26/08/2005

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Isto de estar vivo é coisa que dá trabalho. Uma escova de aço torna-se preciso, desde que precisa. Escovamos a penúria, passamos a tristeza a fio de aço. A penúria e a tristeza resistem muito.

Chuvas intensas matam gente, aí. Incêndios desumanos matam gente, aqui. Entre a água e o fogo, toda uma humanidade se torna estatística.

Cabo Verde nunca me choveu. Vivi em Santiago, se tanto, dois dias nublados. O ar chegava à respiração como um trapo de flanela. Pouca sombra abrigava o caminhante. As pessoas eram silhueta de vidro tremido. As casas de tijoleira-cinza reverberavam na ardência quieta. Não chovia.

Por todos os lados do olhar, o mar era um egoísmo de sal. Verde, morno, salgado, alheio – como se dois punhados de ilhas não fossem nada com ele.

Havia minutos tristes. Uma pessoa parecida connosco sentava-se numa cadeira, levava o nosso braço à nossa chávena de café, filmava a Assomada com os nossos olhos, tossia com o nosso peito o nosso grogue.

Havia meias horas distraídas. Na embaixada de Portugal, um pintor de Moçambique coloria uma roda de conversa com whisky da Irlanda. Senhoras gralhavam educadamente em torno. Cavalheiros charlavam, talvez, a propósito da chuva que 1997 não deu.

Havia noites puras. Numa delas, uma farmacêutica madura abordou-me como um transatlântico. Era senhora de um decote de bandeja que arrulhava como uma pomba bífida. Sorriu-me com excepção de nenhum dente. Eu tinha 33 anos e percebi logo por que morreu Cristo com essa idade. Não choveu.

Os anos passaram: para os lados, para a frente, para trás. Os mortos da chuva e os mortos do fogo acrescentam terra ao ar, compendiando os elementos fundamentais que os Antigos tinham por tudo. Não sei se são tudo. Sei tão poucas coisas. Sei que trabalho dá viver. Escrevo devagar. Fio de Cabo Verde. Aço de Portugal.


(Escrito para o sítio na net: www.liberal-caboverde.com
na tarde de 24 de Agosto de 2005, em Tondela.)




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