10/08/2005

A horas do Sal

O meu quarto de hotel na Praia de Santiago era como a minha vida: uma nave de reduzida tripulação onde alvejava o duro lençol e amarelecia a solitária lâmpada de leitura.
O banheiro era ascético e morno, e nele lavei, poupando água, um corpo de monge abelardo sem Deus nem Heloísa.
Eu recolhia cedo a essa estufa jardinada por invisíveis mãos veladoras, nunca deixando de sentir o milagre comercial de, na volta do mundo exterior, me ressurgir arrumado e limpo o que, à partida, deixara húmido e desordenado.
No roupeiro, o saco com as camisas, as cuecas e os dólares dormia o honesto sono de serviçal com dentes de fechéclér.
Na secretária, a folha de serviços era todo um poema plastificado com versos de lavandaria, bar, restaurante e demais utilidades de rodapé que li e reli na solidão como se ocultos sentidos surdissem nas cifras dactilografadas. Não surdiam.
À roda desse quarto viajei, qual Garrett tropicalizado a breve trecho.
Ali exerci sonos breves que o suor perlava muito, deles despertando com a sensação de todo o meu corpo, à excepção dos olhos, ter chorado sal.
O telefone nunca tocou. Poucas coisas haverá mais rubricadoras de desamparo do que um telefone que não toca. Mas eu era mais novo, então, e portanto menos frágil. Suportei pois o silêncio do aparelho com o fingimento da dor que deveras tocava, ao contrário dele.
Quase não escrevi, no meu quarto de Santiago. O mais que fazia, nele, era estar vivo, o que sempre é obra.
No corredor, hóspedes ainda mais estrangeiros do que eu desejavam-se boas-noites francesas. Depois, as portas sucediam-se como teclas de piano. Breve, o silêncio retomava o seu esmigalhar de vidro.
Perto, no mar, acampava a vasta Lua de Cabo Verde. Muitos peixes de pura prata imaginei que voavam, atormentados pela alegria mística de se ser puro peixe de lunar arquipélago.
Hoje, tripulo outra nave, tomo outros duches de outra água mas igual melancolia e transpiro a frio outras mesmas noites sem remédio.
Já me sucedeu, porém, acordar sem marcação ao toque do remoto telefone de hotel. De olhos fechados, estendo a mão para o auscultador na esperança da confirmação da chegada do Sal, no horário previsto, de Heloísa, mesmo a tempo de eu encomendar um pequeno-almoço finalmente duplo.


(Escrito para o sítio na net: www.liberal-caboverde.com
na tarde de 10 de Agosto de 2005, em Tondela.)

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Canzoada Assaltante