com sardinhas.
Eles foram meninos – e não no sabem já.

Ai a morte. Ai as azeitonas.
Pode alguém descurar o valor
de uma garrafa de azeite em casa
de pessoas que se amam por remédio?

Alho de verde vertical coração.
Frigogestos acorrendo caloríferos.
Por vezes, usamos termos tão mortíferos
que podem, até, ser expiação.

Não. Faz-me mais quadras. Usa
Da língua a recorrência.
Fala da tua mãe viva como se não
tivesse morrido a minha, paciência.

Santantónio, Santantónio,
tu não viveste a ditadura.
Olha-me tu soneto atrás:
Porra pa’ isto. Já é secura.



Fala o Gajo de 4Quatro4 Anos

Aos quatro anos de idade, comecei a organizar
os meus futuros mortos muito bem organizadinhos.
Era o futuro – e eu sabia. Era o futuro – porque
o amor ama sempre no futuro,
sempre – sobretudo mortos.

Depois, aquilo passou e eu entretive-me
coleccionando cacos de louça (e que aqui
ninguém nos ouça) que nenhuma
expolisboa me compraria. Olha, Manuel,
escuta, Maria: cacos – ou dão
clube atlético de campo de ourique
no plural – ou
cacos no plural sem
campo de ourique singular
de vidas partidas como
a minha. E a tua – que me lês ou
ouves.

Bem.

No dia 7 de Maio de 1977, eu estava
sentado – muito bem sentadinho – no
pátio da casa de meus pais.
O sol dava de borla como um
filme repetido. Eu disse assim
ao Pessegueiro: “Pá, isto está tudo a
passar.”
E estava, de facto. Estava a passar.
Fiz treze anos amanhã.
Tinha mais nove,
assim de repente
e em verso.



Rosama-me a Cores
(soneto sem os tercetos)

Ama qualquer coisa que te não diga.
Podem sombras surgir luminosas?
Podem. Basta tal que mão amiga,
(as)sim, de repente, repita rosas.

Carnudas rosas, visuais.
Rosas tão rosas, que, de tão belas,
formosas sejam a extremos tais,
que rubras luzam, mesmo amarelas.



O Sul da Chuva

Como disse a Celeste no liceu,
“tudo se relaciona com tudo”.


I

1
A terra desce – e é mar quando chega.
No fogão, vivificando o café, a rosa do gás.
No céu da noite, o gás dos sistemas.
Lotaritária, a vida é menos
aleatória do que semelha.

2
O tempo traz ingleses, leva familiares.
As árvores deitam-se quando chove,
pois que são cães da água.
Há uma violência natatória nos sonhos.
Há passarinhos fritos nas tabernas.

3
Gasolina ferve nos copos da cerveja,
raparigas fisicamente amadas bocejam nuas.
Flores secas colam-se de costas à Lua.
O Egipto sempre desenhou a morte – e
a morte sempre desenhou o passado a vir.

4
Pintores em andaimes tornam branca uma casa,
parecem escuros insectos crucificados no branco.
Água faz cantar de fresco uma fonte fria,
crianças amorangam o coração quieto
de quem as vê passar na rua.

5
Morremos por oito horas nos braços
uma do outro, renascemos separados pela tal
natatória violência.
Um homem só dinamarquiza a rua
já sem crianças. Eu apareço com febre

6
ao sol de quinta-feira. Um rosto, sob
cabelo amarelo, come uvas: é o Verão.
Não nos foi mais duro o Inverno do que
a vida. Estiolamos até a sul da neve.
E há muito que somos o sul da chuva.

7
Cheiros chegam de jardins e de cozinhas.
Aves fundem o viver com o morrer.
Ser já não é o trabalho das alminhas
tão purgatórias que sentem por baixo arder.
Chamas chegam de jardins e de cozinhas.

8
Outonal é a absolvição de tanto desamor.
A vida amou-te, mas não te lambeu,
pelo que te queixas da inglória ramerrónica:
teu nenhum talento, tua tola fingida loucura.
Só nos sonhos, outonal, te não mentiste.

9
Sim, a terra desce – e o mar sobe para
trocar peixes por estrelas, gás por gás.
Há anos de mais, quando eu era menino,
a febre era esperar a vinda avassaladora
dos versos. Eles vieram, o menino foi-se.

10
No dia em que se tornam sul da chuva,
os meninos hominizam-se como macacos tristes.
Engaiola-se-lhes o coração em bazares
eróticos de menos para tão estéril afluxo
de sangue a tecidos erécteis: não amam.

11
Tornam-se as raparigas vorazes,
quase indiferentes, receptadores de
íntimos humores – e maus. Depois,
outonam como relapsas contribuintes,
como se tudo fosse não como mas para elas.

12
Tenho súbitos estios. Esta tarde ainda,
quinta-feira, na rua já para tomar café,
vi a terra descendo – e então foi
que, ao sol da quinta-feira, só pude:
A terra desce – e é mar quando chega.

13
Mui formosa é a pensativa tristeza de certas palavras.
Pode ser que um dia me toque.
Fernando Pessoa, por exemplo, olhava
– como os fatos escuros nos olham.
E ele era a palavra pensatriste e formosa.

14
A minha mulher e eu vamos para a cama e
já não fazemos tanto aquilo. O mais é
conversarmos sobre o comércio, o Alaska,
o Algarve, os dois filhos muito doentes
dos japoneses que apareceram na televisão.

15
Ao sol da quinta-feira, ao sul da chuva.
Desconstruíram a cabana do monte,
recompuseram em jangada os troncos.
Assim, foram acertados e dignos,
devolvendo à passagem o que passou.

16
Camionetas vermelhas descem a rua,
loucas e diligentes como formigas depressivas.
Levam ovos, azeite, carvão, sabão, cassetes.
Voltam pela noite como vacas encarnadas.
Homens pequenos saltam de dentro delas:

17
como se delas nascessem. Não posso
impedir-me de observar estas coisas
deste mundo final. Angario tais
minúsculas e crepúsculas coisas.
Opúsculo, crestomatio-me e arcaízo.

18
Ou não. Por vezes, uma alegria desobsoleta-me.
Sinto as aranhas ácidas patinhando-me o coração.
Levito, até, um pouco. As circunstâncias
apontam todas para um congresso de
azulejos, um jubileu de cristais, uma alegria.

19
Então, se a mulher não foge, fazemos aquilo.
A realidade espera um pouco, a realidade
guarda por meia hora seus fatos escuros,
seu olhar-nos do alto de sua tremenda
banalidade. Fernando deserta a rua como crianças.

20
Vou descendo a terra para marear-me. Faço pouco
barulho nos cafés, deixo correr o pus,
ele lá sabe aonde vai. Em casa, no
sossego das cortinas, as moscas zingam
suas calígrafas bebedeiras voadoras.

21
Em lojas sombrias como árabes, gastei outrora
o tempo em a circumnavegação da melancolia.
Um touro de ouro porcelanava o alto,
de uma campina de castanho, uma cómoda
coxa que fechava roupas tão interiores como segredos.

22
Ou não. Por vezes, uma alegria musica-me.
Florilégios incas valsam strausses de Ano Novo,
a serpente emplumada faz da minha
ambulatória Viena um livro de colorir
com sons os mais humanos, pois de ninguém.

23
Eu já tomei ampolas camionistas em bares de cianeto.
Raposa do meu deserto, rommelizei
montgomerysmos e seis de junhos só
com mortos. Eram todos meus, os mortos, e
nunca precisaram de ser muitos para serem todos.

24
Nada disto é grave porque viver não é grave.
Só nascer é grave, aquele berro vermelho
ungido de placenta e requeijão. Não,
nada disto é grave. Está aí o sol,
capitão do gás que a chuva ferve.

25
Que pousem, então, os músicos-andorinhos.
Um deles há-de ser a que se chama
Mariana, a cantora ferida pela graça de Deus
ferido, ferido porque não acredita
nas cantoras, nem na música, nem nEle mesmo.

26
O representante de fazendas é que pousa.
Vem cansado, pede uma limonada. Hoje
vem de azul – como ontem e amanhã.
Tem uma malinha com produtinhos e palavrinhas.
E tem um filho doente que não virá na televisão.

27
Um poema? Oh… vulgar urgência narrativa
que não chega a ser prosa. Nem rosa.
Falação de fedúncia, quando muito.
A menos que provenha do intramarino
fato escuro que olhava dos olhos de Fernando.

