15/05/2006

Eternitardes - I

Montanha e Tempo

Habito uma casa do vale e trabalho na montanha.
Cada dia é inaugural. Não é como quando nas cidades. A luz, rica de bosques acamados, esclarece. Há poucas ou nenhumas putas. Alguns gatos.
Não alimento, já não, remorsos inconsequentes. É-me agora fácil dispor do senhor Alexis de Tocqueville com a mesma sem-cerimónia com que recorro, na tarde solar de sábado, aos préstimos da senhora Margery Allingham.
Na aldeia do vale, andam há meses arranjando o largo junto à igreja. Tiveram de derrubar uma árvore, o que é lamentado com resignação pelo presidente da Junta. Ele mo disse, ontem. A obra há-de estar concluída em dois meses, a tempo do Verão emigrante.
Entretenho-me adiando as releituras de Mann, Joyce e Proust: A Montanha Mágica, Ulysses e Em Busca do Tempo Perdido. São monumentos a que tenho de voltar. Porquê? Por me terem marcado a vida anterior. E porque me embalo, cada manhã inaugural, para o futuro. Hei-de gostar, no futuro, de ter relido esses livros monumentais, montanhosos. Mas entretanto, Allingham (Cuidado com a Senhora).
Anteontem (5ª, 11), verifiquei, sem pressa nem pólvora, que a minha mortalidade (a minha mortal idade, mesma coisa) é uma coisa viva. Depois de almoço (era na montanha), desci ao parque. No parque, a luz e a hora, quentes como mãos sãs, tornavam definitivo o instante: a eternitarde. Suspenso da titilação da folhagem, sobrepassei a minha mesma condição. Digo que me desumanizei, aderindo à pedra dos degraus. O parque tem escadarias não subidas nem descidas: estão ali há tanto tempo não contado, que adquiriram o direito da erva, dos florões e da brisa irreparável de mil maios. Apeteceu-me fazer por ali a sesta. Cheguei a considerar algumas sombras, mas a urgência idiota da minha vida social impediu a satisfação desse desejo tão justo. Tinha trabalho à tarde. Perante a glória desumana das árvores e da erva, mirando a quietude sensata das múltiplas escadarias, decidi não ignorar.
À noite, depois de jantar, descido já ao vale, continuei não ignorando: nasce-se e morre-se só. O entretanto é uma política: uma arbitrariedade. Onde morar, onde trabalhar, onde permitir que o sono nos mate/resgate – por exemplo político, arbitrário.
As horas e as noites de dois dias passaram. A ideia não passou: inaugurar cada dia. E Mann e Joyce e Proust, sem remorsos.


Botulho, 13 de Maio de 2006

2 comentários:

Anónimo disse...

"Tinha trabalho à tarde. Perante a glória desumana das árvores e da erva, mirando a quietude sensata das múltiplas escadarias, decidi não ignorar."

Vai trabalhar ó intelectual...

Daniel Abrunheiro disse...

isté qué um carago...

Canzoada Assaltante