30/04/2007

Abril Indo-se

Acaba Abril, venha o senhor mês que se segue.
Aqui arrumo, antes que seja tarde e se faça noite, mais umas textalhadas avulsas e convulsas. Os dois primeiros, Sessão Contínua (…) e Aflipto, são, respectivamente, da tarde e do entardenoitecer de 26 de Abril de 2007. Já a sequência de dezoito poemas Post Coitum (…) é coisa da tarde de 28 de Abril. Mesmo ano.




SESSÃO CONTÍNUA DE 24 FILMES
PARA UMA ÚNICA ETERNIDADE IGUAL AO RELÂMPAGO

1
Extirpados pulmões,
escurecem ao ar
as árvores.

Entre árvores e casas,
os pássaros.
Nos pátios, esperando,
os gatos.

2
Na ponderosa cozinha económica,
o casal recém-levantado do tálamo
é surpreendido pela vigência do limão.

3
Muito vermelha,
muito verde:
a vida, às vezes.

4
Deixa, por banda sonora, um amarfanho de papel.

5
Toques laterais:
o vento na janela:
o coração no peito.

6
A maravilhosa mocidade do desespero:
única eternidade.

7
Igual ao relâmpago:
a cona rasgada de alto a baixo:
a Mãe, sim.

8
Não tem o amor carteiro.

9
O sonho?
Um carro sem condutor,
tu no banco de trás.

10
Tu chamando-te tu,
eu.

11
A velha expondo o presunto
às moscas jovens.

12
Nenhuma saída
sem ser pela frente.

13
As ondas do mar, labaredas.

14
Sal queimando.

15
Visão do morto que se veste para a sexta-feira à noite.

16
Sombrio e desassombrado:
o anjo.

17
Sombrio e sombrio:
Deus.

18
Cara, remissão, piolho, luz:
palavras rápidas.

19
Aceitação e resignação podem
não rimar.

20
Aceitação e resignação podem
não remar.

21
Homens sem hexâmetros
descarregam peixes vivos
de barcos:
homens com hexâmetros.

22
O universo paralelo do funcionário
acede-lhe a pedofilia, a filatelia.

23
Loja de conveniência, uma e meia
da manhã.
Atum, vinho, arroz:
ele, ele, ele.

24
Mesmo que isto não tivesse sido,
está escrito.

…………………………………………..


AFLIPTO


In memoriam Laurinda dos Santos A.


Vigora ainda a velha pulsão redentora
do filho único de casal com muitos filhos.
Acesa ainda a lamparina que nutre e assusta
a menina de outro século, aquela que,
por tísica e química, falece ao cabo
de poucos panos mal borrados,
ao cabo de um ano a dois
com todas as noites.
É a vigência
ou a urgência
da infância
as histórias.
Este homem que pulsa,
decente, seu coração
embainhado em camisa de botão
como uma amendoeira de cabedal:
este mesmo homem que revive
para não viver?
Agora:
como fazer?
Da ínsua, o ouro tangerino
olha e molha vacâncias de menino:
na-certeza-porém
de haver estrela & musgo
e pai & mãe.
Vigora ainda o homem lácteo,
sua via
que roça,
da Lua,
um vértice
de eucalipto.
Feliz e aflipto.

…………………………………………..


POST COITUM OMNE ANIMAL TRISTE EST
(ou VAI ATENDER, QUE PODE SER O CARTEIRO)


1
O sono preto esvaziou-me bem.
Acordei na lassidão.
O outro corpo tinha já marchado.
O outro corpo tinha já deixado
ilegíveis traços: parênteses de lençol
e pontos húmidos.
Já a janela esclarecia.
Outra vez o dia.
A língua de cartão,
o amor envelhecido
em casca de carvalho.
O zipermercado
do desquitado desamor.
My place or your place
d’ailleurs e andor.
Na porta do roupeiro,
o Che do costume
em poster
idade.
No frigorífico, as salsichas,
a embalagem de salada de atum,
o champanhe suplente
como uma galera de reboque.
Um sal de jazz, nada de rock.
Na sala, como esquecido,
o terceiro do Quarteto
de Alexandria,
já outra vez a janela
o dia esclarecia.

2
É quando, antes de tudo,
tudo te parece depois.
E, mais que tudo e
sem ser por nada,
assim é; e quanto.

3
Da oliveira enegrecida perante a casa do teu amigo,
dirás ou não dirás – tanto faz.
Recolherás notas demográficas e urbanizações.
Agora esta rua é sentido proibido a subir:
na infância, não era.
Quem nasceu, quem se exilou.
Curioso, como teimam em chamar
emigração
a
exílio.
Agora é outra vez antes de tudo.
Do teu amigo enegrecerás a oliveira.

4
(Velhice da Garota de Ipanema)

Passarás quieta sob teu dossel
de ouro vilipendiado.
De pobre presigo serás servida,
umas lascas de rançoso leitão frio,
uma colher de mandioca,
não mais.
Mas terás para sempre sido
rainha das princesas tropicais.

5
Tonto tom, ó Tom Jobim.
Tonto, sim: que só santo
soa tanto assim.

6
Lamberei a cal das paredes das últimas casas
sempre que irreversível me parecer o porvir.
Serei de novo o velho anjo gatinhando sem asas
pela cozinha onde há febra a frigir.

Se tiver ou for de corpo tenente
não a Deus temente serei pois certo
é o poço aberto em que a gente
toda tudo acaba mais decerto.

7
(Aspectos da GiNazaré – seu Típico e meu Azedume, que Detesto aquelas Peixeiras)

Mar vaginoso de lustral lombo golfinho
verás acrescido em escol natação.
Marulhação é de espuma o burburinho
(faz de pelourinho o peludo tubarão).