28
Follow me – canta o Afogador de Ratos.
Aprés toi, pas d’aprés – diz o Francês.
Pedacinhos de couro, um bistrot de porta-moedas.
Cheira a ratinhos árabes no escuro.
Muito sofreram os Portugueses para embolsar sem bolçar.

29
Interrompem-me a urgência narrativa
para me lamentar a chuva prevista para
sábado. Digo que sim – e lamento em
coro.
Pedacinhos de coro, um bistrot, só Portugueses.

30
De repente, 1983 fecha como um mau negócio.
Corações e ossos. Violangores e cellochuvadas.
Coimbra escurece de papelões plúmbeos.
Vejo do alto da escada subindo um menino.
Parece um lírio ensalivador de pastilhas elásticas.

31
Bossas lácteas assomam das sutiânicas cintas,
a cabeleireira veio tomar chá-pastel.
As ancas driblam em gestos e fintas,
ela só costuma vir aqui às quintas,
umas vezes ruiva, outras ouropel.

32
Na pastelaria, aranham os nervos.
Zuca mansidão asila os servos
de suas mesmas memórias infrutificáveis.
Não vão (nunca foram) os tempos amáveis.
Cheiros chamam jardins enerváveis.

33
Fora do corpo moram os outros todos.
Dentro do corpo moram todos os nadas.
A vulgarização de certa literatura francesa
encontrou em Portugal certa esquerda
pronta a esquecê-la logo que houvesse dinheiro.



II

1
Amanhã é sábado, prevê-se que chova.
Há-de a montanha cerrar seus negros punhos à água.
Já passou o azul representante de fazendas.
Lá em baixo, o parque tem a tenda toda ao sol.
Os loucos mansos dormem no Lar suas psicossestas.

2
Como se houvera engolido um barco na vertical:
o mar põe-se-me triste na porra da distância.
Não tanto me sucede já a comoção que antes
a visão me dava de um cu bem feito.
Não – é mais, o mar, como um barco engolir.

3
Estes dias sem ele. Em troca dele, o encapelado
petrificado mar quieto da fixa montanha
ameaçando devorar o vale indiferente
das pessoas felizes e amnésicas,
felizes por amnésicas, no vale, sob as quietas ondas.

4
Também é um pouco como, às vezes, uma
dedada cinza mancha o sol – e
todo o dia se reduz a um fecho,
um momento represador de nossa
mais íntima nulidade – o apagamento.

5
Esse xadrez jogado que cada mulher passando velha
significa, nas ruas da sexta-feira do sol.
Peças de aguazulados olhos já frios,
porvindouros bichos-da-seda a
nenhuma outra borboleta que a da morte.

6
Ter vivido: conta que a lápis branco em
papel branco se escreve e conta.
Vejo-as passar, escuros peixes
em encapelado mar de pedra parada.
Vou tendo, branco, vivido também.

7
Vejo-as passar: as velhas, as horas.
Jovens, apenas as más, as horas.
As outras, queimadas de décadas
de más mercearias e maus homens,
tabuleiram a negro a sexta-feira e o sol.

8
Telas de luz muito pura sobreplacam
a realidade de seus mesmos quadros:
superlativos e anónimos são os pintores
que a olham e não pintam – por
terem olhado o que pintado era já.

9
Camionetas azuis descem o oceano mineral,
serenas e diligentes como repressivas enfermeiras.
Voltam trazendo água como elas azul,
cartas, licores, fruta, gelatinas, sal.
Homens sonham dentro delas, as uterinas.

10
No talho, florescem os encarnados cravos
das carcaças. Alimentícia, a fibra,
de onde outrora o animal amou,
é sua mesma ex-vida cesteira,
amparada pelos marfins tutânicos.

11
Em cama de azeite e pranto de cebola
frigem, nas tabernas, os passarinhos.
Gatos pobres assistem da rua à função.
Enquanto não chove, o par de carteiros
ri uma anedota sob a parreira da loja.

12
Sei que estas coisas vos parecem versos.
São-no menos, entanto, que, das leis,
verificações. Moles versos e moles verificações,
certo. O mundo acontece todo ao mesmo
tempo: como peixes e água num aquário.

13
Eu ver(s)ifico coisas assim. É o meu
trabalho, é o trabalho do meu corpo.
O trabalho do vosso é procurar.
O do meu já não é. Nem encontrar:
é ser encontrado por camionetas anis e escarlates.

14
Penso que, ao menos neste ponto, me
estou a explicar bem. Trata-se de ver
através da tinta, través o papel.
Uma vida pode não ser mais do que isto.
A minha não é.

15
Um pássaro negro ’ind’ anda voando
nossos brancos ares: o senhor Fernando,
que foi quádruplo pintor da casa portuguesa
e branca. Seus pretos corvos faíscam azul
nas águas desta emaranhada montanha marinha.

16
Ou então, o guarda-redes envelhecido
de Luís Filipe Costa, d’A Borboleta na Gaiola,
seus rins que já não respondem à urgência
mortífera do centro que vem da direita,
a cabeçada goleadora aspergida de cristais de suor.

17
Ou então outra coisa. Outra vez os lobos
como furtivas palavrinhas pretas
no caderno de neve, a choupana
do Homem Velho no meio de nenhures.
Em inglês: snowhere. Sim.

18
Lady Purce went to the ballroom.
Will she kiss the bride, neglect the groom?
Lady Purce makes no mistake
by taking reality as a thick fake
of what the Lord, once, had in mind: His zoom.


19
Deixa andar, Lady, tu deixa andar.
Vem-me aqui antes ver passar
estas oleiras tanoeiras carpideiras
de ninguém. Elas vivem. São elas
as horas pretas como lobos, passando.

20
Sofro súbitos invernos. Esta tarde mesma,
sexta-feira, tomado já o café,
vi o mar não descendo por pedra ser – e
e então foi que, ao repetido sol, só pude:
Amanhã é sábado, prevê-se que chova.

21
Cal e opascarlates saem o santo em procissão.
Grelhadas sardinhas, broa, garrafões.
Oitocentos milhões de anos nos não mudariam.
Mais machos os homens, mais eles mariam
em Agosto, pelo santo, pelo tanto, pelo quanto.

22
Aqui chama-se Margarida, o santo.
Tem um sino de cassete, a dela capela pequenina.
Mas são boas as pessoas, não lisboas,
onde a tristeza invade as casas de bifanas
e até, sei lá eu bem porquê, o Teatro Nacional.

23
Eu moro feliz aqui, na nossa santa terrinha.
Guidinha é a nossa santa, só em Julho acontece.
Por vezes sei que apetece mudar de vida-vidinha,
PSD ou PS, qualquer coisa assim tenrinha.
Vou ficando mais e mais português, ver(s)ificando.

24
Ao sol da sexta-feira, ao sul da chuva.
Tenho de construir no monte a cabana,
deixar-me de navegações. A Noruega não
está por modas nem por modos. Não
aceite, mas digno, passarei o passado.

25
A minha mulher sente os pássaros pretos.
Ela está alerta, não se foi, não ’inda, embora.
Isto é tudo um campo de milho e talho:
os animais comem ouro, acordam mortos
e frios, cesteirando as fibras ominosas.

26
Os músicos ouvem com o olhar. Tenho visto
isso acontecer. A cantora estabelece lírios
irrepetíveis. O flavo lírio que do estômago
cresce até tornar-se produto solar em
plena, pleníssima noite. Somos o sul dos músicos.

27
Sim, o mar sobe – para que a terra
aprenda a pescar mais do que apenas
peixes. Nas cómodas coxas, dormem as
tranças mediúnicas das avós, as mesas
pé-de-galo dos avós também coxos. E tristes.

28
Eu hei-de viver um pouco na laranja-néon
dos balcões memoriais a que bebi e estimei.
Algumas frases inglesas com ingleses trocadas
estimarão uma universidade afectiva
que controlei só até onde quis.

29
O resto foi quase tudo em francês,
incluindo Céline e a parvoíce à propos de Céline por
Cesariny, Mário, em carta, ou boca, a Pacheco, Luiz.
Isso já não conta. O que conta, bem,
é sermos todos de esquerda até haver dinheiro.

30
Will you ever sperm me against all the odds?
Oh menina, ou te calas ou te fodes, deixa-te
de britanices e come a sopa, tenho 43 anos e foge-me
a pachorra para tudo o que não seja Graham Greene,
está bem assim ou escrevo-te um postal?

31
De modo que as arrendatárias vísceras
pulsam ainda seu pus cuspidor de sentenças.
Na mínima vila, enorme e verme é
a humanidade concentrada em pensões
de reforma e habitação: PORTUGAL.

