08/09/2006

Senense

Nos dias 4, 5, 6 e 7 de Setembro deste ano de 2006, mudei provisoriamente de montanha. Razões profissionais levaram-me a Seia, cidade e região. Quando não estava a trabalhar para ganhar dinheiro, escrevia. O que escrevi, foi isto.


1. Proposições Senenses
(Seia, Pastelaria Olhos d’Água, entardecer de 4 de Setembro de 2006)

O ar é denso como um cobertor.
O calor não cede com a noite.
Incêndios em Ourém, Tomar e Peneda-Gerês.
A terra queima a boca.
Rumino numa pastelaria secular.
Telefonar depois das 22 à menina.
Não sofrer mais do que o necessário.
Encarar a mente como um autarquia local.
Frascos de mel no mostrador, o amarelo-torrado.
O Irão desenvolveu um novo míssil terra-ar.
Uma casita-troféu do concurso de doces regionais (5-2-05).
O rapaz do avental atento ao maior avião do mundo.
Jantar devagarinho.
O céu sem a pureza do frio.
Desemprego de longa duração: caras de vidro.
Casa de terra-e-pedra: abandonadas, aluídas.
O caso da jovem austríaca raptada e feliz.
Na pastelaria, estantes de madeira: garrafas-livros.
Cadeiras de forro verde-escuro, doutoral.
Sabão com água.
Dizem-me – Boa-noite – em Seia.





2. Olhar para Homens
(Seia, Pastelaria Olhos d’Água, entardecer de 4 de Setembro de 2006)

Eu vi homens novos em anos hoje envelhecidos.
Quando os revejo, vejo o antigo olhar novo na cara velha.





3. Mais Proposições Senenses
(Seia, Pastelaria Olhos d’Água, tarde de 5 de Setembro de 2006;
o meu irmão Fernando faz hoje 52 anos)

Rolam os corpos nos espaços.
Sou jornalista: alimento-me de palavras alheias.
Quando posso, aqui regresso: aos versos irresponsáveis.
Entrevisto pessoas, no resto.
Aponto-lhes ao rosto o rotundo microfone negro.
Escrevo à frente delas.
Assusto-as devagarinho.
Elas gostam.
São muito humanas.
Chego ao espaço delas e instalo-me.
Devasso-lhes as pastelarias, as casas, as datas biográficas.
Coço-lhes o umbigo.
Pareço querer saber coisas.
Mel, queijo, música, curtumes, costumes.
Coração autárquico.
Filmóliúdes no cinema local.
Crianças repetidas pela sandália global.
Represálias, genitálias, brevidades.
Gajas brasileiras encourando.
Uma fábrica de estúpidos: a televisão.
Os entrevistados ensinam-me coisas.
Só é preciso saber perguntar.
Às vezes, como num engate, sugerir.
Secar os olhos, ser sem ser.