À praia acode histèrilizada a peixeira
tá-mar da merda não nos sobra zimmerturismo.
Resto é nudismo, resto é a bandalheira:
Porsche-pó neto, viva viva o ranchotipicismo.

8
(Falô)

Falam mal no Brasil português de Portugal.
Mas já no Brasil falam bem
a variante local da língua-mãe.

9
(Para qualquer, ou todas, Brönte)

Não zunem desse lado campos-ventos,
vasta só a devastação pluripeneda,
zimbro e urze, espargos e rebentos
raspam d’ar que nada suceda.

Nada suceda. Ô! Ô! Nada suceda.
A gota do velho squire não agordem.
Proibida lágrima de sherry lhe acudam,
antes.

Não. Não torvo, não vinho nem torvelinho
ajudem já as putas das virgens
silvestres que a pena de ganso
raspavam imaginvaginações.

Desse mal morreu muita gente
de outra cor
na Índia (salvo Goa, Damão e Diu)
e na Nova Zelândia (salvo nada).

Zunem finalmente desse lado
etc.

10
(Canção, Outra)

Triste triste triste
triste é a manhã
alegre rosada
da cor de amanhã

do cavaleiro manchego
do gordo burrical
do desassossego
e de Portugal

da magra praia acordada
como órfã filha às sopas
alta madrugada
sujas rotas roupas

vem vem de mansinho
não arda a aguardente
sopas pão e vinho
e tristeza de gente

linda linda linda
quem não foi quem não veio
olha-me ainda
‘inda qu’eu seja feio

toca da primeira
vez a vez primeira
espigas numa eira
cantigas numa feira

cantigas de recado
em cine-teatro
o diabo a quatro
zero deus contado

recupero barcos
mas de mar nenhum
violas e arcos
recupero sim

quem vem vem vem ou não vem
chega ou basta ou não vai chegar
trago recados doces de mãe
falta só telefonar

11
(Canção para o senhor Carlos Guerreiro, outra)

REFRÃO
Que ninguém nos leve a mal
sermos tão-só Portugal
Que ninguém nos leve a mal
sermos tão-só Portugal


Moimenta da Beira linda
também linda a Sertã
Linda-a-Velha mais ainda
clara do que a manhã

Vila de Rei não acabe
nunca de acontecer
já se sabe q’o Algarve
cedo ou tarde tem de ser

depois vem o Paio Pires
e o Queijo Rabaçal
qu’ele há camiões TIRes
que devassam Portugal

REFRÃO
Que ninguém nos leve a mal
sermos tão-só Portugal
Que ninguém nos leve a mal
sermos tão-só Portugal



em Peniche fixe fixe
Sabugal fixe também
fixe fixe Alcabideche
Santiago do Cacém

Mais além sonda Monsanto
Nodeirinho fica fica
arroz de tomate tanto
come a Costa à Caparica

Olhà Braga arcebispa
Guimarães lhe leva a mal
trocar verde à sardanisca
nisca nisca nisca e tal

REFRÃO
Que ninguém nos leve a mal
sermos tão-só Portugal
Que ninguém nos leve a mal
sermos tão-só Portugal

(silêncio instrumental total; luz vermelha vertical no canto)

(Falado:)

Fala – ao menos uma vez, com a iluminação da morte.
O exemplo da morte.
A morte dos objectos que te esqueceste de coleccionar.
O pensamento do eu ou dele
na pedra fria anestesiando os mesmos intestinos a que
preside teu pobre coração batente.
Fala – ou então bate.
Mas – se bateres – bate.

REFRÃO e acaba.

12
Olha
se a sereia não vier na lista telefónica
olha
não leves a mal
já ninguém tem telefone em casa
nem casa nem telefone
olha
já não há assim sereias por aí além
já se afundou há muito
a série do barco do amor
olha
sendo o caso de te aconteceres triste
e triste amanheceres
mesmo perto do mar
talvez por causa do mar
olha
os faróis não olham sempre sempre
a intervalos só eles piscam
olha
não olhes
olha
não olhes.

13
(com órgão)

Minha mínima condição não acontecida
eu velo ardente por ti em câmara
imagina que esta era mesmo a vida
e te estendia a egípcia tâmara

a do segundo direito divorciada
que por cultura de enciclopédia
se dizia e fazia preocupada
bem mais acima da maior média

imagina

uma coisa és tu
outra a vagina.

14
(Invocações)

Minha santa mãe
de anjo nenhum

Meu santo cão amarelo
à tua mãe dei eu trinca de arroz
com vísceras de animais
outros

Destes-me
o mesmo

ó mãe amarela
ó cão santo.

15
(José II)

Entras sem pressa na casa que dominas,
onde tudo é quase tudo a começar por ti.
Nessa casa te semeaste.
Os cachopos fremem como plátanos
ao vento e ao ti.
A mulher é um pouco estúpida, mas ferve e serve.
Morrerás ridiculamente novo e ainda
não sabes. Cinquenta anos, pá, merda
de idade: para viver como para
morrer: tenho irmãos mais velhos
do que tu, José, Avô.
Entra, vai.

16
Nunca te ofendi que eu soubesse.
Tenho, sim, esta língua, mas
olha-me a boca: sul do que te olha.

Olhamagora: uma vez só mais:
não era contigo.

Era outro.

17
Andei fora.
Quis estar dentro.
Quando quis estar dentro,
já tinha estado.
Não estou.
De modo que vou.
Andou.

18
Ninguém te enganou.
Tu sim enganaste ninguém.
Ninguém te acreditou.
Nem creditou, meu bem.

Era p’ra ser parecido com os outros.
P’ra não responder não perguntes.
Para que éguas desses potros.
E a toucinha desse bestunto.

Era para ser uma merda.
E foi.

Canzoada Assaltante