32
Acabou-se-me o sol, sábado é amanhã.
Lido com as ácidas aranhas ver(s)ificadoras.
Tenho tempo, estou vivo, respiro na neve.
O sol fez assim: andou de lado como um
apresentador arrependido. Faça favor.

33
E, clarobscuramente, dentro do corpo
habitam os mortos-vivos todos
os que tossem hálitos de retratos,
follow me d’aprés o Afogador de Ratos,
se amanhã chover, vem para sul.

(Cá estaremos.)

29/06/2007

Rosário Breve - 6 Hey Joe

Sai hoje n'O Ribatejo
a sexta crónica da série
Rosário Breve.
Hey Joe

Eu, o senhor Berardo e a Arte Moderna parecemos ter uma evidentíssima coisa em comum: nenhum dos três percebe nada dos outros dois.
Isto é mesmo assim e não tem mal nenhum. Já com a vida acontece, a nós três e a toda a gente, a mesmíssima coisa: ela não percebe nada de nós e nós não percebemos nada da vida. Vem a morte e resolve tudo: a vida, a Arte Moderna, o senhor Berardo et moi.
Tenho um amigo que é artista moderno e me conhece, do que lhe resulta ser pobre, ao contrário do senhor Berardo.
Tenho uma vida que é uma riqueza, já que, como o senhor Berardo, sou conhecido por artistas (embora só dos modernos).
Já o senhor Berardo, entre milhentas outras coisas, há-de ter pela Arte Moderna o mesmo que tem pelo Rui Costa: algo a que se deve tirar o número, pôr à venda ou arrecadar.
Tudo isto, assim mal posto, deriva, naturalmente, da minha estupidez artística e da minha córnea desconfiança quanto a madeirenses que já tenham ido à África do Sul, agravando-se a desconfiança, por córnea, até a madeirenses que nunca lá foram mas fizeram da Madeira outra África do Sul.
Já o senhor Berardo (que, cada vez que tenta falar, demonstra ser um cidadão de todo o mundo menos daqui) nem deveria para aqui ser chamado. Quem, aliás, o chamou, deveria, no mínimo, ser obrigado a comprar uma reprodução do quadro do menino-que-chora.
Termino com uma tripla seta que nem é seta mas é tripla: eu, o Benfica e o senhor Berardo. Dois de nós três gostamos muito um do outro. E nenhum dos dois é o senhor Berardo.

28/06/2007

Tenho 22 Anos

Primeira comunhão em Juazeiro do Norte
Brasil, 1981
© Sebastião Salgado



No futuro, todos teremos passado.
De vez.

As enfermeiras entregam-nos às mães
dentro de tábuas de papelão.
Ominosas, as gajas.

Ama-me pelo lado contrário a quem sou.
Não pode ser, dizes?

Eu vi o teu peito branco na noite preta.
Tinha dois olhos cor-de-rosa.

O animal triste coita contra si mesmo.
É uma alegria.
Breve.

A mulher do outro não compra nada
que seja nosso.

Hás-de um dia estar no chão da cozinha
de tua Mãe – e só dois serem lá,
o chão da cozinha e tu.

Este é o pequeno tempo das grandes perdas.
Este é o grande tempo das pequenas merdas.

Ela tocou o cabelo do marido com a boca.
Eu estava no banco de trás e não esqueço.

O teu silêncio é tão ruidoso,
que ninguém te ouve.

O sol faz do teu coração uma caravela.
Não há mar, não há mar, não amar.

Todos teremos passado, alguma vez, na vida.
Mas nem todos a passámos.

O educado senhor veste quatro fatos pretos.
Fernando. António. Nogueira. Pessoa.

A guerra é sempre duas:
pátria e/ou colonial.

A boca ardida.
O coração queimado.
Dá-me lume.

Quem passou uma ponte de madeira sabe
que as pernas tristes não t(r)emem cair.

Tu e a tua sombra são
o par mais desavindo.

A criança é tocada pela loucura do amor.
Nunca recupera.

O amor não é o ser gordo com que se casa
para ter um apartamento
ou uma merda assim.

O amor só pode ser
o nosso pai mesmo
na outra mãe.

Aos 22 anos, a idade
tornou-se-me inumerável:
tenho 22 22 22 22 anos.

A morte é um braço dormente:
sente-se, não age.

Por que razão faz gente mal
a outra gente?
Por tudo ser gente.

A minha carne sobrestima-me.
Olha que a tua também.

Com andamento de braço
e caligrafia de pé,
s’aguenta muito madraço,
muita merda, muita fé.

Caramulo, tarde de 27 de Junho de 2007

27/06/2007

Montanha Mágica - programa nº 13


Às zero horas, mais logo, o Montanha Mágica vai para o ar.
Os textos de ligação são os mesmos de "Dicções Radiofónicas", já aqui publicados para leitura.
Poetas convidados de hoje: António Botto (na imagem; poema "Reportagem"), Jorge de Sousa Braga ("Tristeza") e Armando Silva Carvalho ("Natureza Viva").

A música é mais que muito e ainda mais que muito boa. Alinhamento:

Ronda dos Quatro Caminhos (com orquestra e coro alentejano)
Cassandra Wilson
Chet Baker
Chopin
Léo Ferré
Jimmy Bruno / Howard Allen
Jimmy Page / Robert Plant
Joni Mitchell
Ralph McTell
Roberta Flack
Robin McKelle
California Guitar Trio
Sailormoon
Screaming Headless Torsos
Mafalda Arnauth
Tania Libertad
Ute Lemper
José Afonso
Zeca Medeiros
Led Zeppelin
Sérgio Godinho (com Adriano, Fausto e José Afonso)
Carlos Mendes
Joan Manuel Serrat
Léo Ferré (outra vez, pois).

Audível em Emissora das Beiras (91.2 FM) ou pela net em http://www.radios.pt/PortalRadio
(concelho Tondela, distrito Viseu).

E pronto, por hoje vai ser isto. Repete às zero de sexta para sábado.
Abraço.

D.A.

26/06/2007

Não Viajando na Noruega



Alguns sabem que não é a morte,
é a espera por ela.
Algumas casas dentro de jardins secos,
esperam os jardins que elas sequem.

Elas secam.

Um fragor de sangue despenha o dia.
Galinhas poentes cambaleiam de sono.
São perdidos os alguns que vêem estas coisas.

Alguns perdem-se.

Da volta do mercado de Stavanger,
bordando a água sólida do mundo,
alguns esperam em andamento.
O tempo compagina-os.
Tal terribilidade é maravilhosa.

Os caminhos das florestas, como
as avenidas das cidades, assistem
ao levamento deles e delas.

Elas e eles levam-se.

Por mim, confirmo-me em presença
de sucessivos salões de baile abandonados.
Pesados reposteiros, mumificados de pó e da
cor de esquecidas menstruações sentinelam
o acesso ao bufete desertado, à galeria
de cadeiras que se inclinam para a frente
sem ninguém por trás, ao soalho raspado
de tangos guiados pela ginjinha, ao
palco diagonal sobre que uma caixa de
acordeão sem acordeão ensina o óbvio
do corpo e da alma.

Dentro das casas de secos jardins,
alguns
acendem velas ainda,
profanam fotografias,
naftalinam roupas de crianças avoengas,
esperam um cão amarelo que não virá
porque nenhum pó vem,
está.
Há cinquenta anos,
duas crianças ilusórias e inglesas
foram à Noruega.
Tornaram-se postais.
Saíram em 1960 em tradução portuguesa.
Agora, estão na memória de
alguns
– e doem
como sombras
aos que nunca irão
nem à Noruega
nem a lado algum.

O que as vidas de
todos
não foram,
é na televisão e nos videoclubes
que estão:
finiadolescentes de um Verão perpétuo
maliciando vermutes a espiões elegantíssimos,
cujo crédito é royal em tudo o que for
casino; uma África branquíssima e viva
como uma tulipa de cristal
ilustrada a gazelas de gás na boca
de trepadores leopardos; recados zodíacos
de absoluta garantia escatológica final
quanto ao casamento da costureirinha do Sabugal
(não de Stavanger, nem de Trondheim)
com um herdeiro riquíssimo de Cascais
(não de Oslo, nem de Kristiansund);
ou, melhor, St. Oréans de Gammeville
em vez do Sabugal
e Paris
au lieu da cascalense pasmaceira de
D. Carlos I e último.

Alguns sabem que não é a televisão,
nem o videoclube,
nem a Noruega.