4. Em Viagem
(viagem Caramulo-Seia-Folhadosa, tarde de 7 de Setembro de 2006)


No novo dia, viajo de serra a serra. São mares enxutos. O plâncton é o cardo. O peixe bale. Não ligo de mais a que tudo seja igual em toda a parte. Levo aqui a minha vida: é todo o tanto de que sou capaz.
O calor cedeu um pouco. Este filme sem intervalos: viver. Um camião azul, como um elefante compactado, assombra à frente. Homens de colete laranja-flúor deservam valetas, ao ar torrado. Não ligo de mais. Necessidade de estancar a torrente de imagens, sons – o bolor audiovisual do passado. Curar a vida como a um queijo artesanal, dando tempo à maturação, ao poder da sombra, à espera feita de madeiras. Ser de água praticando o azeite. E o vinho e o sangue. E merecer uma boca cheia de água e de carne.
Rola o corpo no espaço. Escrevi hoje muito. Incensei de crédito outras vidas: o homem das peles, o homem das abelhas, o homem das ovelhas, a mulher do queijo. Cortei-lhes em bocados as frases. Quando, esta noite, a rádio os libertar pelas esferas, serão música. Depois, serão silêncio. Outras vozes, pressurosas, acorrerão em vez delas, em vez da minha.
Escrevo para tornar insubstituível a viagem. Escrevo por puro púrpuro terror aos intervalos: viver. Isso sim. Não ter vivido é a pior morte. Não ter ido. Ter voltado sem ter ido.
Saber coisitas. Distinguir terra e céu. Ver, de dentro de água do mar, as nuvens ardendo de ouro. Tratar bem os animais, esses cegos. Percutir a poesia até que ela cante nas igrejas como uma possessa. Eu agora sei coisitas.
Não se trata ainda do cansaço. Não é já a desesperança. O que é, é a minha vida. Algumas vezes (gosto de mapas), pego no mapa de Portugal e vou. Gosto dos rios venosos, das curvas de nível, dos nomes das terras. Aqui dormi, ali amei, acolá desgostaram-me. Além, uma das infâncias. Confusão, fuga, pânico, euforia: ali, ali, ali, ali. E anos nisto.
Colo pelas costas as palavras ao papel, hoje outra vez, sempre. Devo proceder assim. Devo ser um homem. Um homem em festa permanente. Um homem perpétuo. Às vezes, uma sombra sem corpo: quando na cama: ou em viagem.
Nas bermas da estrada, as casas, os negócios, os jardins poeirentos como vestidos de avó-noiva. Vinhedos e milheirais, árvores de fruto como mulheres de brincos. Gosto das oliveiras. Ali em baixo há um ribeiro. O meu olhar à flor da água, beliscado pela boca perguntadora dos peixes. Num vórtice, de novo em cima, entre pinheiros. Há muito ficou para trás o elefante azul, os homens-flúor.
Entre montanha e montanha, o corpo é veloz pelos veios abertos a picareta e dinamite. A vidraça toda descida, o cabelo eólico à janela do carro. A vogal única do vento. A densidade da solitária figueira anunciando a próxima aldeia, já nas costas: como uma palavra escrita.
Algumas crianças num quintal, revoluteando como pássaros de papel-de-seda. Um tanque cheio de água fria que olha o céu. Velhos escuros sentados em bancos de pedra: rápidos, também. Rejeito o incêndio e a inundação.
À sombra de eucaliptos novos, uma prostituta: uma flor do leite. Montes, povoas, quintas, pedras. De pastores defuntos, abrigos de pedra. Carvalhais. Uma mercearia com a placa dos Correios. Um homem com uma moto-serra ao ombro. Todos somos sísifos.
Cafés de aldeia: mínimos, devassados pelo sono e pelas moscas, sonhos da emigração. O meu país é tão bonito como um menino doente. Obras em carne viva que me devolvem aos tempos em que andei de pintor na construção civil. Saudades, sim – por que não? Mas não, o dia é novo.
Não tão novo, já. Às cinco da tarde, com a madurez e a consistência de um pêssego, o dia boceja sem esconder a boca. Do bojo dos jardins, subirá breve a sombra da noite, a data da luz marcada a giz no alto esquerdo. Ainda tenho tempo para celebrar a quinta-feira. A cidade de destino abre-se na encosta da serra como uma folha dupla de jornal.




5. O que Acontece
(Seia, tarde de 7 de Setembro de 2006)

Verifico leis.
É o mais que faço.
A qualidade da luz não me é indiferente.
Não tenho toda a razão, ainda bem que não.
Tenho dias.
Eu tenho dias, talvez anos.
Vêm aí tempos difíceis: qual o não é, porém?
Acontece-me (é um pouco assustador) olhar para as pessoas humanas e ver apenas as pessoas animais: plantas encarnadas, bombas de sangue, capas de gordura, cálcio, carbono, nocturnas na manhã clara e justa.
Acontece-me (é normal) senti-las bonitas, às humanas alimárias: flores brancas, fontanários de luz, peças manuais, pimenta, sal, solares na chuva clara e justa.

2 comentários:

Maria Carvalho disse...

Gosto quando divides o texto assim. Todo entralaçado e compreensível fica um prazer ler.

Anónimo disse...

Subscrevo.

Canzoada Assaltante