19/06/2005

Carta de Janeiro Áspero a Rui & Lina antecedida de declaração

Declaração

Entre as 23 horas do dia 5 de Fevereiro de 2005 e a hora de almoço do dia 18 seguinte, estive internado no Pavilhão 3 (Alcoologia) do Hospital Psiquiátrico de Sobral Cid, em Coimbra. Antes disso, tinha recebido uma carta de Rui & Lina, uma firma matrimonial oficializada notarialmente a 11 de Setembro de 1999, perto de Alcobaça.
Segue-se a minha carta de resposta a essa firma, documento que, a par do teor de uma conversa telefónica (rede fixa) por mim mantida com um senhor chamado António Fernando (que mora em Leça da Palmeira), me determinaram o sobredito internamento.


Uma Carta no Inverno
(1 de Fevereiro de 2005)

Recebi uma carta no Inverno. Na manhã primeira de Fevereiro, o sol pendurado no ar como um macaco hilariante, recebi uma carta. Também era luminosa, além de carta. Provinha de um amigo, que me a deve ter escrito com a esposa por cima do ombro como antigamente os papagaios e antigamente os piratas.

Trata-se de um casal amigo, este meu casal epistolar. Fui ao casamento deles. Dia 11 de Setembro de 1999, o tal ano 1999 de que tenho deixado nódoas neste caderno. Lembro-me da festa, da música, da comida colorida. Lembro-me de ter ido a esse casamento na companhia da mãe da minha filha Teresa, menina que se portou então de um modo fetalmente impecável.

Agora, recebi uma carta do noivo. Uma carta escrita para mim, cara bonita. Uma carta apenas não escrita à mão, como antigamente, mas carta ainda assim: de papel, de correio, com endereço não electrónico, cara a cara.

Pus os óculos e li-a na cama. Li metade, fui lavar a cara à casa-de-banho, onde aproveitei para saponificar as primeiras lágrimas do dia. Voltei à cama, recomecei de início, sentado na borda do precipício de flanela onde tenho dormido estes meses ínvios mas, afinal, transitados.

Decidi responder por escrito e à mão. Depois fotocopio a parte que lhes interessa e envio pelo correio. E depois as nossas vidas vão continuar.

É verdade que as filhas do homem não podem ser achadas (nem, muito menos, perdidas) no fundo do copo. “Nunca as encontrei lá”, diz o homem. Digo eu. Não se pode encontrar o que nunca se perdeu. Vê: eu sou o jardineiro. Os jardins aí estão, ao ar e à luz, emanações cada vez menos próximas da geometria primeva: flores que adolescem. Cabe-me falar-lhes, sim. Amá-las devagar, já o faço tanto. Neste momento, porém, leio e escrevo cartas ao bordo de precipícios de flanela.

Dizem que quando o pai morre, o filho se torna pai de si mesmo. É verdade. O que significa que tenho sido tão mau pai como mau filho. Mau sem ser por mal, naturalmente.

Há os domingos, por outro lado. Tenho escrito muito (ou, pelo menos, pensado muito) a propósito de domingos. São o dia do terror. Parece que A Bomba caiu na cidade. Sem pessoas, sem carros, só as casas de pé e as carochas anti-nucleares de carapaça luzente como sapatos de baile. Dias sós: dias só: dias, só.

Domingos ou não, escrevo poucos poemas, poucas canções. Fumo ao pé do rio, perfumando de água e lixo a mão na boca. Passeio bem, como um militar, de passo firme pelas vielas despovoadas. Solipsista, vejo nas paredes, ao pé dos cartazes de tauromaquia e bailes, o anúncio policial da noite que me procura, vivo ou morto, sem recompensa. Geralmente chego vivo, o que propicia alguma canção, um café morno, um penúltimo cigarro na alquimia de já ser segunda-feira.

Outras vezes, o circo vem à cidade tonitruar como um cigano bêbado. Não vou ao circo. Fui uma vez e não queriam deixar-me sair. Também já não vou ao cinema. Abro um livro com coisas do Hopper ou abro a janela: é a mesma coisa. E não, não estou a desviar-me do assunto. Vou contar uma história.