As crianças esperam, depois
secam.

Molelos, tarde de 24 de Junho de 2007

Ilustração: © Maria Helena Abreu
para a edição de Viajando na Noruega
(tradução portuguesa de Alexandre Pinheiro Torres de
The Young Traveller in Norway, de Beth e Garry Hogg).
O original inglês é da Phoenix House, Londres, 1956.
A edição portuguesa é de
Livraria Civilização - Editora, Porto /
Companhia Editora do Minho, Barcelos, 1960.

24/06/2007

Dois Sonetos e Sete Banalidades Verídicas




Soneto com Ossos e Espinhas

Também a infância é crepuscular.
De ante tudo o que pós viria a ser,
toda já era símile face do morrer.
Nenhuma luz a pôde mais fotografar.

Fritamos peixe, derivamos na avenida.
Em estações de gasolina pontuamos.
Cidade antiga, mais ou menos reclamos,
a una morte toca à mais diversa vida.

É tudo o mesmo. Livro de reclamações,
nem no turismo de invernos e verões.
Assamos frango, ambulamos na praceta.

Mais onerosos, os idosos, ultrajados,
firmam sonetos que queriam fossem fados.
Ossos e espinhas, tudo vai ter à valeta.



Mãe, Eu Moro Aqui

Descem as rolas ao povoado de raposas.
Bancos de pedra acamam os ralos lobos.
Publifolhetos verbam pomadas ossuárias.
Mais indigente do que o povo, o sacerdote.

Pilares da ponte são barras só de sabão.
O rio chora dum olho enxuto ao sol.
Se vem o vento, evapora criancinhas.
Fica a rua calçada de bonequinhas.

Escassa, a luz repassa roupa estendida.
No adro velho, cospe pus o sacristão.
O coração bombeia más sabedorias.

Do lar de idosos chega a cassete gravada.
A ortoépia foi bem há muito erradicada.
Desci aqui, que rola sou despovoada.



Sete Banalidades Verídicas

1
Tudo passa – o cigarro, o café, o copo ao lado.
Tudo passa – menos o passado.

2
Hei-de deixar de ser uma rola?

3
Baixaram as persianas,
não nos bate tanto o sol.
Matilhas de comedores de bolos,
tomadores de moscatel,
arranjadores de sardinhas assadas,
matinais conspiradores da harmonia.
Somos de espasmos sossegados.
De calças pretas, os filarmónicos.
Esta dor tão humana quão
um número.
O número da pastelaria.

4
Não quero mas convoco os meus santos escuros.
Apascento ao domingo cartucheiras de ovelhas.
A Norte, detiveram um padre falso:
olha, já começaram – não tarda,
chegam-me.

5
Irrefragável é a sexta hora da manhã,
quando renasces de mãe nenhuma.
Do sistema impensável, uma cinza de cortinas.
E do teu corpo, o espectáculo abandonado
a meio.
Salvando-te vem um tirocínio breve, futuro.
Futuro repetido em anedotas porcas,
insensatos versos, noções de geografia,
cálices mais gesto que cálices.

Toca-te a visão de homens em escarpas.
Mais voa a fixa fraga do que eles.
Soltas-te tu, não alcanças mar nem céu.
Antes do machado, socorre-te do registo
dos morning port drinkers, sua horária melancolia.
Não chegará alguém para resgate algum.
Mulheres de unhas pedestres sujas de verniz,
profetas brasileiros do amor-de-jézuze,
herdeiras inglesas de Westmoreland e alhures,
nem sequer um morto decente com que
possas engravatar-te ao domingo,
às seis e meia da manhã.

6
Não mais me afundei em corpo algum.
Não mais fundei corpo algum.
O meu corpo olho e dele digo:
outro nenhum.

7
A velha come na cozinha,
a velha chora na sala.
A velha chora na cozinha,
a velha sonha no pátio.
A velha sonha na cozinha,
a velha come o que chora.


Textos: Caramulo,
manhãs de 23 (sonetos)
e de 24 de Junho de 2007
Fotografia: Mãe (Pedrulha,
tarde de 23 de Junho de 2007

São Quê?




Se os santos fossem mesmo populares, não seriam santos, mas gente do povo. E gente mais virada para a terra do que para o céu.
Comer gafanhotos no deserto e prègar às dunas é mais coisa de capelão-fuzileiro do que de santo. E é pouquíssimo popular.
Outra coisa estranha é o facto de todos os santos só o serem depois de mortos. De modo que a santidade, condenada como está a ser póstuma, de pouco serve aos vivos, a quem os exemplos só aproveitam enquanto por cá andam.
Podemos não acreditar neles, mas que os há, há, como se diz das outras. Quase todos andam de sandálias e cheiram a alho que tresandam. A sua moral é feita de ralhos sexuais, abstinências dietéticas e crepúsculos mais tristes que de costume.
Há-os simpáticos, claro. António, por exemplo. Malicioso consertador de bilhas, alcoviteiro. Mas também de sandálias.
E há os antipáticos. Paulo, por exemplo. Depois de chatear os outros pelo mal, desatou a chateá-los por um bem que nem tinham encomendado, como acontece com aqueles concursos da Reader’s Digest.
Altar, enfim, cada um tem o que merece. Eu, que não mereço, despeço-me aqui e vou converter-me à pesca. Sem sermão aos peixes. Isso nunca.
Pub.
n'O Ribatejo (www.oribatejo.pt)
de 22 de junho de 2007

22/06/2007

Fado com Lírio e Rosa



Para o meu Amigo João (da) Bininha,
que hoje completaria 44 anos.




Refrão
A absoluta boca da madurez
come os próprios dentes.
O pão negro da lucidez
come as próprias sementes.



Já me foge o lírio da perspectiva.
Varre-se-me insone o doce sono.
Ando por mate tapete de outono
que não me quer que morra, nem que viva.

Tudo aceito. Os dias vão. A noite fica.
Luminosas mulheres que queres são rosas.
À luz de velas sombram, vaporosas,
umbrosas sopram o fumo da bica.

Já refulgiram dias que fugiram.
Os campos desertaram sem destroços
que não apenas corpos já sem ossos,
lucimaduros mesmos se engoliram.

Não tem a vida ’sperança, só vã guarda.
Inserta, a vida na morte é certa.
Acerta o passo cedo, que não tarda
viagem acabada em estrada aberta.

Tens aqui tu tudo o que me foi lírio.
Rosa não tens, não tenho, se perdeu.
Marcial é do viver o martírio
e mártir do morrer quem não viveu.

Não espero, não volto a este lado,
não tem espelho o lado que não espera.
Quem tape o tapete à primavera,
mate lhe fica o mesmo e outonado.

Casas onde o frio se alumia
brilham de noite em prata de cal.
Cá fora, sempre noite, nunca dia.
Dentro, a fria noite por igual.

Cãezitos tossem ungidos de chuva.
Gatinhas parem dúzias de ratinhos.
Mãozita enregela quando a luva
dedilha pelo chão gestos sozinhos.

Um pouco de toucinho, pão de milho,
canoro vinho lento sonolento.
Café. E de aguardente um quartilho
p’ra suportar da noite gelo e vento.

Escutar a horta, à porta as laranjeiras.
Sentir no escuro o lume a rubricar
a cinza do que gerações inteiras
esqueceram mas quiseram escutar.

Vem connosco daí, ó nossa idade.
Uma noite estira e atira acabada.
Uma idade é ida, vida e chegada.
Partir não é quebrar, é mocidade.

Quando, final, vier o frio eterno,
numa coisa o lixa o coração:
é ter o lírio vivido de verão
’inda a rosa não vivera o inverno.



