23/06/2006

Maria Abandona Manuel em Dois Poemas Complementares

1. Tê Zero
Caramulo, tarde de 22 de Junho de 2006

O verdor insólito dos olhos dela
não valia talvez uma biblioteca.
Pousava a mão branca na colcha amarela.
Sem qu'ela m'olhasse, olhav'eu p'ra ela.

Laranjava a cabeceira. Torrava o dia
findando cortinas, findando o Verão.
Ela era então tudo quant'eu sabia,
resgate da noite com absolvição.

Guisávamos frango, torrávamos pão,
saíamos ao fresco a tomar café.
Jardins suspendiam a respiração
por causa de quem eu ia ao pé.

Hoje não está. Concorreu para fora.
A chave encarnada deixou no porteiro.
Eu cá nunca me dei, não sei ir-m'embora.
Pago a renda sozinho, 'inda sobra dinheiro.

2. Aquário
Caramulo, manhã de 23 de Junho de 2006

Já vivi num aquário.
Apanhava o limo da manhã e ondulava.
A minha vida era a cores por fora.
Apanhava coisas com a boca, nem todas
chegavam ao cérebro.
Defecava perpétuos filamentos.
Eu transparecia de rubro, a digestão
e os poemas à vista.
Algumas pessoas aumentadas de óptica
olhavam-me fora, deitavam-me
películas orgânicas, ficavam a ver.
Uma hora na água vale anos.
Anos e anos na mesma hora.
Evitei o preto e o amarelo e o verde.
Há dentro de água linhas aéreas,
também.
Eu voava de anémona.
Medusava-me todo.
Cantava num coral
canções de bolhas
como um boneco de
banda desenhada ou
um mergulhador ou
uma garrafa de água
mineral.
Não havia música possível.
O cascalho raspava o coração,
as antenas vivas raspava.
Eu enchia a barriga de lodo.
Andorinhas de barro
na parede da sala
pareciam-me negros
albatrozes micénicos.
Só volto à hora aquária
para não voltar.
As mulheres nem sempre se apercebem do que é deixar um homem,
do que acontece depois,
dentro d'água.

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Canzoada Assaltante