Era uma vez um domingo. Domingos são os dias que começam logo de noite. As pombas amanhecem recolhidas. Tudo emana a condição de ser véspera de ontem. Um homem cruzava a praça de táxis (ao domingo, não há táxis, não se sabe porquê). Dirigia-se ao rio. Queria fumar um cigarro à beira do rio. Chegou lá e pôs-se a fumar. Entre o lixo, pequenos peixes escreviam as letras árabes da natação. Eram peixes muito portugueses: castanhos e pequenos, olhos míopes, dominicais. Outro homem abordou o fumador. Pediu-lhe um cigarro e lume. O fumador deu. O homem agradeceu. Preparava-se para seguir a vida dele noutra direcção quando o primeiro homem desta história lhe disse assim: “Escusa de ir. Vai encontrar a mesma coisa.” O segundo homem respondeu: “Tem toda a razão, mas vou na mesma.” De modo que o homem ficou outra vez com os peixes. O cigarro que tinha dado ao outro (o mesmo) era o último. Arrefecia. Um ar fresco subia da linha de água. Nas costas do homem, comboios tonitruavam como carrinhas ciganas de circo bêbado. Aquilo era então tudo o que havia na história: um homem perde um homem.

Isto tem-me acontecido com alguma frequência. Falar de décadas quando é da dor que se fala, é falar de agora-mesmo. Perdi um irmão na morte. Depois, o pai. Tornei-me triplo ou mais: próprio irmão, próprio pai, filho de ninguém, pai de filhas que nem se conhecem mutuamente. Isto acontece. Não estou para sonegar responsabilidades, procurar culpas ou suas siamesas desculpas. Nem o perdão nem o pecado me moram ao lado. Não é por aí que vou.

Para o norte, talvez. Talvez vá para o norte. Em demanda de trabalho, sobretudo. Sei como são os domingos por lá, claro que sei: rios, fumadores, A Bomba, os circos. Interessa-me saber que segundas e quintas posso conseguir. Talvez a lua se me mostre mais feminil, menos ansiosa, mais pura. Talvez chova, finalmente, a norte da minha vida.

Claro: há a questão da claridade da vida. Tem a ver com o amor. Um homem só é só um homem, o que pode ser muito. Por isso gostei de estudar leis: a pessoa vaporiza-se, resta o indivíduo, o caso, o processo normalmente sumário: o esquecimento.

É evidente que li poesia de mais. É droga dura. Saber de João Miguel Fernandes Jorge no Café Vianna, em Braga. Lembrar-me de Ruy Belo perante a Nau dos Corvos. E quantas Lisboas há em Armando Silva Carvalho. E António Osório vertical junto à campa da mãe. E João Damasceno de pijama, fechado e hirsuto num quarto de Coimbra. E todos esses nomes fumados junto ao rio: vozes de verso, habitações macrobióticas da mania de morrer em vida, sendo domingo.

Uma vez, vinha de Santarém. Tinha lá ido ver uma mulher. No regresso, passei por S. João da Ribeira, onde nasceu em 1933 um poeta cujos livros me acompanham como cães inelutáveis. Outra vez, não fui eu a estar em Paris a recitar Mário de Sá-Carneiro junto ao hotel onde o poeta viveu ou se matou ou ambas as coisas, às vezes é o mesmo.

Sei, tão-só, que me sobram algumas coisas: canções sobretudo, o que pode ser pouco nos tempos que correm. Não é grave.

Tenho saúde, aliás. Constipações, muito poucas. Preciso de tratar alguns dentes. Fumar menos e beber (muito) menos são excelentes projectos. Ando a escrever um livro neste caderno e noutros papéis. É um livro de homem disposto a pintar. Tem o problema, aliás mínimo, de não ser pintor. Resolve o assunto com a enumeração de dias contados: certos lances, certos casamentos com comida colorida, incertas noites de motel, tudo devidamente negro e azul, meteorológico, entre o eu e o ele que nenhum tu se dispensa de ser, muito menos tu, Rui, muito menos tu, Lina.

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Canzoada Assaltante