Caramulo, tarde de 22 de Junho de 2007

Nenhum dos Rostos – IV

Paul Léautaud em 1952, por Henri Cartier-Bresson



Na manhã clara e fresca, estou sentado num local público.
Penso sem usar excessiva seriedade. Penso nalguns livros do austríaco Thomas Bernhard, levanto-me, vou ao minimercado comprar duas cebolas para daqui a pouco cozinhar um caldo de carne, acabo por trazer também dois tomates pequenos e muito maduros para misturar com vinagre, azeite e anchovas salgadas. Por me ter levantado muito cedo, estou na manhã com uma certa veterania. Tenho o trabalho do dia todo planeado – e também esses ofícios não são excessivos nem sérios por aí além. Já ontem tinha desejado o caldo de carne, mas não havia cebolas em casa. E hoje de manhã, na paz monárquica do trono da casa-de-banho, acabei as últimas catorze páginas de Betão, o livro que Thomas Bernhard publicou em 1982.
Às três da tarde, hei-de estar no posto de saúde da vila para que a enfermeira me acabe o tratamento ao ouvido direito. Há sangue coagulado lá dentro. Há uma semana, alta noite já, tropecei e caí nas escadas que levam ao meu andar. A cabeça embateu com estrondo no corrimão metálico. O couro rasgou-se-me um pouco, sangrei um pouco. Durante o sono, um fio escuro escorreu para dentro da concha do ouvido. Até hoje, a cabeça dói-me do lado oposto, o esquerdo. Mas vai-me sendo possível escrever e ler com a ajuda de um analgésico de oito em oito horas. Pude assim iniciar a leitura de Perturbação, que Thomas Bernhard deu à luz em 1967, ou seja, vinte e dois anos antes de morrer e trinta e seis depois de nascer.
O rolo das manhãs de Junho autonomiza estas e todas as outras brincadeiras.
De tarde, tudo é um pouco mais complicado – a começar por viver. A frescura diáfana da manhã, perdi-a durante o tempo em que cozinhava. Depois de comer, tomar o comprimido de paracetamol e ouvir as notícias da uma, saí para tomar café e ler um pouco mais de Bernhard até que sejam horas de ir ao posto de saúde. O que tinha sido puro, claro e fresco deu lugar a uma espécie de febre: a tarde é de um calor fosco, as árvores doem à vista. O mar é muito longe, demasiado longe. A montanha é o mar daqui, uma petrificada sucessão imóvel de ondas de pedra, de terra dura.
Não é que o mundo seja mais sério. Não, de modo algum. É tão-só um pouco mais doentio. Não por acaso, um dos loucos mansos do sanatório anda por perto. É cortês e velho. Pediu um copo de água na pastelaria, deram-lho, foi do balcão à mesa com o copo, bebeu a água em pé, sentou-se, levantou-se quase de imediato, pegou no copo, devolveu-o ao balcão, saiu para o calor glauco da tarde.
Outros sanatoriais são quase rapazes ainda. Usam sandálias de profetas sem rebanho. Gastam fora do sanatório mental todas as horas possíveis. As mulheres são menos – ou saem menos horas. Uma delas chefiou no Norte uma estação dos Correios. Não sei quase nada da história dela. Pinta-se muito, usa roupas de boneca anacrónica, trata por namorado um cavalheiro que diz uma frase por semana. O cavalheiro usa um bigode à brasileiro das décadas 40/50 do século passado. Calça sapatos brancos, castanhos no peito. Muda de gravata três vezes por dia – um pouco como escrevo: manhã, tarde, noite. Mas só noites, tardes, manhãs, gravatas, sapatos e bigodes reconheço, nenhum rosto.

Caramulo, manhã e tarde de 8 de Junho de 2007

Uma Volta Magra pela Vila Magra





Estou daqui a ver um homem doente que mal suporta ser capeado pelo sol. Cabelo fino e pouco pesponta-lhe, ralo, o crânio casca-de-ovo. É de olhos que já viram melhores dias. Como preciso de escrever, decido pegar numa pedra e partir o espelho.

Tenho a memória, tenho o mar.
Tenho a montanha, tenho o esquecimento.
Por que raio me falta tudo?

É no minimercado que se habita o desejo.

Uma volta magra pela vila magra.
Casas cheias de vazio.
O vento farfalhante na árvore interior.
Dois homens falam sobre mel.
Passa uma velha que cheira a sabão.

Coisa raríssima: uma criança.

Sobre nós, suspendendo-nos para baixo, a tenda do tempo. É o tempo todo. Nós somos ninguém. Só temos nomes.

Estou daqui a verificar as leis.

Antes, dei uma volta pela Noruega. Casas, fiordes, a independência em 1905, a comida, as crianças respirando através da neve. Parti depois para o senhor Sam Shepard. Regressei à vila sem dela ter saído. Memória e mar, montanha e esquecimento.

Estou daqui a sentir os anjos.

Celebrei a chegada do Verão com uma ameixa.
Só o fruto era verdadeiro.

O amor que me tiveram ainda me laca os ossos.

Antes disto, as mulheres entravam casa dentro, instituíam comidas paralisantes, recortavam pão, cediam vinho. Hoje, embora são.

Para a frente, arroios vingarão corrimentos.

Enquanto, o coração, pinçado de vidro, lanceta as têmporas.

Estou daqui a desarrumar mortalmente o baile.
E nem há baile.

Frangam sardinhas carbonizadas aos santos de Junho.
Acordeões ventilam como aspiradores.
Se cinco não perfazem um punho,
um coração não perfaz duas dores.

Esta é a minha vila.
Esta é a minha vida.

Pássaros trilam ar,
apogiaturas de penas.
Uma égua bebe água.
Que a cachorra nunca morra.



Texto e foto: Caramulo, tarde de 21 de Junho de 2007

21/06/2007

Palavras e Cores para a Minha Irmã

Rosas caíram à água.
Vento verde veio de lado,
tocou as encarnadas no azul.

Aos olhos das cabrinhas
vão as abelhas
beber o mel, as espertas.

Pois, nem tudo é morte.
Embora tudo seja morrer,
nem tudo é morte.

O ar frio muito gosta
de lamber
as axilas das árvores.

Lembra-te comigo
de quando,
os pés, na água,

a felicidade nos
fazia tilintar como
a campainhas de prata.

Hoje, o Verão
cai à água como rosas.
Nós vamos no vento.



Caramulo,
tarde de 20
e manhã de 21
de Junho de 2007

19/06/2007

Nuno Gabriel Oliveira Dixit - ou então os meninos crescem, carago

Nuno Oliveira
to me
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4:55 pm (3 hours ago)
Ora viva, caro amigo!

Antes de mais, dizer-te que fiquei sem palavras, ao ver que aqueles 1 poemas eram também para mim. Que dizer? Sentir a consideração de alguém que se admira é sempre um prazer enorme!
Queria ter falado contigo sobre o assunto Zé Rui. Conheço relativamente bem o ACERT, e o Zé Rui vem por inerência. A malta já sabe, de "anteontem" (como a fome do Chico Buarque), que ele é um "pintas" com uma disponibilidade enorme para receber aplausos. Enfim, é uma vicissitude deste mundo do espetáculo. Eu por acaso sempre achei que o trabalho notável que era feito no ACERT era em muito devido ao Pompeu, mas se calhar foi porque engracei mais com o homem desde início. Passa-se o mesmo em muitos outros sítios. Ali bem perto de nós, em Coimbra, os "Realejo" são um exemplo gritante: o pessoal só conhece o Fernando Meireles, por todo o mediatismo que assume, quando quem conhece o grupo sabe que o trabalho, a alma, a qualidade do grupo, é devida em enorme percentagem ao génio do Amadeu! Do Zé Rui, a única coisa em concreto que conheço é a sua pouca habilidade como actor. E enfim, alguma aptidão como "recitador" no "Soltar a lingua". Não é nenhum Villaret, mas o homem até se desenrasca bem. De resto, só mesmo o à-vontade com que dá o passo para a frente do palco, na altura dos aplausos!
Obviamente que o desenrolar dos argumentos deixa a coisa clara como a àgua, quer na forma desnorteada como o ACERT (? - todo o ACERT?) os desenrola, quer no teor dos mesmos - colocar a hipótese de que tu próprio tivesses plagiado alguém desconhecido para fazeres 15 poemas, é de uma desonestidade intelectual gritante. Enfim... merdices que acontecem!

Poesia! Muita! Muita e boa! Muita e muito boa! Estás a escrever de forma deliciosa, Daniel! E a um ritmo impressionante. Quando começas a ganhar dinheiro com ela? Ou seja... quando o(s) livro(s), e em que detalhes de edição? Há tanta poesia rasca em cima das prateleiras das livrarias, está na altura de varreres alguma dela, e lá colocares a TUA poesia, carago! A boa poesia é mal-empregue para morar apenas nos blogues!

