15/05/2007

Rapariga com Rosas nos Olhos e Outros Poemas

Rapariga com Rosas nos Olhos

1
Ainda arrefece o ar, usa o casaco ainda
se saíres.
Usa ainda o meu nome
se voltares.
Arrefece o ar ainda.

2
Na província
no café
a rapariga chora
no canto
do café
da província.
(Verdade: oito menos cinco da tarde,
ainda não anoiteceu por já ser
maio, catorze.)

3
(Ela chora
duas rosas
os olhos
vermelhos.)

4
Já fui hóspede de um hotel 5estrelas5 de Madrid.
Tudo pago.
A porta do quarto não era a chave, era a cartão.
Entrei, o televisor ligou-se sozinho e dizia:
“Bienvenido, señor Abrunheiro”.
Cum carago.
Passam-se dez anos, estou num café de província portuguesa vendo, ao canto, uma rapariga sozinha a chorar.
Dizem-me os da terra que é maluca.
Bienvenida.

5
Usa o meu nome e o teu casaco.

6
Ai amor
eu antigamente.

7
Telejornal.
A menina que desapareceu.
Não sei qual é a novidade.
Eu já vou em duas.

8
Depois diz-me
rosas
diz-me
olhos.




Saudades de Manuel

para o J. Manuel


0. Pena

(Tenho muita pena mas misturam-se-me as coisas.
Bem minha Mãe me dizia
– Filho, olha que isso da Poesia…
E eu olhei e por cá fiquei.)

1. Manuel

Só tinhas um corpo para essa alma toda,
bem te lixaste.
Nos não ofereces mais tua amadora cinefilia,
nem tachos de guisado devoras mais.
Que pena: os dias são bonitos, ainda,
como azulejos.
Poderíamos ainda falar, não sei,
do que vai no Avenida
(mas também, como tu, ruiu o Avenida).
Olha, deixa.

2. Prosa deitada

Moramos num sítio tão frio, que até as árvores se deitam. Isto não tem mal algum. Ligamos a televisão, vemos o CSI, sentimos lá fora os poucos carros da pobre gente que passa no gelo. Não temos medo. Às vezes, acendo um fósforo só para que da memória se me não escoe de todo o lume. Também fazemos amor, que é de borla e de olhos fechados – como o dormir. Telefonamos aos filhos dispersos pelos 5continentes5, pelas 7partidas-do-mundo7. Atendem-nos quase nunca, mas telefonamos sempre. A telha é cor-de-tijolo, o céu é da cor que pode, a árvore é verde de dia, preta de noite – e deitada.

3. Casal com Ordenado Líquido

Eu e a minha senhora
andamos na rua a par
como as lágrimas.

4. BG, C.

Vi hoje um cu que me fez pensar.
Estava rebuçado em ganga justa.
As metades eram em gomo de laranja.
O rego era um fio de limão.
Presidia a duas pernas desenhadas.
Acabava umas costas litorais.
Do lado oposto, tornava-se matriz.
Boa gaja, carago.

5. Inveja

Invejo o rapaz de fato-macaco
que trabalha na oficina-auto.
Parece concreto, inteiro, pouco
dado a Camões e a merdas.

6. Saudades de Manuel

Tenho saudades, Manuel.
Tantos versos e só tenho isto para dizer.



Soneto a Pedir que Olhes

Martelam-te pétalas a cartilagem auricular.
Não mais serás inocente – isso faz anos.
O tempo que gaste tanto gostar.
Tempo de areia, anos oceanos.

Não queira a tristeza pagar a rodada
sozinha. Que queira ser compincha a tristeza.
Ávida, a vida suporta a despesa.
Chegando-lhe a morte, não paga mais nada.

Olha, vai ao médico de família.
Olha, compra o livrete, ajuda os bombeiros.
Olha, não sejas assim, não sejas assado.
Olha, sexta sendo noite vai haver fado.
Olha, que não fiquem perdizes nem pardieiros.
Olha, passa uma mão de cera na mobília.



À Tardinha com o senhor Hopper

Estou dentro de um quadro do senhor Hopper.
O café é uma esquina redonda.
Fora, livor azul (o céu), livor verde (a tília),
livor tijolo (o telhado).
Há mais quatro homens no café.
Não, cinco (entrou outro).
O 1 tem casaco azul (o céu).
O 2 tem camisola verde (a tília).
O 3 tem camisola cinza (o céu, ontem).
O 4 tem camisola vermelha (o telhado, vivo).
O 5 tem camisa negra (o céu, daqui a pouco).
Há uma arca vertical de gelados.
Uma mulher prenhe deriva no
plano do balcão.
Dizem assim: Não, Não, Não foi assim,
Assim é que foi.
Eu digo: Não, Não
– e pareço um cão.
Estou dentro de um quadro do senhor Hopper.
O jantar arde, longe como um grito d violada.
É tudo tão bonito, se reparar.
Há esta força.
Costumo tomar café num café
tão higiénico, que ir ao urinol
é uma devassa química.
Até o mijo cheira a limão:
é de ter gente que liga
a lixívias, lídias e ricardos reis.
Estou dentro de um quadro do senhor Hopper.
A moldura é pedra e casebres.
Anexam os casebres curros
onde penitenciam os burros.
Garganteiam as ovelhas, as cabras.
Não é muita a civilização.
É muito o ar, que vi já torrar,
em agosto bravo,
o que seda foi de junho.
Tantos comboios passam sem nós dentro.
Rios tantos passam sem nós vendo.
Só eles (rio, comboio, café) passam
se os virmos passar.
Alma ou não-alma.
Sinapse e sinopse.
Eu digo:
Às vezes, fritamos um frango, é sábado,
não queremos morrer, não queremos viver.
Depois vem o senhor Hopper e diz:
Faz-se tarde,
não tarda
é noite.



Mais outro Boletim Meteorológico

Sol com sol.
Carne com carne.
Quem entristece primeiro?
Quem primeiro acontece?

Nós vemos atenciosamente a película pornográfica:
o álbum de casamento.
Abrimos o álbum de casamento e
assistimos à pedofilia contrariada do pai,
à ginofilia da mãe,
ao voraz apetite doceiro da avó-viúva.

E de repente faz-se chuva.


Caramulo, entardenoitecer de 14 de Maio de 2007

2 comentários:

Anónimo disse...

olha que isso da Poesia...

Paula Raposo disse...

Mais uma vez sem palavras...é um prazer passar aqui. Beijos.

Canzoada Assaltante