19/10/2006

O Pessegueiro - história 21 do Anoitecer ao Tom Dela

1
Lá no fundo, lá bem no fundo da minha vida, está um pessegueiro. Não era uma árvore firme, nem frondosa, nem sólida. Pelo contrário, sofria de um raquitismo que o vento só poupava por pura misericórdia. Dava à luz uns pêssegos enfezados e ferrugentos de que eu, apesar de tudo, gostava muito, a ponto de nem os deixar amadurecer.

2
Depois, o acne e o amor pelos sonetos removeram-me de vez da infância. Abandonei o quintal, apanhei o autocarro e dei com os ossos na Biblioteca Municipal, onde consumi tardes e tardes de chuva dividido entre Luiz Vaz de Camões e a senhora Agatha Christie. E a minha vida foi-se tornando num combustível do Inverno.

3
Aos 17 anos, apaixonei-me com as pilhas todas por uma rapariga muito bonita e muito católica. Cheguei a vestir umas calças brancas por causa dela. Consegui alguns beijos e alguns passeios pelas áleas novecentistas do Jardim Botânico. Martirizei-a com Camões e sem hesitação. E depois casei-me com outra.

4
Numa livraria da cidade marítima em que vivi poucos anos, descobri os livros de João Camilo e de António Osório. Estava eu a ler um desses livros num café que hoje é um stand de automóveis, quando um homem, um rapaz e uma mulher me abordaram. Eram espanhóis de Pamplona e precisavam urgentemente de alguém que entendesse um pouco de castelhano e que os levasse à morgue, primeiro, e à polícia, depois.

5
O caso deles era triste e humano como os versos que eu lia. O pai do rapaz e irmão dos adultos era camionista de longo curso. Tinha morrido na véspera no acesso à ponte da cidade. O corpo estava na morgue do hospital. A documentação estava na polícia. Fechei o livro e fui ajudá-los.

6
O homem chamava-se Cándido. A mulher chamava-se Carmen. O rapaz chamava-se Jelaber. Esqueci o nome do morto. Também esqueci o nome da viúva, que chegou nessa noite arruinada pelas lágrimas e pela solidão invencível da viuvez a estrear. Indiquei-lhes uma pensão decente e convidei-os para jantar num restaurante que servia frango à moçambicana.

7
No fim da refeição, as senhoras recolheram-se ao quarto. Eu, o rapaz e o homem fomos beber tudo o que havia para beber na cidade. O rapaz adormeceu ao quarto copo. Expliquei ao dono da casa o que se passava, e ele deixou o rapaz dormir, pela primeira vez em 24 horas, imune à dor do pai. Não sei porquê, contei a Cándido do meu pessegueiro.

8
No dia seguinte, pela tarde, levaram o morto para terras de Navarra. Ainda trocámos algumas cartas e outras tantas saudades. Os anos passaram como transatlânticos: altos e à flor das profundezas. Entretanto, descobri os livros de Nicholas Freeling e de Manuel Vásquez Montalbán. E continuei a afastar-me do pessegueiro.

9
Voltei ao quintal por ocasião da doença final de meu Pai. Não havia nada a fazer senão o balanço, a espera e a conta. Ele apagou-se como uma vela. Ajudei a recolher a cera endurecida e o pavio quebrado. No meu quarto de solteiro, não pude deixar de sorrir à recordação d’“aquela triste e leda madrugada” de 11 de Fevereiro de 1983, quando o meu Pai me acordou para ir ver a neve.

10
Na madrugada de 11 de Fevereiro de 1983, nevou em Coimbra como não havia memória. Era a neve de Camões: o manto frio que adormecia a erva e a vida e o tempo. Nas traseiras do prédio, o monte parecia um espinhaço de cão congelado. Então sim! Ah sim, então sim: o pessegueiro, suportando nos braços o peso de renda da neve, aparecia finalmente – e para sempre – como uma árvore tão sólida, tão frondosa e tão firme, que nenhum vento poderia derrubá-lo jamais.

Caramulo, tarde de 17 de Outubro de 2006

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Canzoada Assaltante