Bem, e agora mudando radicalmente de assunto (uma vez que falávamos de BOA ESCRITA - eheheheh), remeto-te aqui um textinho meu, que sujeito à tua implacável apreciação. Seria um favor que me farias, se o lesses, e se fizesses a devida "correcção literária". É uma coisa verde (que eu sou verde!), talvez caótica, com inúmeras deficiências... enfim, estou a começar a fazer caminho, tenho noção das minhas fragilidades. Só para contextualizar, trata-se de um conto (o primeiro de uma série de 4 contos encadeados, e confluem, em tempos diferentes, nestes mesmos 2 personagens, e em mais um que surge em dois dos contos seguintes), uma história quase sem história (talvez chata por isso mesmo, mas a ausência de "acção" neste conto inicial foi algo intencional na forma como os pensei, enquanto todo). Deixo-te com este "Último Café em Paris" - trata-se de uma "derivação ficcionada" do "Último Tango...", quase uma coisa "impressionista", um desenho em traço rápido de uma memória do filme que me ficou.
Aguardo um comentário, e mais que isso, os tais "reparos, insultos, e coisital"!

Um grande abraço amigo-irmão,

Nuno Gabriel Oliveira

Nem Junho nem Inverno Acabam






I. Simetria

Casas há que são cartas por escrever.
Outras são também brancas, mas cisnes.
As casas têm pescoços caligráficos.
Elas fecham a boca e abrem os olhos.
Quando é o contrário, é a tragédia.
Todas as tragédias são domésticas.
Passo nas ruas, fica-se-me a sombra nas casas.
Nunca volto inteiro a casa.
Também os pescadores perdem no mar a sombra.
Quando voltam, voltam estátuas de sal.
Aves e mulheres tossem-nos.

Árvores há que são lápis escreventes.
Outras são também negras, mas corvos.
As árvores têm pescoços caligráficos.
Elas fecham os pés e abrem os braços.
Quando é o contrário, é a tragédia.
Todas as tragédias são genealógicas.
Passo nas áleas, fica-se-me a luz nas árvores.
Nunca volto inteiro do bosque.
Também os caçadores perdem no bosque a luz.
Quando não voltam, ficaram árvores de sal.
Aves e mulheres caçam-nos.



II. Remoçamento das Viúvas

Gnomam pelas hortas-jardins as escuras viúvas.
Eiras e leiras seivam de sóis e de chuvas.
Nabos rubescem, licoram-se as uvas.
Medram medas trigas tais douradas vulvas.



III. O Sol Daqui

O sol é feito de água.
Os homenzitos velhos flutuam de costas.
Os cães têm escamas tristes e longas.
As árvores algam as cabeleiras.
E os corações afogam-se.



IV. Pois, as Nossas Vidas

As nossas vidas são casas de putas
guardadas por nós com um carinho
que só pode ser deste mundo.
Mijamos porta fora mas dentro
até ouro cagamos – para nós.



V. Mais Música

Frequentei outrora conventos gasoleaginosos,
profetas de baunilha, sarampos de morango.
Eu fui já maravilhoso moço de tango,
entre poucos outros maravilhosos.

Nem sempre cavalocorcelei carrosséis,
mas nunca falhei valsasouropéis.
Marchitas cordatas de colete & gravata?
Muita campinei entre Zés e Manéis.

Bebopei, blueto, jazzações humanas,
’té chinelei acordeações tricanas.
Luzita vermelha, boîte azul:
coração a norte, a morte a sul.



VI. Nunca Li Feuherbach

Tão findos são os mais lindos
de si tão desavindos como
os mais feios sem meios
alheios correios
de deuses diabos caragos e santiagos
licros ouros de si despingam coitados
mundo é contratantes
antes fora de contratados.



VII. Oxi

O sinal da minha vida é esta árvore respiratória.
O sinal da minha morte é esta árvore respiratória.
Tudo existe tanto duas vezes ao mesmo tempo.
Tu nasces, escreves, morres, lêem-te. Quem respira?



Poemas: Caramulo, manhã (I) e tarde (II a VII) de 18 de Junho de 2007
Fotografia: Caramulo, manhã de 18 de Junho de 2007

18/06/2007

Onze Invernos de Junho


Estes poemas

são para

dois homens-árvores:

Armando Silva Carvalho

e Nuno Gabriel Oliveira




I. Já não se Trata Porque

Tinha vindo trabalhar em algumas palavras.
À entrada do café, fui abordado por ela.
Castanha e preta, deitada no chão.
Olhou-me de dentro do mundo.
Não sou capaz de escrever o olhar dela.
Quem me dera ser capaz do olhar dela.
É uma cadela jovem que olha da antiguidade.
Eu tinha vindo ao colo do vento.
Galgara a subida de pedra fresca.
Dei por mim no olhar dela.

Ontem, por não a ter visto, choveu muito.
Andei descalço sobre espelhos quebrados.
Evitei perder-me no bosque.
Espreitei ovelhas que nuveavam encostas.
Vi homens doentes rindo sozinhos.
Vestiam casacos cinzentos como ovelhas sujas.
Eles são gaios químicos, papagaios daltónicos.
Usam os olhos a partir das costas.
É calados que falam da chuva.
Vida e vila são-nos a mesma coisa.

Ri homens doentes vindo sozinhos.
O olhar da cadela e o olhar do bosque.
Tenho as mãos como patas de galinha.
Tenho o coração escrito em papel-carbono.
As árvores cantam.
Os espelhos não cantam.
Não há crianças, não há palavras murais.
Não há mulheres, não há palavras morais.
Os homens têm os corações cravejados de unhas.
Dizem palavras transparentes e porcas.

Às vezes, há cavalos negros, mas também são cães.
São cavalos nos sonhos que sonhamos como cadelas.
Quando o vento me dá tudo, posso ser nada.
Em torno, as pedras muram a gramática.
Pescoçamos para que nos torne campinas o vento os cabelos.
Ele torna-nos campinas.
Usamos memórias ruminantes de ovelhas.
Pássaros ladram alto como cães.
São eles quem, porém, cavalga o vento.
Eles nos levam ao colo, senhoris e ventis.

Mas são elas, as cadelas, quem nos ama.
São umas mães.
Sobrevoam a pedra e os nossos corações.
Travessam-nos como ao bosque.
Nós paramos um por um.
Nunca levantamos as mãos.
Descemos sempre as mãos.
Perco-me num deles, o mesmo casaco.
Babujo o coração.
Trabalho em algumas palavras dele.

Já não se trata de estar vivo.
Trata-se não ser capaz do olhar dela.
Pensões arruinadas deliquiam entre árvores.
Décadas parecem versos ao vento.
Calço espelhos quebrados.
Aos ombros da campina, um casaco cinzento.
Não dou por ela no meu olhar.
Os corações-carbonos não amam.
Não amam porque não esquecem.
Porque só escrevem.



II. Como a G. de G.

Agora trago as mãos como a guardanapos de gestos.
Não me torna tal diferente de qualquer morto.
Incomum não sou, tão-só sou absorto.
Medos e gelos dedos gelam antes lestos.

Arrefeço à mesa com mulheres e cristais.
Arroios de sangue tilintam rubis.
Gemem e requintam copitos de anis.
Talheres dão verniz de pratas banais.

O mais que não digo do não ouvir vem.
Perdido por mil, emprestado por cem.
Despido de roupa, vestido de trapo.

Direito de entrada, saída de morto.
Incomum não sou, tão-só sou absorto.
Levo agora mãos, gesto e guardanapo.



III. Antuzede, 1917

Era azul a água da chuva nos fatos azuis
dos operários que viviam
da chuva ao preço dela.
Castanhas duras e vinho mijão viviam no cheiro.
Era branca a água da chuva nas capelas frias
das mulheres que viviam
da chuva ao preço deles.

Ripavam bacalhau e onanismos.
Esfarelavam de si jardins matadores.
Cegavam de castanho fendidos amores.
Raspavam azulazulejos e brancorganismos.

O sol caiava de pus a tristeza sólita.
E eles agora mortos nos filhos deles,
feitos, como eles desfeitos,
da chuva ao preço deles.
E delas.



IV. Idioma

Se a boca sangra, é da língua.



V. Pedrulha, 1973

Rondas rogatórias abrenunciam a casa.
Chove trevo em torno dos arrumos-galinheiros.
Costureiras sustentam bípedes farinheiros.
Mas a vida sobe a casa à brisa.

Relatos e tangos radiofonam domingos.
Nespereiras entrevam de puro raquitismo.
Acordeonistas soltos em excursão
acordam revoltos em sol-açafrão.

Nenhuma lei. Nenhuma criança. Lua alguma.
Só da vida a morte (presto) se enciúma.
Conduzia frio, dono de NSU.
Morreu mal vestido, enterrado nu.

Rondas rogatórias, chovidos galinheiros:
que assim é a infância dos mais domingueiros.



