03/09/2007

Quatro Poemas de Visita

This profession – yours by adoption – does not live in the real world. It visits it.

John le Carré, Absolute Friends, pág. 167





1. DEZANOVE QUADRAS DE COIMBRA-A
COM UMA MORALIDADE-B


De novo vejo o homem na tarde de comboios.
Além, o rio estanha a luz coagulada.
Árvores acodem em moldura de quieta procissão.
Pela gare varre o vento o tempo.

Bocas eléctricas altifalam horas: e destinos.
Mulheres velhas pedem esmola na escadaria.
Profusão de revistas e cigarrilhas no quiosque.
O rio parece triste como uma pessoa deitada.

Pássaros angelizam o cartão do céu.
Um hotel jaz ao alto à saída da gare.
Raparigas de aluguer florescem à sombra da sombra.
Uma churrasqueira auschwitza frangos magros.

Amo lentamente a podridão institucionalizada.
As alunas da Escola de Dactilografia suspiram à janela.
O sol desce a meia-haste além-nuvens.
É possível morrer amando tanto.

Voltaremos de comboio a nosso passado porvir.
Estações sucederão a estações – a frio.
Apeadeiros quietos nos darão ginja, não água.
Comeremos o pão plastificado de algum desejo.

O homem na tarde de comboios não tem aonde ir.
É o destino dele – chegar a horas a nenhures.
Rubricam reclamos urgências verdes de farmácias.
Tossem peidos abusados carritos a gasóleo.

Subsolo, vigiam os nomes mortos em mármore.
Postais rápidos acodem à visão transeunte.
Pasteurizados matrimónios reciclam alheias crianças.
E a noite cabisbaixa-nos suas armas neónicas.

Coleccionamos homens em tardes de comboios:
até que um dia o dia se nos faça noite.
Não adianta coleccionar unhas, sujidades:
morremos limpos como uma folha branca – é o nosso papel.

Deriva longe de vós e de mim a maré primacial.
Somos mais naufrágios do que mares.
Domesticámos o lobo do coração: mas
lebres, não livres, corremos na neve.

Homem nas ruas da cidade sujeita à gare.
Bicho acossado pela noite comercial das ruas.
Vielas fritam fígado e sardinhas com cebola.
Polícias bocejam contra o regulamento.

Folha perene é ter vivido, caduco é escrevê-la.
Avenida até cima, alongam os plátanos a noite vegetal.
Rostos cerâmicos tragediam a comédia instante.
Uma cerveja fria arde na boca.

Discretos assassinos passeiam rondando a carne.
Museus fechados fazem de fluoxetina.
Sombras azuis como bandeiras fecham empenas.
Letras sem leitura juncam o lixo dos sonhos.

Este homem na noite sem transporte.
Eu conheço este homem em dele a noite.
Eu queria fazer um poema sobre a tarde.
Quando anoitece, mantém o formato poético, por favor.

Oh, a não lavada folhícula de alface do meio-bitoque!
Oh, o não respirado tinto da taça avulsa!
Oh, as saudades qu’eu tenho da tosse convulsa!
Oh, o jazz e o samba e a valsa e o rock!

Não. Oh nenhum. Nenhum oh. Vejo de novo
o homem na noite sem comboios, só com destino.
Altifala seu coração ulterior, bronquítico, eléctrico,
senilizando a infância como de costume.

Aparece a infância quando vos dizia do homem
dos comboios. A infância aparece muito,
nunca para redimir, antes para fazer de
Claude Nougaro quando canta a Toulouse dele.

A minha Toulouse é Coimbra: Coimbra-B.
Ela e eu temos sido B toda a vida.
Ela despede fábricas desempregadas.
Eu procuro emprego em fábricas.

Sou o homem na tarde de comboios à saída
de Coimbra-A, do destino sem comboios da noite.
Não conto para o totobola: conto versos.
Eu faço quadras.

Sou o pássaro. Sou a puta. Trago e levo
sombra. Já assei frangos, quando era
outro poeta, outro de cinzenta gabardine.
Entre Coimbra-A e Coimbra-B, tudo é de borla.

Só a vida não é grátis.



2. NESCIÊNCIA PELICULAR

Uma película da cor-de-como-olhas pudesse eu
roubar sem dor nem lembrança do roubo.
De películas preciso muito, eu, que não
guardo, ainda não, uma vida completa.

Lâminas platinam minha percepção, laterais
tais lances de rio em desassossego.
Digo ainda: conheço gente que não passa,
mais passagens que não são p’ra gente.

Digo bem. O mais consiste em telefonemas
de aviso, chegada & partida, no mor a partida.
Tem sido assim toda a vida. E eu
posso estudar mais, mas nunca sei.



3. FAMÍLIAS

Foi preciso envelhecer para saber e dizer
que a minha família não é melhor
do que as outras. Nem melhor nem pior:
tão igual, aliás, como dar menina e rapaz.

No resto é o futuro: as pontes novas sobre o rio velho.
E um fio de música enquanto nos não telefonam
para baptizado ou funeral.
Portanto, igual.



4. PÁTRIA, SÉCULO XX e MENOS

A minha vida confere facturas
de meninos mortos e mortas meninas.
Foi quando eu era menino e não ainda
tinha morrido.

Já mais ou menos morri, entretanto.
Eles não vivem: estão
na permilagem
do catolicismo de Estado.

Eu ando à percentagem.



Caramulo, tarde de 2 de Setembro de 2007

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Canzoada Assaltante