02/10/2006

Fruto do Tempo (história 11 do Anoitecer ao Tom Dela, 91.2 FM)

1.
Exercia no mundo uma personalidade cheia, redonda e aromática como um fruto. Chamava-se João, mas tinha usado outros nomes durante outros negócios, noutros anos. Tinha tido outras vidas, não cedendo nunca, porém, a outra personalidade que não a dele, aromática, redonda, cheia. O único grande problema é que o Tempo é maior ladrão de fruta da história dos quintais.

2.
João voltou a ser João quando se aposentou. Na capital da nação, combinou com o banco uma remessa mensal de dinheiro para o posto de Correios da vila. Chegou à casa no extremo da localidade, abriu as janelas, filmou com o olhar a poeira suspensa da solidão e depois pegou lume no lar da cozinha. O lume subiu no ar propício da pedra mais negra.

3.
João tornou-se senhor João. Pagava sem ficar a dever. O funcionário dos Correios espalhou com discrição o boato verdadeiro de ele receber uma reforma sem falta e com fartura. O senhor João tornou-se estimado até por viúvas improváveis que o olhavam de lado no café como peixes cozidos sem sal mas com pimenta.

4.
A vila, derramada na encosta da serra como um presépio decadente, vivia de adiamentos como uma adolescente perpétua. Até um funeral se alcandorava ao estatuto de novidade. Os baptizados aconteciam longe. No Verão, chovia. No Inverno, os rebanhos enferrujavam como dobradiças miniaturais.

5.
O senhor João recusava a tristeza por estratégia. Tinha andado embarcado pelos mares do Sul, mas tal dimensão não a podia espalhar o funcionário dos Correios. O senhor João, quando Johnny ou Jimmy, tinha vivido outras latitudes, respirado outras longitudes, comido outros cocos e sorrelfado outros diamantes. Era, ao lume, sozinho, uma enciclopédia muda de si mesmo, como aliás toda a gente ou é ou acaba por ser.

6.
Uma manhã de nevoeiro, no posto dos Correios, o senhor João não recebeu apenas a mensalidade. Havia uma carta. Trazia estampados mais carimbos do que selos. E trazia, dentro, o retrato fiel do desengano. Dizia a carta: “Estejas onde estiveres, não deixas de ser meu pai. Quando aí te aparecer, seja onde for, não serei teu filho.”

7.
O senhor João não teve de reler a carta para compreender que a vida que ele dera, noutra vida, lhe viria cobrar, por morte, a própria vida. Queimou a carta no lar da cozinha e esperou pelo filho mortífero.

8.
Esperou um inverno inteiro. A primavera amadureceu depressa de mais, tornou-se outono antes de um fósforo. Já a nova neve se lhe antecipava nas asas do nariz quando o senhor João, ao lume, acordando da letargia única da reforma, disse em voz alta:
– O caraças!

9.
Deixou de dormir em casa. A barraca da lenha, que subia a vertente da serra por arquitectura de traves de pinhos, fornecia ao observador um farol de vigília. Deixou de cuidar do cão. Levou latas de peixe e conservas de fruta. A água corria da pedra. A mão era quanto chegava para colhê-la.

10.
O filho nunca veio. Quem veio, foi um assassino incompetente. Entrou o contratado à bruta pela casa. Circulou pelo lar apagado. Disse obscenidades em voz sem registo. Quando o assassino quis sair, não saiu. O senhor João tinha voltado a ser Jimmy. Ou Johnny. Ou o mesmo homem que, como um raro fruto, se deixa apanhar apenas por quem quer, deixando apenas, nesta história de rádio, não mais que um aroma.




Caramulo, tarde de 27 de Setembro de 2006

2 comentários:

Anónimo disse...

Comento menos mas leio sempre. Fruto da falta de Tempo.

Anónimo disse...

Ah, e está belo como sempre. tem passagens sublimes.

Canzoada Assaltante