VI. Música?

Crissas evóides pidem nesperar?
Quã gila evóide crô desperantar?
Si nã turca guela a deçamatura,
dopia neuratar laquela pingura?

Munas quilas bêm ofóssas derridas:
mortes são as pautas com as notas de
vidas.



VII. Vitral

Um pingo de vidro na ponta da piça
não faz da porcina cristal ou linguiça.
Bem pelo contrário, um tal repingar
Faz dela 1coisa mais dada a apontar.



VIII. Infantêspera Medonhesa

Nesperecinas acriançam o folhedo.
Tangepersinas chumolham os mais verderetes.
Limolinetes sangrassucam zarvoredo.
Trançacitrinas macidulam ramalhetes.

C’rac’olchoram babas ranhos gatinitos.
Pulgas medonhas vampirizam cachorritos.
Cheques de lama pagam zimbros descanáveis.
Viver não é daquelas coisas mais amáveis.

Infância toda entre muros de quintal.
Infante mudo-surdo-tudo-portugal.
Nesperecinas acriançam o folhedo.
Quem tiver cu, tem onde meter o dedo.



IX. Entram Entre

Entram por vezes maravilhas olhos adentro
e nada têm a ver connosco nem de nós-olhos.
Toalhas amarelas como lances de sol,
Baptizados honrados como lâminas de maçã.
Tenho ido a funerais com o mesmo fato.
Alongo-me no regresso a cervejarias com três ou quatro.
Conversamos sob o chumbo da hora culpada.
Metem caminhos a tralhão entre castelos e escolas.
Vem uma gaja cantar, deram horas galináceas.
Seguramos as almas amarelas como rifas:
se não houver sorteio, nem morteio haverá.

Uma calma económica tudo teria resolvido.
As putas legais assim tudo têm parido.
Depois há pontas, que são júris e prudentes.
Nada de ferro que se não morda entre dentes.

Entram por vezes maravilhas entrementes.



X. P.L.P.L.

Canitos pés de sombra madura
tocam as lívias beiras da ramagem
agem tudo como se a mesma loucura
desse cor à terra, terra à imagem.

Não é só tule mesmo coração
finge de azul ser pão e ser verão
não convoca a espera mais oficial
é mera não vera a noite total.

Deditos de fita valsam malmequeres
mulheres de chita sonham ser casadas
cortinas de crinas éguas alugueres
tu queres ou não queres tais divorciadas.

Olha o teu rio infante inicial
olho azul à vida tudo é p’rtugal
teus canitos de sombra futura
passada luzita, pouquita loucura.



XI. Europa É praticamente tudo Alentejo

Ainda canta tão manso
passarito afinador.
É cansaço sem descanso,
passarito tão cantor.

Asitas ele grila breves,
pendura de nosso ouvido.
Um cantor tão bem sentido,
gargantasas tem tão leves.

De azul pinta seu espelho,
de cal caia seu cantar.
Ao sol torra o vermelho
e à lua vai engessar.

Ramo frio, muito inverno.
Não poup’ a ave ternura.
Viver pode ser inferno,
ser do céu uma loucura.

Não repit’ o passarito,
que este canto é só meu.
Só vivi um bocadito,
que não era meu nem teu.

Vai lá cantar prá Europa,
ganhar tantos tostões mais,
que viver é uma tropa
de pretos e portugais.




Caramulo, tarde de domingo, 17 de Junho de 2007

17/06/2007

Rosário Breve - 4 (com foto de Armando Silva Carvalho)

Para minha alegria, recebi pelo correio esta fotografia penichense tirada pelo grande poeta português Armando Silva Carvalho, que, oferecendo-ma com data de 11 de Junho de 2007, me desvaneceu em imagens e letras. Aqui a partilho convosco.
O texto Cinco foi publicado n'O Ribatejo de 15 de Junho de 2007.

Cinco

Colhi duas rosas.
Tenho duas mulheres. Dei uma rosa a uma, dei uma rosa a outra. Depois, meti-me no comboio e desapareci. Elas ficaram.
Cada uma olha a rosa da outra. A mulher de cabelo ruivo tem a rosa amarela. A mulher de cabelo dourado tem a rosa encarnada. São contemporâneas, as quatro; as duas mulheres e as duas rosas. Vivem em molduras diferentes. Uma vive à chuva, outra vive ao sol. Uma anoitece para que a outra acorde. Uma delas veste um manto de veludo azul diamantinado de estrelas. A outra é uma meda de trigo amarelo sobre campo verde. Ambas são crianças antigas. Além do rubi de lábios, perlados lhes são os dentes. Ambas são de uma tristeza formosa, posto que, a cada uma, uma rosa. E ambas são de uma formosura triste, posto que, em cada uma, uma rosa existe.
E tu, leitor? Tens mulheres? Leitor: sabes onde colher rosas? Sinto muita curiosidade em relação a ti. Sim, claro, somos diferentes. Só o comboio é idêntico, como idêntica é a desaparição. Não é, leitor? Não és, leitor? Olha, vou desvendar-te a pobreza final do meu segredo.
Colhi duas rosas.
Tenho duas mulheres,
Uma chove, outra faz sol.
De rosa amarela, a mulher de cabelo ruivo é a minha vida.
De rosa encarnada, a mulher de cabelo dourado é a minha morte.
E tu, leitor, és a minha viagem.

Quatro Coisas de Ontem

Dezanove Tercetos Vivos

Não amo a minha vida.
A minha vida não me ama.
Deitamo-nos nus na mesma cama.

Tu vais morrer, minha Mãe?
Eu vou-te morrer, minha Mãe?
Para que me nasceste, Mãe?

Hoje é sábado, chove muito.
Duas bolas de vidro, os meus olhos.
A terra fuma nevoeiro frio.

O coração cheio de berlindes glaucos.
A minha vida lava de chuva o cabelo.
Tristeza e beleza de mãos dadas.

Chove tanto, o império de vidro.
Ruas dizem-me adeus.
Digo-lhes um frémito de cutelarias.

Repito as águas com o coração.
Alam-se-me rastos de terra.
Alpina-se-me de neve a cabeça.

Nem tudo é amor ou a morte.
Há outras palavras além da vida.
Molhamos as mãos em espelhos.

Um dia, a criança não te é.
Uma noite, procuras a criança.
Só o espelho encontras.

Gerânios, gladíolos, baías.
Meninas, meninos, mármores.
E olhos de chuva no chão.

Laranjeiras de cristal na madrugada.
O susto da alba no coração.
O coração da alba na alma.

É tão tecelã, a noite.
Tão fingida de manhã, a tecelã.
Aranhas crispam sua lua.

Palavras ondulam peixes.
Nadam na boca, as gajas.
Até versos ondulam.

Então a tua dor não treme aquários?
Arrefece a platina da memória, sim.
Tudo arrefece, o esquecimento até.

Isto um dia folha, diz a árvore.
Isto um dia falha, diz o amor.
Isto nunca, filha, Mãe.

O coração frita a própria lama.
Ele até troca as letras.
O coração frita a própria alma.

A Mãe dá a mão.
A Mãe dá a mão ao filho.
Mas o filho está no inverno.

O rio é vertical.
O espelho deita-se.
A sombra é um idioma.

Fui amado por um cão.
O amor dele é a mais elástica das minhas coisas.
O meu único rosto é o desse cão.

A vida do meu cão é a minha vida.
A vida da minha Mãe é a do meu cão.
Das três, amo as duas.



Soneto em Calamento

No calamento cor-de-laranja da noite particular,
casais descasados rejuntam forças de comercial a gasóleo.
Mais funcionária pública do que espermática lhes é a vida.
Hipermercados afluem, a corações, consumos de plástico.

Tenebroso não é viver, mas o teatro alemão.
A gente fode-se tanto emigrantemente.
Porcos mornos nos dão a cor da proteína.
Amarelecemos em esplanadas plásticas e lusas.

Luzimos devagarinho osteoporoses lunares,
enterramos pais com sapatos de ferro.
Treze, catorze amigos integram o enterro.

Oliveiras nos pulsam grécias testiculares,
azeite condiz a tristeza dos lares.
Morrer sempre acerta, viver foi um erro.



Ter Sido

Ter sido vivo na própria vida,
heroísmo banal, respirador.
Viva a vida viva viva.
A estiva cansa o estivador.



Rubra

O teu coração é uma ginja: cor e tamanho.



Caramulo, tarde e noite de 16 de Junho de 2007

16/06/2007

Recolha

Study of a Boy
by Loretta Lux





I

Pode o coração ser azulejo e partir-se como dentes.
Isso acontece às pessoas e aos animais.
Enlanguesce uma flor, igual a uma cidade.
As pessoas passam devagarinho a eternidade.

