05/06/2006

Fala o Áugure

para o José Antunes Ribeiro, logo também para o Miguel

Habitarás pouco tempo tua casa.
Alguma dor inchará a hora, não os anos.
Serás corrupto e corromperás.

Ao espelho da barba, a cor branca dos fios.
Ao mesmo, o outro olhar sem actor.
Despojarás as tripas de sua merda fiel.

A rosa e o pardal podem comover-te.
Tudo misturarás: a rosa castanha, o encarnado pardal.
A cidade far-te-á mal.

Recordarás sempre o outro mar.
Não o que iça barcos e gaivotas,
mas o que enche de areia o coração.

Nunca amarás. Ou nunca mais o farás.
O fresco outonal acabarás preferindo.
Haverás de comer em pensões frias.

Os outros que morram. Num caderno
depositarás esse sal. E ainda
o de seguires vivo sem nudez, nem fé.

Recebeste cedo a oferenda da língua.
Entregá-la-ás tarde e a más horas.
Bestas de relincho apuparão cada verso.

O étimo infante não fala.
Tu falarás, ouvindo: o vento nos cedros,
o gasóleo nos carros, o pardal na rosa.

Sofrerás tua vaidade. Contrapô-la-ás
à transparência da mudez. Quando
te afligir o tabaco, fumarás.

Preceitos e receitas não te valerão.
Preferível te será ver a bola
em pastelarias iguais ao milénio.

De idiomas bárbaros saberás um pouco.
Convém, sempre convém, saber
perguntar a rua ao presidente americano.

Prata abrasarás como sardinha.
Pimentos e melão serão o estio.
Escrever é como ter frio.

Morrerás de cor: assim não vivesses.
Ele há exposições universais:
por um dólar, o Japão e as Ilhas Tropicais.

Haja saúde. Que a virtude
só há no praticado. Além dela
temos sopa, pão, azeitonas.

Constantino, Imperador, errou.
O Peixe comeu os leões.
De Roma emana a praga egípcia.

Subido à serra, na noite-mapa,
confundirás estrelas com minutos.
Assim são, na verdade.

Numa associação recreativa,
entre homens de vidro, serás
de pedra. Jogarás o ás.

Repara agora: recolhem já
o baralho, os cinzeiros, as cadeiras.
Espero-te aqui amanhã.



Caramulo, manhã de 5 de Junho de 2006

2 comentários:

José Antunes Ribeiro disse...

Caro Daniel,
Obrigado,especialmente pelo meu filho Miguel...Mesmo quando a dor não tem remédio é sabido que o planeta continua a girar!
Que coincidência! Andava eu para vir aqui dizer que te leio com imenso prazer, grande poeta, grande cronista,num país onde os medíocres ocupam as "cátedras" com a sua imensa lábia...Que havemos de fazer?!...
Um grande abraço!
Zé R.

Daniel Abrunheiro disse...

O que havemos de fazer, Zé? Existir é resistir. A gloríola que se foda. No meu ínfimo plano, também tenho um ou dois ranhosos à perna. Posso tão bem com eles. Viva a vida!

Canzoada Assaltante