15/02/2007

Raposa só Tem mais Duas Letras do que Rosa (histª 62 do Anoitecer ao Tom Dela)

História hoje, 15 de Fevereiro de 2007, no ar,
entre as 22 e as 23h00.

1
O café arredonda a esquina da avenida com a rua arborizada que leva ao pavilhão, ao museu e ao hotel. A entrada para o restaurante situa-se no lado oposto às bombas de gasolina. Dentro da sala de café, a luz é sólida e branca como um ovo. Há banca de jornais, cujas edições diárias lutam em vão contra a perenidade do tempo. Não é sítio onde, ou por onde, o tempo passe.

2
Às vezes, sinto fome entre derivações. Saio do parque, vou à mercearia, mando cortar umas páginas de fiambre, acrescento um tomate maduro e outro verde, compro uma garrafa de vinho e dirijo-me à secção de padaria do café. Compro três pães, volto ao parque e alimento-me. Às vezes, a vida restaura-se com uma ajuda pequena.

3
Como dois pães e esfarelo o terceiro sobre a cercadura de cimento do espelho-de-água. Os pássaros não demoram muito. Gosto de vê-los devorar as migalhas com aquele ar só deles, aquele ar de polícias desconfiados de tudo o que mexe e não mexe. Antigamente, quando as minhas pernas eram firmes como a fé, eu descia a serra até meio e deixava carne para a raposa.

4
Arranjava toucinho e frangos, descia meia serra e abandonava a comida numa pedra que o vento deitou à sombra. Escondia-me dentro de um maciço de silvas e esperava pela raposa. Ela também não demorava muito. Parecia uma labareda solidificada. Era bonita e adulta como certas crianças. Foi morta pelo camião dos ovos quando atravessava a estrada do aviário – como se as galinhas houvessem logrado vingar-se pelos filhos delas que lhe dei a ela.

5
Os meus próprios filhos, dei-os ao Canadá. Lá estão, casados e laboriosos, esquecendo isto. A minha mulher suportou mal a partida de ambos na mesma manhã de há tantos anos. Depois, a minha mulher adoeceu e deixou de ser minha. Passou a pertencer toda à doença. Avisei-os um mês antes de ela morrer, mas não vieram. Mas também isto já foi há anos de mais. Já nem raposa havia na minha vida. Só pássaros.

6
A minha saúde é boa. A minha idade, também. Moro na mesma casa de pedra em que nasci, a ponto de o lume na lareira ser o mesmo dessa manhã de Inverno em que me minha mãe me expulsou dela com um grito abafado por respeito a meu Pai. Não havia ainda o café em frente às bombas. Nem bombas. Nem carros. O mundo era maior em tamanho e em mistério. Não era melhor. Apenas maior.

7
Quando comprei a motorizada, senti-me bem. Tínhamos dois capacetes brancos com rebordo de napa, metíamos os capacetes e íamos à feira da vila todas as segundas-feiras. Depois, os rapazes também compraram motas. Não quiseram vendê-las quando foram para o Canadá. Para lá estão, a um canto da casa da lenha, as três. Parecem aranhas mortas. Mas às vezes olho para elas e sinto o vento na minha cara e no cabelo dos meus rapazes, que eles nunca usavam capacete.

8
Gosto de cozer uma posta de peixe-vermelho à noite. Ponho a panela pequena ao lume (também, nunca mais precisei da grande para nada), espero que a água se anime de borbotões, chego-lhe uma batata, um nabo, uma cebola, espero, depois deito-lhe a posta e duas folhas de couve. Ainda tenho azeite do meu. Sobrou-me vinho da merenda no parque. Como e bebo devagar olhando o lume do meu nascimento. Levo os restos ao cão. Ele come tudo, couve e tudo. Não é como a raposa. Uma vez, com a carne, deixei uma rosa à raposa. Não a comeu. Limitou-se a perceber.

9
Se tivesse tido outra educação, não teria sido um homem melhor. Sou este homem, aquele que se torna canhoto quando raspa a barba com a lâmina que foi de meu Pai. O espelho tem uma mancha de ferrugem onde o estanho ruiu. Tem a forma de estrela, a mancha. Durante a barba, penso que aqueles olhos já viram muitos pássaros e muitas coisas. Mas uma raposa só.

10
Sou sempre o primeiro cliente do dia no café que arredonda a esquina como a Rosa faz à saia. Faltam vinte minutos para as oito da manhã, já eu estou sentado na cadeira de plástico branco junto à grade das botijas de gás. Às oito menos cinco, chega o Sílvio, se for segunda, quarta ou sexta. Nos outros dias (menos domingo, que está fechado), chega a mulher, a Encarnação. Bebo o meu café e o meu bagacito. Depois, vou para o parque e tenho saudades da raposa e do vento na cara.

Texto e foto: Caramulo, noite de 14 de Fevereiro de 2007

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Canzoada Assaltante