Eu gostava muito do senhor Sacramento da minha rua.
Ele levantava-se às cinco da manhã.
Às cinco e treze, ele ouvia o primeiro galo.
Às oito e meia, ele contava-me o galo dele.

A minha rua passa sozinha nos meus anos.
Eu passo os meus anos sozinhos sem rua.
Os galos e os maridos cantam noutro lado.
Temos um pelourinho enfeitado de almas.



II

Aqui não há mulheres.
Chove desde sempre.
Acordo muito cedo na casa congelada.
A lenha tornou-se ferro no cesto.
As árvores mancham o nevoeiro.
A chuva funga o mundo breve.
Fecharam a escola, as crianças acabaram.
Às oito da manhã é a noite.
Num carro abandonado vivem dois cães.
O talhante senta-se à porta do talho fechado.
Uma viúva não olha, só tem costas.
Ela é um corvo de azeite-luz.
Encerraram a loja de roupa.
As calças e os casacos tornaram-se estuque.
Aranhas e anjos partilham o gesso.
Ninguém quis desmantelar o baile.
As almas dos músicos medusam no salão.
Uma cadeira quebrada como uma pessoa.
Quarenta cartas na mesa, todas de espadas.
Somos homens, usamos mercúrio no coração.
A nossa astronomia é um caminho de terra.
Respiramos chuva escura.
Lampiões piscam-nos os olhos.
Cisnes de terracota? As nossas mãos.
A ferida de um homem é a boca.
Tão melancólico sangra ele resina.
Guardaram-nos em caixas de cristal.
Cheiramos a canela velha.
Pássaros de pano tocam-nos por trás o mercúrio.
A montanha desfecha-nos pedradas de gelo.
O zinco vinca a única nuvem.
O parque derrama sal no tanque de peixes.
Aqui não há peixes.



III

À tardinha, recolhemos do chão os corpos.
Recolhemo-los devagar em coisa de uma hora.
Lavamo-los na fonte, entre pedras e árvores.
Entregamo-los ao Lar, pagam-nos em moedas.

Na manhã seguinte, eles voltam-nos.
Tomam café no café, fumam cigarros baratos.
Olham para a televisão, não vêem as cores.
Vão almoçar pelos próprios pés.

Regressam empilhados de comprimidos.
Os das injecções já não voltam à rua.
Os outros levantam-se do café, saem.

Adormecem então na inclinação da luz.
Tombam com uma espécie de método.
À tardinha, recolhemos do chão os corpos.



IV

A minha terra tem o cabelo amarelo.
A minha terra é uma louca mansa.
A minha vida partilha pedras com a minha terra.
Águas e ares correm-nos a mim e a ela.
Mãos são taças, o vento com água nas mãos.
Firme é a viagem, trémulo o caminho.



V

Comeremos um pão de lama
enquanto não desistem de nós as vésperas.
Somos um copo de sangue
que não provém do porvir.

Textos:

Caramulo,

entardenoitecer de 13 de Junho de 2007 (I);

manhã de 14 de Junho de 2007 (II);

tarde de 14 de Junho de 2007 (III, IV e V)

13/06/2007

De teus Pés ao Pai

Gérard Castello-Lopes
homenageia
Henri Cartier-Bresson


Dos pés do teu Pai nasce a tua sombra solar.
Vê-lo vivo, sozinho, em ambas as mortes:
a dele, a tua nele.
Adoras o velho, o peso triste dele, ele
cavalo de papelão, embalador de ananases,
perfume macho em tua pilita hereditária.
Amas o teu Pai.
Amas a morte ebúrnea do teu Pai.
Sente-lo nas vielas sentimentais de teus pés,
sem ele já, as mesmas as vielas.
As mãos dele feitas de papel e cifras.
O corpo dele feito de grés.
A educação dele, tão cortesã sem corte,
alfaiate de lágrimas, serralheiro imemorial.
Gostas dele
Sente-lo nos teus cafés neónicos.
Vive-lo, deitado, em pé.
Conta-me tu a mim como ele foi.
Sei como ele se foi.
Não sei como ele foi.
Ainda é?
Diz-me: amas o teu Pai?
Faz um filho, pá, torna-te alfaiate,
repete, aprende, ensina.
A vida é uma menina.

Caramulo, tarde de 12 de Junho de 2007

12/06/2007

Dias Tornam-se Rios

© by Constantine Manos



Dias tornam-se rios negros entre casas e árvores.
Homens e mulheres flutuam naufrágios mudos.
Fazem e desfazem filhos, cefaleias, papéis.
Homens e mulheres são dias e são noites.

Pertenço aos meus rios. Falo contigo
sem ti presente perante: ponte poente.
Ente tremendo de púbis de trigo
que ceifado foi-se a foice, presigo.

Um olho vermelho, outro azul,
a mil dimensões bosquejam o mundo.
Seres ovelham sua mesma tristeza,
a sul o coração calçado de farrapos.

As casas e as árvores casadas no meu peito,
sentem-nos elas desaparecendo no ar,
rejubila a terra de féretros anónimos,
envelhecem as estrelas de duro vidro.

E no entanto é ainda o tempo de vivermos.
Em cervejarias valsamos gargalhadas ferozes.
Cristos meninos rodam cervejas a camelos,
paracetamol e manteiga amaciam a febre.

Que sexuais magoados olhos coelhamos
a ancas de esquadro fendidas a golpe.
Nada nos adianta de nada de ante,
palpitam a bochecho vulvas cor-de-rosa-preta.

Areia colhemos de deditos pèzitos de criança,
velas brancas azulam a espuma dos vivos.
Morrem-nos os mortos esperando-nos,
fios de cera alumiando a longa amorosa espera.

Vivo a inumerável morte da minha vida
sem mariquices nem cacos de tijolo cru.
Tenho boca, olhos, orelhas e cu,
tenho a minha morte de vida servida.

Não é grave. Gosto de ver passar os cães,
carrinhos-de-choque de pulgas e humanidades.
Todos os dias me sinto e sirvo de carnificina,
faço uns telefonemas roucos, espero a Lua.

Em barracas moram filósofos de plástico,
anilhas de lata orelham-lhes canções,
um charco sulfúrico mitiga-lhes filharada,
passo com um recorte de jornal em vez de piça.

A vida é maravilhosa e muito interessante.
Em Paris, por exemplo, putas educadas
americanizam ostras e sovietizam champanhes,
tudo tão curioso, menos nossas estéreis avós.

Portugal anoitece como um cartão de rifas,
zarolhos fatimizam santas da ladeira,
os senhores ministros pulsam colesteróis,
shakespearea-se tremoços e filhas.

Autocarros mamutam pergaminhos operários,
meus versos não dão para táxialuguer,
vou de bossa pedestre como dromedários,
cerveja e camelos e gaja-mulher.

Junto ao rio, perto do caminho-de-ferro,
às três da manhã entre bate-chapas,
sirvo-vos hilariantes fados de loja,
recolho manhãzinha ao berço de gatas.

Militamos fortemente em nossa boca.
Tocamos por vergonha rosas alheias.
Luzitas ladram cegueiras caseiras.
Morrer é viver menos a parte louca.

Olha o valor da primavera, os colégios frios,
olha perder-se um homem em dias e rios,
lagoa-se de fresco a canoa de pau,
ter dinheiro e ter fome e ser bom e ser mau.

Anoitece muito, o cosmos da barriga.
Passam os cães sua surdina diligência.
Eu ando aqui, linha por lenha, lenha por linho,
ouço as ovelhas trágicas, os cómicos carneiros.

Faluas descem a minha cidade botânica.
Pertenço a esse corso dentífrico de almas.
Repetem risos alfarrabistas, os temporais
de meu irríguo coração desaprendedor.

Corto à direita depois de S. Bartolomeu,
cheiro a podridão magnífica das putas-mães.
Baila de madeira caruncha, ateneu,
a dor seca da água, do vinho, dos pães.

Rios nocturnam luas tão solares,
que as terças-feiras domingam segundas.
Dias são tão fundos, noites são tão fundas,
corações em casas e almas em bares.

Caramulo, tarde de 11 de Junho de 2007

11/06/2007

R., R. de R.



Rosto, resto de rosa.
Que(m) de ti se perdeu?
Cara não mais maravilhosa,
apagou-se, feneceu.



Caramulo, manhã de 11 de Junho de 2007

Canzoada Assaltante