14/10/2006

A Noiva - história 19 do Anoitecer ao Tom Dela


1
À hora de almoço, antes da sopa, tive uma ideia para mais uma história. Era mais uma visão do que uma ideia: num jardim-cemitério, uma mulher vestida de noiva vista de costas. Era uma imagem forte, paradoxal o suficiente para me levar à luta. Um frémito de alegria atou um nó no meu estômago, como sempre acontece que sou visitado por uma imagem, ou um verso, ou uma rosa do género.

2
À minha frente, a produtora do programa já içava a sopa à boca. Contei-lhe a visão e disse-lhe que pensava escrever a história desta noite a partir da noiva entre campas e jazigos. Ela, então, entre duas colheradas fumegantes, esvaziou-me sem piedade. Disse-me ela: “Mas essa história aconteceu mesmo.” Eu ainda tentei resistir: “Mas ainda não é uma história. Ainda é só uma espécie de epifania!” Então, ela contou-me a história.

3
Aqui há uns anos, um rapaz e uma rapariga marcaram casamento. Trataram das coisas comuns que havia a tratar. Quanto às particulares, trataram-nas particularmente. Ela arranjou um vestido branco. Ele mandou fazer um fato noutra cidade. Um dia antes do domingo marcado, o noivo meteu-se no carro e foi buscar o fato. Nunca mais voltou.

4
Nunca mais voltou – não porque se tenha arrependido, desistido e fugido. Nunca mais voltou porque teve um acidente mortal na estrada. Em casa, solteira ainda e para sempre, a rapariga ria-se com as amigas experimentando as rendas brancas, o branco chapéu, a cauda nívea do vestido inicial.

5
Quando a notícia chegou com a morte pela mão, a rapariga viu-se sozinha numa praia com muito mais areia do que mar. Só se apercebeu do mar pelo som dentro da cabeça: uma espécie de asma eléctrica que se ouvia em espiral, dentro da cabeça, em espiral, dentro da cabeça, abafando o coração.

6
Desmaiou, levaram-na para a cama, chamaram um médico. Ninguém se lembrou de que ela continuava vestida de noiva. Conseguiram acordá-la por alguns instantes, o tempo suficiente para engolir dois comprimidos com um pouco de chá de folha de laranjeira. No dia seguinte, o domingo continuava marcado.

7
O sol cegava na cal da igreja. A multidão enegrecia de roupa a própria sombra. Rezada a missa de corpo presente, trouxeram para a luz inclemente a urna. As flores sufocavam o carro fúnebre. Então, alguém gemeu de surpresa. E depois o silêncio ferrou os colmilhos na multidão: ela tinha aparecido para acompanhar o funeral. Sempre vestida de noiva.

8
Ninguém sabia o que fazer, de modo que ninguém fez nada. Ela tinha um ar calmo. Aceitou um lugar no banco de trás do carro fúnebre e esperou. Já então, ela era especialista na difícil arte da espera que se chama desespero.

9
No fim do enterro, trouxeram-na para casa. A mãe e as irmãs conseguiram que despisse por si mesma o vestido de casamento. Dobrou-o muito bem dobrado e guardou-o na caixa. Depois, guardou a caixa no armário alto. Guardou o chapéu na caixa própria. Depois, guardou também essa caixa. Sentou-se na cama e sorriu um pouco.

10
Ela celebra, até hoje, o aniversário do seu casamento. Veste-se de noiva e vai ao cemitério. Depois, volta para casa, despe-se sozinha, guarda o vestido na caixa, guarda a caixa no armário, guarda o chapéu na caixa, guarda a caixa no armário. E depois fica à espera mais um ano.




Caramulo, tarde de 13 de Outubro de 2006

Canzoada Assaltante